Serão integrados por professores titulares, professores convidados, juízes e desembargadores;
Alunos de graduação e de pós graduação poderão participar e auxiliar as atividades, sob a orientação e supervisão dos membros efetivos, dos coordenadores e do diretor do Núcleo de Pesquisas e do Grupo de Estudos.
Reunirão uma vez por mês para debates e conclusões sobre a matérias propostas;
Os debates devem ter como objetivo estabelecer relações entre a teoria e a pratica na atividade jurisdicional;
O formato dos encontros observará uma prática de previa leitura de textos ou exame de decisões judiciais, com debate e conclusões durante o encontro. Poderão ser convidados juristas para fazer exposição seguida de debates e conclusões; As reuniões do grupo deverão ser documentadas por ata e lista de presença;
A data e horário dos encontros serão estabelecidos pelo Diretor do Grupo.
Os resultados das pesquisas poderão ser objeto de publicação no site da EMAP, livros, revistas ou periódicos, mencionando-se sempre que o autor ou autores integram o presente Núcleo de Pesquisas e Grupo de Estudos.
Por José Laurindo de Souza Netto - 26/04/2017
Por Phillip Gil França - 26/04/2017
Por Eduardo Ramos Caron Tesserolli - 06/02/2017
Por Eduardo Ramos Caron Tesserolli - 06/02/2017
Por Thiago Lima Breus- 06/02/2017
Por Ingo W. Sarlet - 03/02/2017
Por Ingo W. Sarlet - 03/02/2017
Por Ingo W. Sarlet e Jayme W. Neto - 03/02/2017
Por Rafael Knorr Lippmann - 02/11/2016
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutorando pela Università degli Studi di Roma La Sapienza, URS, Itália. Especialista em Formação de Magistrados pelo Centro de Estudos Judiciários de Portugal e Especialista em Direito pela Scuola Di Superiore Formazione Alle Funzioni Internazionali, Itália. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da FESP/PR, UNIPAR e UEL. Diretor-Geral da EMAP (2016-2017).
Desembargado do Tibunal de justiça do Estado do Paraná. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é Professor Adjunto no Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná, Supervisor Pedagógico da Escola da Magistratura do Paraná. É membro do Instituto Paranaense de Direito Processual (IPDP), da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC), da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Desenvolve atividade acadêmica na área do Direito Processual Civil, pesquisando as teorias da decisão judicial no Estado Constitucional.
Juiz de Direito Substituto em 2º Grau no TJPR, em auxílio da Presidência (205/2016). Mestre e Doutorando em Direito do Estado (UFPR). Especialista em Direito Administrativo. Foi Juiz Auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça nas gestões 2007/2008 e 2009/2010. Coordenador de Cursos da Escola da Magistratura do Paraná.
Juiz de Direito Presidente da 02ª Vara Privativa do Tribunal do Júri de Curitiba; Especialista e Mestre em Direito; Diretor da EMAP (Curitiba); Professor da UTP e FAE.
Desembargador do TJPR / Diretor-Geral da EMAP
Presidente do IBDFAM/PR
Procurador Regional da República
Advogado e Professor de Processo Civil
Professor da PUC-RS e Desembargador do TJ-RS.
Professor da EMAP, Advogado e Mestre e Doutor em Direito pela UFPR
Mestrando em Direito UNINTER
Por Sérgio Cruz Arenhart- 25/11/2016
1. AS DECISÕES VINCULANTES NO NOVO CÓDIGO
Um dos mais importantes marcos do novo código de processo civil é, sem dúvida, a imposição de observância de certas decisões judiciais. O instituto, que vem sendo chamado de “precedente vinculante” pela doutrina nacional – apelando à prática corrente do direito anglo-americano – impõe que o Judiciário respeite (a dizer, obedeça) algumas decisões tomadas sob certas circunstâncias, porque elas representariam a orientação “definitiva” do Poder Judiciário sobre determinadas questões, sobretudo de direito.
Assim é que o art. 926, do CPC, estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. A seu turno, o art. 927 impõe ao Judiciário nacional a observância de uma série de decisões tomadas em processos, recursos ou incidentes específicos ou ainda com certo quorum especial.
A lógica dessa observância compulsória inclui uma tentativa de oferecer maior segurança jurídica e maior previsibilidade às decisões judiciais. Indiretamente, essas figuras ainda estão atreladas a uma tentativa de acelerar o julgamento de questões repetitivas, dando solução única para elas. Essa intenção é declarada na exposição de motivos do código, que faz desse objetivo um dos pilares centrais da nova lei.
Poder-se-ia questionar a viabilidade desse prognóstico – afinal, as circunstâncias da vida são ricas e diversas, e dificilmente se consegue uma uniformidade de aplicação do direito diante dessas vicissitudes pontuais – e mesmo a opção por privilegiar a segurança jurídica em detrimento de outros valores também fundamentais, a exemplo da justiça do caso concreto. Seria também possível duvidar da aproximação das figuras criadas pelo código ao modelo anglo-americano de precedentes. Porém, não há dúvida a respeito da nítida opção feita pelo código no sentido de tornar obrigatórias certas decisões, restringindo dos magistrados a possibilidade de escolher a interpretação do texto legal que seja mais correta ao caso concreto.
Não é, porém, intenção deste texto fazer a análise detida da “teoria brasileira dos precedentes”, nem criticar a opção do legislador. Pretende-se algo muito mais singelo: discutir o interesse de intervir – e, em particular, o interesse recursal – à luz dessas novas figuras e desses novos mecanismos vinculantes, criados pela lei brasileira.
Alguém dirá que, para o processo do trabalho o tema é de menor relevância, na medida em que o modelo seguido nesse campo é distinto. De fato, sabe-se que a Lei n. 13.015/14 instituiu um sistema próprio de unificação da jurisprudência no campo dos Tribunais do Trabalho, que é bastante diverso daquele posto pelo código de processo civil. Todavia, é de se notar que o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Instrução Normativa n. 39/2016, expressamente consignou a recepção do modelo de formação e estabilização das decisões criado pelo código de processo civil (arts. 3º, XXIII e XXV, 7º, 8º e 15, I). Assim, em que pese a existência de algumas peculiaridades do processo laboral, é fato que também aqui o problema a ser discutido neste texto tem relevância.
Notada essa importância, é preciso também perceber que os ditos “precedentes brasileiros” (melhor seria chamá-los de decisões vinculantes) são, em sua quase totalidade, substancialmente mecanismos tendentes a aglutinar a solução de questões de direito, de modo a tornar a decisão do tribunal obrigatória para todos os magistrados a ele submetidos. Por outras palavras, o que se faz com esses instrumentos é ampliar os efeitos de uma decisão judicial, de modo que atinja a esfera jurídica de terceiros – não intervenientes no processo – tolhendo, ao menos por vezes, o direito destes a apresentarem suas razões (rectius, terem essas suas razões examinadas efetivamente pelo Poder Judiciário) em eventual demanda presente ou futura de que possam participar.
Se esse é o objetivo dessas medidas – o de afetar causas que envolvam terceiros, ou seja, sujeitos não participantes da relação jurídica em que dada a decisão – então é certo que há grave risco de que essas técnicas possam mostrar-se inconstitucionais, por clara violação ao contraditório.
Para evitar esse vício, é necessário tomar diversas cautelas na atuação desses institutos. De início, é necessário que se incluam – nos sujeitos que efetivamente podem participar da formação da decisão que se tornará obrigatória – pessoas capazes de representar os interesses dos ausentes, de modo que esses interesses possam efetivamente ser tutelados naquele processo.
Porém, também parece imprescindível que se repense o conceito de “interesse jurídico” – necessário para a intervenção de terceiro – e sobretudo do interesse recursal, condição necessária para que alguém possa opor-se a essa decisão. Isso se mostra necessário, quando menos, para se evitar que esses terceiros – que sofrerão os efeitos vinculantes da decisão judicial – sejam apanhados por tais decisões sem que tenham tido, ao menos, a oportunidade de apresentar seus argumentos e suas versões a respeito daquela controvérsia.
Interessa para a presente análise, em especial, a apreciação do interesse que legitima a assistência (e, de modo mais amplo, todas as formas de verdadeira intervenção de terceiros). Considerando que esta é a via clássica pela qual o terceiro auxilia a parte a vencer a demanda (por isso chamada de Nebenintervention no direito alemão), para que, com isso, obtenha para si um benefício para interesse jurídico próprio, parece claro que esta é a via que mais se aproxima àquilo que aqui se pretende, ou seja, a permitir aos terceiros a participação em processo de que possa resultar mecanismo vinculante para seus próprios interesses.
Na verdade, diante das modificações apontadas, o processo individual tem, paulatinamente, buscado aproximação com o processo coletivo, na medida em que, cada vez mais, tem-se a ampliação dos limites da decisão para além da órbita exclusiva das partes. Impõe-se, talvez, portanto, autorizar – usando como paradigma o processo coletivo – a participação plena dos atingidos no preparo da decisão judicial que os afetará. Realmente, se o processo individual, agora, é capaz de gerar decisão que atinge (direta ou indiretamente) todos aqueles que sejam titulares de um mesmo tipo de interesse, ou cujo interesse se lastreia em uma única questão de direito, parece ser razoável admitir que seu tratamento (porque feito de forma única) admita a participação de todos aqueles que se sujeitarão aos efeitos daquela decisão.
Por outro lado, sabe-se que essa participação plena é muitas vezes impossível, gerando um processo tumultuário e praticamente infinito. Daí a necessidade de se buscar um equilíbrio, capaz de permitir repensar a participação (ou representação) dos sujeitos afetados, sem que isso retire as vantagens da aglutinação buscada.
2. OS EFEITOS DAS DECISÕES JUDICIAIS EM FACE DE TERCEIROS
Afirma-se que os “precedentes brasileiros” não devem ser confundidos com uma ampliação da coisa julgada para terceiros. De fato, se esses precedentes atingem o fundamento da decisão, parece correto não confundir os institutos. Por isso, alguém poderá sustentar que não há razão para a ampliação do conceito de interesse jurídico de intervenção ou de interesse recursal, já que estes terceiros não sofreriam a imutabilidade da coisa julgada, de onde se concluiria que sempre poderão, em processo posterior em que sejam partes, discutir a decisão tomada no primeiro feito.
De fato, esta faculdade está na essência de toda intervenção de terceiro. Trata-se, aliás, da condição básica para que alguém possa ser considerado como terceiro interessado e, assim, estar sujeito aos chamados efeitos reflexos da sentença: poder “refletir” os efeitos sofridos pela sentença, opondo-se a ela ou pela intervenção de terceiros, ou pela propositura de demanda própria, tendente a afastar de sua esfera jurídica tais efeitos.
A fim de melhor apreciar esta afirmação, cumpre retomar os conceitos de efeitos da sentença, precisando esta idéia. Conforme já lembrado em outro lugar, o terceiro, ainda que ostente esta condição em face do processo, não está, por isso só, imune a este ou a seus efeitos. A afirmação pode soar estranha, mormente diante da máxima segundo a qual res inter alios iudicata aliis non praeiudicare (D. 42.1.63; 44.2.1). Realmente, é corrente dizer-se que a decisão judicial, formada em processo entre as partes, não pode prejudicar terceiros. Todavia, é preciso interpretar adequadamente o brocardo, a fim de evitar a confusão acima indicada, e que, aliás, contraria a própria realidade.
Inúmeras situações podem ser apanhadas do ordenamento nacional para demonstrar esta situação. Com efeito, a distinção, proposta há muito por Carnelutti, entre parte em sentido material e parte em sentido formal, deixa bem transparecer a possibilidade dessa extensão a terceiros dos efeitos de certa decisão judicial. Ainda que no processo se apresentem apenas as partes em sentido formal, é evidente que seus efeitos hão de afetar as relações das partes em sentido material, mesmo porque a estas pertence o conflito deduzido no processo. Exemplo disso se tem na expressa referência do art. 109, § 3º do CPC – que, ao tratar da alienação da coisa litigiosa no curso do processo, determina que “estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou ao cessionário” – bem como na menção da responsabilidade do espólio pelas dívidas do falecido (imposição esta antes de direito material, mas expressamente recepcionada no art. 778, § 1º, II, do CPC).
Os exemplos acima citados não devem fazer crer que a extensão dos efeitos de certa decisão judicial a terceiros depende de expressa previsão legal. A rigor, essa repercussão tem muito mais clara ligação com a natureza das coisas do que com previsões legais específicas. Pense-se, por exemplo, na situação decorrente do cumprimento de ordem judicial que determina a reintegração de alguém em seu posto de trabalho; certamente isto poderá importar remanejamento dos outros empregados e alteração das funções dadas a cada um; ainda assim, não parece razoável cogitar de convocar todos os empregados envolvidos para o processo (em eventual condição de litisconsortes) para autorizar que estes terceiros sofram tais efeitos da sentença.
Pode-se ir adiante na demonstração de situações em que terceiros são abarcados pelos efeitos de decisões judiciais. Costuma-se aludir à chamada eficácia erga omnes da sentença constitutiva, para designar o fato de que as alterações produzidas na realidade jurídica por esta modalidade de provimento judicial são sentidas por todos, independentemente do fato de estarem ou não posicionados como parte no processo do qual a decisão se origina. Deveras, não se pode deixar de reconhecer que a sentença de divórcio, prolatada entre os cônjuges, espraia seus efeitos para todos, indistintamente, de modo que ninguém poderá deixar de reconhecer o novo status jurídico daquelas partes; do mesmo modo, aquele que, agora, pretender contratar com um desses sujeitos, haverá de considerar esta nova situação jurídica e o novo regime de bens do primitivo casal, mesmo não tendo sido parte no processo. Tudo isso mostra que os efeitos daquela decisão não se limitam apenas às partes, mas abrangem, indistintamente, todos que se relacionem ou possam relacionar-se com elas.
Mais que isso, essa abrangência a terceiros da sentença não se limita apenas às sentenças constitutivas, sendo natural a toda modalidade de decisão judicial (rectius, a todos os efeitos de qualquer decisão judicial). Chiovenda há muito percebera tal fenômeno, estatuindo que todos estão obrigados a reconhecer a sentença entre as partes, não podendo, porém, ser prejudicados (juridicamente) por ela. Talvez seja mais apropriado dizer, no atual estágio das coisas, que todos devem reconhecer qualquer sentença – ainda quando proferida inter alios – podendo eventualmente ser prejudicados por ela, desde que lhes seja dada possibilidade de reação em face de tais efeitos. Utilizando os exemplos invocados por Chiovenda, vale lembrar que o credor não pode evitar sofrer os efeitos de sentença que condena seu devedor em outras dívidas – ainda que isso possa importar em prejuízo para si, e ainda não participando desse novo processo; o mesmo se pode dizer do herdeiro que se vê prejudicado por sentenças obtidas contra o espólio. Em certos casos, mesmo prejuízos jurídicos a terceiros são admitidos pela legislação nacional, como ocorre com as situações, já mencionadas, do adquirente da coisa litigiosa (CPC, art. 109, § 3o) ou da rescisão das sublocações em decorrência do desfazimento da locação (Lei n. 8.245/91, art. 15).
De fato, o processo jamais consegue limitar ou medir a extensão dos efeitos de determinada decisão judicial. Estes efeitos – diretamente decorrentes da decisão judicial, ou agregados a ela por algum elemento externo (a lei ou o ato jurídico) – acabam induzindo a formação de outras conseqüências, impossíveis de previsão a priori. Nesse passo, clara é a lição de Liebman, que ponderava que “na realidade, o círculo de relações e de pessoas em que operará o comando contido numa sentença não pode ser e não é preventivamente determinado em abstrato, mas dependerá do uso que em concreto fizerem as partes da sentença, e da qualidade e do número das controvérsias que poderão surgir no futuro, e terá por condição certo modo de ser das relações jurídicas, o nexo e o grau de ligação entre elas existentes”.
A dificuldade em aceitar naturalmente essa “ampliação” dos efeitos dos provimentos judiciais decorre, ao que parece, da assimilação comum entre extensão dos efeitos da sentença e extensão da coisa julgada. Realmente, seria difícil admitir que aquele que não participou do processo – e, portanto, não pode influir na decisão judicial – venha a ser prejudicado pela decisão aí tomada, sem que possa a esta se opor, o que tornaria a decisão indiscutível para este que, resignado, apenas deveria cumprir o comando judicial.
O equívoco, porém, está nessa assimilação incorreta, e não na admissão da eficácia ultra partes das sentenças. Como indica Ovídio Baptista da Silva, “não há de especial, no que respeita ao efeito constitutivo das sentenças que o faça diferente das demais eficácias internas (diretas) de quaisquer outras sentenças. Não é só a eficácia constitutiva que opera erga omnes, mas todos os efeitos da sentença alcançam os terceiros, sob forma de efficacia naturale, na terminologia de Liebman. O fenômeno jurídico-processual que nunca atinge os terceiros é a imutabilidade do que foi declarado pelo juiz, no sentido de que nem as partes podem, validamente, dispor de modo diverso transacionando sobre o sentido da declaração contida na sentença, e nem os juízes dos futuros processos poderão modificar ou, sequer, reapreciar essa declaração. A isso se dá o nome de coisa julgada material”.
Em síntese, não se deve estranhar o fato de efeitos da decisão judicial atingirem terceiros. O que, como é evidente, não se tolera é que tais efeitos possam atingir essas pessoas sem que se dê a elas possibilidade de esboçarem reação a tanto, ou que possam opor-se a esse comando. Enfim, o que não pode ocorrer é que esses efeitos atinjam aquele que não foi parte – nem foi chamado para participar do processo – de modo irreversível ou indiscutível (com estabilidade de coisa julgada). Pode-se até ir além, e afirmar mais propriamente que essa possibilidade de reação para terceiros circunscreve-se, apenas, àqueles chamados de terceiros juridicamente interessados, ou seja, terceiros que mantêm com uma das partes relações jurídicas dependentes ou conexas com as que constituem o objeto do processo. Para os demais terceiros (juridicamente indiferentes, porque destituídos dessa relação jurídica especial) os efeitos da decisão serão sentidos de forma imutável e indiscutível, não por conta da coisa julgada, mas apenas pela falta de legitimidade para questionarem tais efeitos judicialmente. /
Desse modo, resta claro que a condição de terceiro interessado é pressuposto para que se possa discutir os efeitos que eventual sentença acarrete para a sua específica esfera jurídica. É, portanto, evidente que, em se tratando de terceiro interessado, terá ele condições de discutir os efeitos da sentença, já que a imutabilidade da coisa julgada não se sobrepôs a ele. Ainda que tenha sofrito efeitos da sentença, essas não lhe atingiram de forma imutável.
A chave da questão, portanto, parece sempre residir nessa definição de interesse de intervenção (ou interesse recursal, para a modalidade de intervenção qualificada como recurso de terceiro prejudicado). É necessário, portanto, revisitar esse conceito, a fim de examinar com mais detalhes suas peculiaridades.
3. O INTERESSE DE INTERVENÇÃO
É noção elementar que a intervenção de terceiros não se dá pela simples vontade deste em participar de um processo. Há condições legais para tanto, normalmente traduzidas pela idéia do chamado interesse jurídico de intervenção. Nesse sentido, leciona Goldschmidt que todo terceiro, que tenha interesse jurídico em que uma das partes de um processo em curso vença, pode ingressar neste feito com o intuito de ajudá-la. A intervenção (especificamente aquela de que aqui se trata, chamada de intervenção ad coadiuvandum) se dá e se molda de maneira a permitir que o terceiro auxilie a parte a ter solução favorável ao interesse desta no processo. Este auxílio se legitima, como visto, porque o resultado da causa pode afetar, reflexamente, o interesse jurídico do terceiro, que não é objeto da demanda. Por isso, o interesse jurídico é a cláusula de controle que permite admitir ou não a intervenção do terceiro. Não basta, pois, que o terceiro tenha interesse qualquer na solução do litígio; é necessário que demonstre interesse jurídico naquela decisão.
Para o mesmo Goldschmidt, este interesse jurídico está presente em certas circunstâncias específicas, agrupadas por ele em quatro categorias. A primeira se relaciona às hipóteses em que a força da coisa julgada da sentença deve estender-se ao terceiro. A segunda ordem se liga aos casos em que a execução da sentença deva fazer-se contra o terceiro. No terceiro grupo, apresenta o autor os casos em que a sentença deve produzir efeitos acessórios frente ao terceiro. Por fim, na última categoria, estariam os casos em que a sentença deve produzir efeitos probatórios na relação existente entre o terceiro e o adversário da parte assistida.
Sob a ótica do direito brasileiro, parece que os casos em que se apresenta o interesse jurídico para intervenção – como reconhecidamente aceito pela doutrina – não devem seguir os padrões exatos dos gêneros sugeridos por Goldschmidt. Antes, interessa para aferir a presença do interesse de intervenção a existência de uma relação jurídica, mantida pelo terceiro com uma das partes do processo, conexa ou dependente da relação jurídica que constitui objeto do processo. Nas palavras de Liebman, a intervenção do terceiro (na condição de assistente) depende de que este terceiro seja titular de relação jurídica conexa com aquela deduzida em juízo, ou dela dependente, “di modo che la sentenza che sarà pronunciata potrà riflettere un effetto favorevole o sfavorevole sulla sua posizione giuridica”.
Esta é a opinião adotada expressamente pelo texto legal brasileiro, quando afirma que a assistência pode ocorrer sempre que alguém qualificar-se como “terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma delas (das partes)” (CPC, art. 119). Embora a lei não defina precisamente em que consiste este “interesse jurídico” exigido, entende-se ser possível extrair tal idéia do contido no art. 996, parágrafo único, do código, que impõe ao terceiro, para a interposição de recurso, a demonstração da “possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que posa discutir em juízo como substituto processual”.
De forma semelhante, mas deixando claro que este interesse resulta da existência de relação jurídica (mantida pelo terceiro) capaz de ser afetada pela decisão da causa, esclarece o art. 335º, n. 2, do Código de Processo Civil português que “para que haja interesse jurídico, capaz de legitimar a intervenção, basta que o assistente seja titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido”.
Segundo a doutrina, não se exige, para a assistência, que este interesse jurídico seja sobre o objeto do processo. Basta, para admitir a intervenção, que a decisão da causa possa afetar interesse juridicamente protegido do terceiro.
Seja como for, olhando para essa estrutura da qualificação do interesse jurídico – e, na mesma linha, do interesse recursal – nota-se a dificuldade de harmonizar esse desenho com as técnicas inseridas pelo novo código. Em razão dos mecanismos vinculantes instituídos pela nova lei, parece claro que, embora esse terceiro dificilmente possa qualificar-se como “interessado” para participar do processo onde surgirá decisão com possível efeito vinculante, certamente sua participação aí seria fundamental para legitimar a força que esse “precedente” terá sobre sua sua situação jurídica.
4. INDISCUTIBILIDADE DA SENTENÇA PARA TERCEIROS E DIREITO À PARTICIPAÇÃO
Conquanto se possa aceitar a clássica idéia de “interesse de intervenção” para limitar o acesso ao processo àqueles terceiros que efetivamente possam sofrer prejuízo jurídico com a decisão da causa, é certo que essa exigência se torna demasiada frente às novas técnicas de solução aglutinada de questões jurídicas (os ditos “precedentes brasileiros”) instituídos pelo CPC de 2015.
De fato, estando evidenciada a tendência do direito processual civil em criar mecanismos vinculantes, tornando impositivas as decisões judiciais (em certas circunstâncias, pelo menos) e havendo clara repercussão dessa imposição sobre a esfera jurídica de terceiros – que seriam, segundo os critérios tradicionais, indiferentes ou desinteressados e, portanto, proibidos de intervir no processo inter alios – é preciso repensar o requisito que se exige para admitir a participação destes no feito.
Não há dúvida de que, a rigor, aqueles que não são partes nos processos em que pode ser proferida decisão com caráter vinculante, nos termos do art. 927, do CPC, também não podem ser qualificados como terceiros interessados apenas porque a decisão judicial será necessariamente observada em outros processos. A vinculatividade se impõe para o Poder Judiciário e não para o jurisdicionado. Por isso, não se confunde com outros institutos que poderiam afetar diretamente a situação jurídica de terceiros. Logo, esses terceiros são, genuinamente, terceiros não interessados. Eles não possuem nenhuma relação jurídica conexa ou dependente daquela julgada, nem é possível afirmar que a decisão tomada nessas técnicas de vinculação atingirá direito de que esses terceiros se afirmem titulares ou que pudessem discutir em juízo como substitutos processuais (art. 996, parágrafo único, do CPC).
Logo, perante o código de processo civil, esses terceiros são qualificados como terceiros indiferentes e não teriam, ao menos sob a ótica da lei, o direito de intervir no processo e, muito menos, de recorrer de alguma decisão ali tomada. Embora o julgamento proferido dentro desses mecanismos impacte diretamente a forma como será apreciado o seu litígio, não seriam esses terceiros qualificados como “juridicamente interessados”.
Imagine-se, por exemplo, a questão da súmula vinculante. Como resulta do texto expresso da Constituição da República, a súmula editada pelo Supremo Tribunal Federal será vinculante para todo o Poder Judiciário e ainda para toda a Administração Pública (em seus diversos níveis). Assim, poderá ocorrer que uma decisão tomada em causa que diga respeito, por hipótese, à União, acabe repercutindo em interesses de um específico município, de autarquias federais, ou de Estados da federação. Esta repercussão, sublinhe-se, poderá ocorrer – tornando a conclusão do Supremo Tribunal Federal indiscutível para este outro sujeito – sem que ele tenha tido condição de sustentar suas razões perante aquele tribunal e, portanto, sem que tenha sido ouvido a respeito do assunto.
De modo idêntico, pense-se no incidente de assunção de competência, sobretudo naquele disciplinado pelo art. 947, § 4º, do CPC. Um tribunal, com o intuito de compor ou prevenir divergência na interpretação de questão de direito, afeta um caso específico a certo órgão representativo da Corte e, tomada a decisão sobre a “correta” interpretação do Direito naquele caso, tornará indiscutível essa solução para todos os outros processos em que a mesma questão se ponha (art. 927, III, do CPC). Vale dizer, todos os outros sujeitos, que sequer participaram da discussão daquela primeira causa, estarão sujeitos ao entendimento firmado pelo Tribunal, de modo que seus argumentos jamais serão examinados ou debatidos.
Parece certo que há, nesses mecanismos, uma grande dose de exclusão, com risco evidente à garantia do contraditório. Todos esses sujeitos, embora não possam participar da formação da decisão judicial, serão afetados por ela, de forma indireta, já que a interpretação dada à questão de direito que também informa seus litígios será aplicada para seus casos, sem possibilidade de questionamento.
Por isso, a fim de salvaguardar seus interesses, parece adequado pensar em mecanismos de representação de seus interesses – à semelhança de figuras típicas da tutela coletiva – de modo que haja alguém no processo em que se formará a decisão obrigatória responsável por tutelar os direitos desses terceiros.
Por outro lado, parece também razoável repensar o conceito de “interesse de intervenção” e de “interesse recursal”, de forma a harmonizá-los com esses mecanismos vinculantes criados pelo código.
Nesse passo, havendo nítida inspiração no direito anglo-americano para a atribuição de efeito vinculante às decisões judiciais, pode-se eventualmente colher a experiência daqueles países para imaginar como deva comportar-se a intervenção de terceiros, na sua modalidade clássica (a assistência). O direito norte-americano admite figura semelhante à assistência (intervention) , desde que preenchidos os requisitos da regra 24, das Federal Rules of Civil Procedure. Segundo este preceito, a intervention é autorizada nos casos previstos expressamente em lei ou quando o interessado afirma a existência de um interesse relacionado à propriedade ou transação que constitui o objeto da demanda e ele está situado em condição tal que a disposição da ação pode restringir ou impedir sua habilidade em proteger o seu interesse, ressalvada a hipótese em que seu interesse esteja sendo adequadamente representado pelas partes existentes na causa.
Das exigências postas na regra 24(a), acima descritas, vê-se que não há, para a intervenção em tela a exigência de relação jurídica conexa ou subordinada àquela deduzida no feito. Basta, para justificar a intervenção, que a proteção do interesse do terceiro possa vir a ser restringida ou tolhida em razão da decisão eventualmente adotada no processo em curso. Isto, obviamente, é algo bem mais amplo que a exigência posta no sistema brasileiro, e certamente apanha os casos em que a decisão possa vir a refletir suas conclusões jurídicas na situação do terceiro. Especialmente, insta lembrar que o direito anglo-americano adota o sistema de precedentes vinculantes, de forma que uma decisão a respeito de certa questão pode importar a inviabilidade completa de proteção ulterior de outros direitos semelhantes.
Com efeito, a literatura norte-americana relata a existência de um caso em que a intervenção (de que aqui se trata) foi admitida justamente por conta dos possíveis efeitos do stare decisis que eventual decisão poderia gerar sobre outras situações. Trata-se do caso Atlantis Development Corp. v. U.S. (379 F.2d 818 (5th Cir. 1967)), em que, em um feito envolvendo determinada empresa que explorava conjunto de recifes sem a autorização do governo federal, foi por este processada, sob o argumento de que tal área pertencia aos Estados Unidos da América. A empresa Atlantis Development Corp. requereu sua intervenção no feito, alegando que havia adquirido os direitos sobre a área de recifes do seu descobridor e sustentando que eventual decisão daquela causa (que entendesse que o local seria patrimônio federal) poderia, por conta do stare decisis, importar na aniquilação do direito de propriedade alegado pela empresa Atlantis. Por conta disso, entendeu-se por cabível a intervenção.
A solução preconizada pelo direito norte-americano, fundado exatamente na tentativa do interessado em evitar uma decisão desfavorável a demanda futura da qual faça parte, pode talvez ser transposta para o Brasil. Com a nova sistemática dos mecanismos vinculantes, certamente o mesmo problema enfrentado naquele país ocorrerá aqui, parecendo bastante razoável a adoção de conclusão semelhante àquela lá acolhida.
Essa solução foi, ao menos parcialmente, acolhida recentemente pelo direito brasileiro, pela Lei n. 11.417/06, que trata da edição, revisão e cancelamento de súmulas vinculantes. Como se prevê em seu art. 3o, § 2o, pode o relator admitir a manifestação de qualquer terceiro no procedimento que examina a edição, o cancelamento ou a revisão de súmula vinculante. A alusão a “terceiros”, obviamente, implica concluir que não são só os terceiros interessados (em sua acepção clássica) que poderão intervir. Quaisquer terceiros, independentemente da demonstração de interesse jurídico na questão (desde que atendidos os pressupostos fixados no Regimento Interno do Tribunal), podem ser admitidos a manifestar-se nesses procedimentos. Merece esta solução ser ampliada para atender a todos os feitos dos quais possa resultar decisão vinculante.
5. A NECESSIDADE DE REVISÃO DO CONCEITO DE INTERESSE DE INTERVENÇÃO E DE INTERESSE RECURSAL
Poderá alguém imaginar que a ampliação do conceito de interesse de intervenção não merece ser aceita, já que desnaturaria o instituto da assistência (e daS formas de intervenção de terceiros como um todo), ampliando demasiadamente a participação de terceiros no processo.
Quanto à primeira objeção, parece ser ela incabível. O direito brasileiro, há muito, convive com hipóteses de intervenção de terceiros em que as exigências postas são muito mais simples que aquela que autoriza a assistência. Recorde-se, por exemplo, a figura da intervenção anômala, disciplinada pela Lei n. 9.469/97. Ainda que se possa cogitar de sua inconstitucionalidade, o fato é que esta figura tem sido admitida pelos tribunais e amplamente praticada no cotidiano forense. Seu perfil, como se vê claramente das disposições legais pertinentes, dispensa, para a intervenção, a demonstração de qualquer interesse jurídico, bastando a simples alegação de prejuízo econômico (ainda que indireto).
Ao lado dessa figura, há ainda o já mencionado instituto criado pela lei n. 11.417/06, em seu art. 3º, § 2º. Como visto, no procedimento de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante é admissível a participação de terceiros, independentemente da demonstração de qualquer “interesse jurídico”. Evidentemente, trata-se de medida “discricionária” do relator, que sequer comporta recurso. Porém, também aí se tem instrumento que permite a terceiros sem “interesse jurídico” específico participar de um dos procedimentos mais importantes – porque impacta diretamente todo cenário jurídico nacional – de criação de decisões vinculantes.
Pode-se também apontar para a disseminação, no direito brasileiro, do instituto do amicus curiae, atualmente tratado pelo art. 138, do CPC. Esses sujeitos, admitidos por sua “representatividade adequada”, certamente não se confundem com terceiros juridicamente interessados, em sua acepção clássica, embora possam intervir em processos de relevância. Segundo a lei, esses amici curiae têm até mesmo o direito de recorrer de pelo menos um dos mecanismos de formação de decisão vinculante, a saber, do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138, § 3º, do CPC), a demonstrar que o próprio código admite que um terceiro que não se amolda com exatidão à figura do “terceiro interessado” possa recorrer de uma decisão vinculante.
A presença de tais figuras já incorporadas à tradição nacional torna, ao que parece, facilmente superável a objeção levantada. O sistema processual nacional já está acostumado em aceitar intervenções que dispensam a demonstração de interesse jurídico, de modo que não deve assustar a ninguém a simples ampliação da admissibilidade de terceiros no processo, para atender ao atual perfil do direito processual civil.
Quanto à outra objeção – de que isto poderia tumultuar o feito, permitindo que muitas pessoas interviessem no processo – também não merece ela ser aceita.
É certo que a ampliação desavisada do conceito de “interesse de intervenção” pode tornar inviável a solução da lide, ou da questão jurídica, diante de uma multidão de terceiros no processo formado. Todavia, é preciso pensar também no outro lado do problema: a não admissão desta intervenção ampliada acarretará a violação clara dos direitos de ampla defesa e contraditório de todos estes “terceiros”, que sofrerão (praticamente de forma imutável) os efeitos de uma decisão judicial, sem jamais ter condições de, efetivamente, opor-se a ela. De fato, não se pode admitir que o primeiro processo instaurado a respeito de certa controvérsia acabe por resultar em decisão que será indistintamente aplicada para todos os demais casos, sem que os titulares destes outros direitos tenham, de fato e de maneira concreta, a possibilidade de apresentar seus argumentos e interferir na decisão judicial. A garantia do contraditório, em sua versão moderna, tem sido vista como não apenas o direito de se manifestar, mas de influir efetivamente na decisão judicial. Não há dúvida de que este direito é violado se a decisão judicial já está pronta, mesmo antes de iniciada a ação em que o interessado pretende apontar seus argumentos.
Em razão disso, em que pese a preocupante abertura exagerada do processo para a participação de terceiros, a solução oposta também traz semelhante problema: a violação clara ao contraditório e à ampla defesa, o que tornaria inconstitucional todo o processo. É, portanto, preciso compatibilizar estas duas necessidades processuais, encontrando ponto de harmonia entre elas.
Parece que a sintonia entre tais imposições não pode ser encontrada de forma abstrata, não sendo, pois, aconselhável a determinação legal de novo conceito de “interesse de intervenção”. De fato, apenas a avaliação ponderada do caso concreto, feita pelo juiz, pode ser capaz de localizar o ponto de equilíbrio entre a exagerada participação no processo e a proteção dos interesses dos terceiros em face dos mecanismos vinculantes previstos no sistema processual atual.
É fundamental perceber, tal como faz Owen Fiss, que não é necessariamente a pessoa que deve ter o direito de ser ouvida pelo Tribunal. O que, sim, deve ser sempre preservado é o direito de o interesse ser adequadamente aportado à análise da Corte. O fundamental é que o interesse desses terceiros (e os argumentos que poderiam oferecer) esteja adequadamente representado no processo, sendo indiferente que a defesa desse ponto de vista se dê pessoalmente pela “parte” ou por “terceiro”. Por outras palavras, o conceito de parte, terceiro interessado ou terceiro indiferente, para os fins aqui examinados, acabam mostrando-se irrelevantes. O fundamental é que os diversos interesses e os vários pontos de vista que podem incidir sobre a decisão da questão de direito que se tornará vinculante tenham sido adequadamente demonstrados, debatidos e examinados.
Com essa postura, confere-se adequada proteção aos vários interesses incidentes, evitando que uma multidão de sujeitos ingresse no processo.
Para tanto, deve-se dar crédito ao magistrado para apreciar em que medida a intervenção do terceiro é necessária, quem será admitido a intervir e, aos moldes do que ocorre no direito norte-americano, se a tutela do interesse destes é (ou pode ser) adequadamente feita pela parte do processo ou por outro sujeito que já represente aquele ponto de vista no mecanismo vinculante. Também é de se outorgar ao magistrado poderes de limitar a extensão desta intervenção, permitindo a alguns terceiros que atuem em certas fases do processo (mas não em outras) ou que, aos que intervêm, sejam oferecidos apenas alguns poderes processuais. Normalmente, por exemplo, não será o caso de permitir que o terceiro produza provas, já que sua intenção, ao participar do processo, é defender certa interpretação ou aplicação do direito e não proteger seu específico interesse.
Realmente, quando se nota que os vários mecanismos definidos no art. 927, do CPC, referem-se em sua ampla maioria à fixação de certa interpretação para questões exclusivamente de direito, nota-se que não deve haver espaço par que a participação do terceiro se estenda à demonstração de fatos.
De todo modo, não há dúvida de que esta intervenção deve – embora limitadamente – ser autorizada, já que é a única maneira de preservar os interesses daqueles que não têm seu direito discutido no processo, mas o terão, sem dúvida, atingido pela sentença ou pelo acórdão lá proferido.
Logicamente, seria desejável a previsão legal desta intervenção – com o delineamento de sua estrutura básica. Na ausência desta, todavia, não se pode aceitar sua proibição, sob o argumento simplista de que não há previsão legal para tanto, ou de que esses terceiros não se amoldam à clássica definição de interesse de intervenção ou de interesse recursal.
Assim, no modelo instituído pelo código de processo civil de 2015, parece certo que das decisões tomadas em incidentes de assunção de competência, em incidentes de resolução de demandas repetitivas ou em outros instrumentos dos quais possam resultar decisões vinculantes deve poder participar – e, evidentemente, quando cabível, também recorrer – não apenas as partes e os terceiros interessados, mas também esses terceiros que eventualmente sofrerão as consequências da tese jurídica fixada.
É certo que essa participação não necessariamente será feita de forma pessoal, autorizando que cada um dos sujeitos que possa ser atingido pela tese jurídica deva intervir no feito ou, ao menos, ser convocado para tanto. Porque isso seria impossível – sobretudo diante da eficácia prospectiva da decisão vinculante – deve-se criar mecanismos que sejam capazes de avaliar se os diversos pontos de vista, os inúmeros argumentos e os vários interesses envolvidos sejam efetiva e adequadamente apresentados, discutidos e examinados.
Com isso, parece ser possívle equilibrar a exigência de participação – necessária à preservação do contraditório – e os objetivos de aglutinação da decisão de questão de direito uniforme.
Por Rafael Knorr Lippmann - 02/11/2016
1. PROVA COMO MEIO À CONSECUÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
Prova é o instrumento retórico destinado à formação do convencimento do magistrado sobre as proposições de fato articuladas no processo . Este é um conceito de prova construído a partir de perspectivas jusfilosóficas modernas , que descartam a frieza da verdade formal, ao tempo em que reconhecem a intangibilidade da propugnada verdade real .
Ao formular pedido, o autor precisa alicerçá-lo em fatos (art. 319, III, CPC); ao resistir, o réu tem o ônus de negá-los e/ou de lançar mão de fatos (processualmente) novos capazes de afastar a eficácia jurídica que o autor pretende fazer incidir sobre os fatos e narrou (art. 336, CPC). Neste último caso, caberá ao autor impugnar os fatos trazidos ao debate pelo réu (art. 351, CPC), instaurando-se, sempre que deduzida a alegação de fato por uma parte e a negação de fato por outra, a controvérsia.
Trata-se, pois, a prova, do instituto processual concebido com a missão de aproximar o julgador da verdade possível a respeito dos fatos articulados e debatidos pelos sujeitos do processo para, a partir de seu delineamento, tornar-se viável a prestação de tutela jurisdicional.
Destas premissas, vislumbra-se que a prova é classicamente concebida como meio (convicção do magistrado sobre os fatos controvertidos) para que o processo atinja seu fim (aplicação do ordenamento jurídico sobre os fatos para definição do conflito levado a juízo).
Tanto assim que, no CPC/1973, os dispositivos atinentes à disciplina legal da prova estavam localizados no Capítulo VI do Título VIII do Livro I (arts. 332 a 443) que moldavam a fase instrutória do procedimento comum (ordinário): os fatos relevantes articulados para obter o acolhimento/rejeição de um pedido na fase postulatória, quando configurada a controvérsia a seu respeito (identificada a partir da definição dos pontos controvertidos na decisão saneadora - fase ordinatória), precisariam ser esclarecidos na fase intsrutória para que, então, fossem reunidos os elementos necessários à prolação da sentença de mérito (fase decisória).
Contemplou ainda o CPC revogado a hipótese em que determinada prova, por risco de perecimento ou inviabilização definitiva de sua produção, não poderia aguardar o início da fase instrutória (ou sequer o ajuizamento da demanda) para ser produzida, dedicando a ela os procedimentos cautelares típicos a exibição (arts. 844 e 845) e a produção antecipada de provas (arts. 846 a 851).
O exemplo tradicionalmente lembrado é o do acidente de trânsito no qual uma das partes envolvidas tenciona realizar rapidamente o reparo em seu veículo para inviabilizar um futuro exame pericial capaz de comprovar que o automóvel foi batido. Aguardar a propositura e o desenvolvimento da ação de reparação de danos até o advento da fase instrutória para somente então dar início à perícia significaria tornar impossível a realização da única prova capaz de demonstrar o fato constitutivo do direito à indenização pretendido pelo autor e, consequentemente, redundaria numa prestação jurisdicional ineficiente.
Justamente por isso, previu o CPC/1973 que em situações como tal se poderia lançar mão da medida cautelar preparatória de produção antecipada de provas (art. 796) para assegurar a realização da perícia e, com a prova produzida, restaria conservada a efetividade da tutela jurisdicional que viria a ser futuramente prestada quando do ajuizamento da pretensão indenizatória.
O Código anterior também previa a possibilidade de, quando durante o trâmite da demanda de conhecimento , para fazer prova dos fatos articulados uma parte necessitasse da exibição de documento ou coisa que se encontrasse em poder da outra ou mesmo de terceiro, pleitear-se a exibição nos próprios autos. Tratava-se de procedimento incidental, disciplinado nos arts. 355 a 363, destinado à obtenção do documento ou coisa, viabilizando a produção da prova em juízo.
O destaque, para os fins deste ensaio, é o traço marcante comum às técnicas processuais relacionadas à prova encartadas no CPC/1973: tanto nas cautelares típicas quanto na exibição incidental, a preocupação do legislador foi a criação de instrumentos capazes de assegurar a produção da prova enquanto meio (formação do convencimento do magistrado) destinado a consecução de um fim diverso (acolhimento/rejeição do pedido). No exemplo anteriormente citado: o autor busca a realização da prova pericial (meio) com o intento de obter a procedência do pedido de condenação do réu ao pagamento de indenização pelos danos causados (fim).
Aparentemente, o CPC/2015 manteve a estrutura legal do seu antecessor em matéria probatória: manteve a possibilidade de se pleitear, a título de tutela provisória de urgência cautelar antecedente a produção de uma prova necessária a comprovação de fato a ser articulado em demanda futura quando houver risco de perecimento da prova ou impossibilidade de sua produção no futuro ; bem como de postular a exibição incidental de documento ou coisa que esteja em poder da parte contrária ou de terceiro (arts. 396 a 404).
Um exame detido, porém, revela que o novo Código deu um passo além, tipificando em seu texto, para além do direito instrumental à prova, o direito material à prova como um direito "próprio" e que, como tal, pode constituir o objeto de uma demanda, cujo pedido (único) consistirá na realização da prova, pura e simplesmente.
2. PROVA COMO DIREITO MATERIAL "PURO"
Muito antes de se iniciarem os debates sobre a elaboração de um novo Código de Processo Civil, a doutrina já se debruçava sobre o estudo do direito à prova não apenas como um direito instrumental, destinado à “abertura de caminho” para a comprovação de um outro direito, objeto da lide, mas como um direito material e autônomo que, nesta qualidade, pode ser ele próprio o objeto do próprio pedido de prestação de tutela jurisdicional .
Na casuística, o exemplo mais simples é o que ao mesmo tempo revela com toda a clareza a perspectiva do acesso à prova como direito material: X e Y celebram contrato escrito em via única, mantida sob a posse de Y. Independentemente de pretender cobrar dívida, rever ou anular cláusula, etc., os contratantes possuem direito material de acesso ao contrato e, portanto, caso Y lhe negue acesso, X poderá buscar a tutela jurisdicional para a satisfação de seu direito.
O próprio CPC/1973, ao disciplinar o procedimento “cautelar” de justificação, trazia um embrião (já que limitado exclusivamente à produção de prova testemunhal, como previa seu art. 863) da ideia de que alguém poderia postular em juízo com o objetivo único de obter prova, independentemente de risco de seu perecimento e, mais ainda, independentemente de sua utilização, ou não, num processo judicial futuro .
Ainda no âmbito legislativo, mais recentemente a L. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), previu em seu art. 22 o cabimento de ação para “formar conjunto probatório (...), em caráter incidental ou autônomo”, quando o interessado necessitar de informações de “registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet”.
Trata-se de importante passo em direção ao reconhecimento legal do direito autônomo de acesso a prova, pois do dispositivo legal extrai-se a concepção de que o interessado, independentemente de qualquer outra pretensão que possa vir (ou não) a ter, é titular do direito de acesso aos seus registros mantidos em determinada aplicação de internet. Se, por qualquer motivo, o responsável pela guarda de tais informações negar acesso a elas, poderá o interessado em ação autônoma, proposta exclusivamente com este fim, “requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento” de ditas informações.
3. A TUTELA PROCESSUAL DO DIREITO AUTÔNOMO À PROVA MEDIANTE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA NO CPC/2015
Inobstante sua relevância, nenhuma das previsões legislativas acima mencionadas dispôs tão claramente sobre o direito autônomo de acesso à prova quanto o fez o CPC/2015 ao inserir na Seção II, Cap. XII, Tít. I, Livro I da Parte Especial (arts. 381 a 383) o procedimento intitulado “Da produção antecipada da prova”.
Note-se que o instituto tem natureza jurídica de ação, ou seja, decorre do direito constitucional subjetivo de demandar prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF) para um fim pontual e específico: obter acesso à prova, como direito material de cunho satisfativo.
Mais do que isso, embora a nomenclatura utilizada possa levar à ideia de que se trata de uma ação acessória (já que, se a produção da prova é antecipada, ocorre antes de algo, sendo que este “algo” – leia-se: um processo judicial – deveria inexoravelmente acontecer depois, no futuro, ou mesmo durante, no presente), os arts. 381 a 383 do CPC/2015 trazem em seu bojo uma ação autônoma, que tem origem no “puro” direito material de acesso à prova, cujo objetivo único consistirá na realização da prova, seja ela qual for , não dependendo o seu acolhimento da demonstração de risco do perecimento da prova, tampouco da necessidade de sua utilização em ação futura.
A leitura isolada do art. 381, inciso I, poderia levar à conclusão diversa, no sentido de que tal procedimento nada mais seria do que uma “releitura” da extinta ação cautelar de produção antecipada de provas, já que exige a demonstração do “fundado receito de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação”, demarcando não só a necessidade de demonstração da urgência na obtenção da prova, como também revelando a acessoriedade, a instrumentalidade e a preventividade da medida, características estas historicamente ligadas à tutela cautelar .
Tal hipótese, de fato, amolda-se quase que literalmente àquela que autorizava o ajuizamento da cautelar de produção antecipada de provas prevista no art. 849, do CPC/1973 . Entretanto, a leitura integral do dispositivo revela que não só a antiga justificação foi incorporada à ação de produção antecipada de prova (art. 831, §5º), mas especialmente que a sua propositura não depende do perigo na demora de uma demanda futura atingir a fase instrutória (rectius: do risco de perecimento da prova).
Os incisos II e III, do art. 381, revelam claramente que o direito à prova pode ser postulado em juízo sempre que: i) a prova seja suscetível de viabilizar autocomposição ou (qualquer) outro meio de solução de conflito (inciso II); ou ii) o simples conhecimento de determinados fatos (extraídos da prova) possa “justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.
Nestes casos, muito ao revés de configurar uma demanda preparatória (ou antecedente, como prefere o NCPC), a produção “antecipada” de prova terá o condão diametralmente oposto: evitar o ajuizamento de qualquer outra demanda futura em decorrência, justamente, da convicção formada a partir da prova produzida.
É dizer: o CPC/2015 consolidou, legalmente, a premissa de que o direito à prova pode assumir não só natureza instrumental, mas também se afigura como um direito material, tutelável de per si, através de ação autônoma que segue o procedimento especial previsto nos arts. 381 a 383.
Bem identificada sua natureza, acredita-se que o instituto ficaria melhor situado se tivesse sido encartado no rol de procedimentos especiais constante do Título III, do Livro I da Parte Especial do Código. Mais do que isso, ao invés do nome “produção antecipada de prova”, melhor seria tê-lo batizado com a alcunha já adotada na doutrina e que, acreditamos, corresponde com maior fidelidade tanto à natureza como ao objetivo do instituto: ação autônoma de produção de prova.
_____________________________
1 Doutorando e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro Fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual. Professor de Processo Civil em cursos de graduação e pós-graduação. Advogado.
2 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: RT, 2001. p. 170.
3Ver, por todos: HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia, entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. V. 1.
4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção. 3. ed. São Paulo: RT, 2015. p. 29-74.
5 Tanto assim que, embora as demandas cautelares em geral pudessem ser tanto preparatórias como incidentais ao processo principal (art. 796, CPC/1973), nos termos do art. 844, a cautelar típica de exibição tinha cabimento somente na forma preparatória, já que, uma vez proposta a ação principal, o mesmo resultado poderia ser obtido dentro dela própria, sem a necessidade do manejo da medida cautelar (processualmente) autônoma, valendo-se a parte do procedimento da exibição incidental disciplinado nos arts. 355 e ss., do CPC/1973.
6
“(...) o pedido cautelar poderá ser antecedente, nos termos dos arts. 305 e seguintes do CPC/2015. Nada impede a antecipação do meio de prova, como tutela provisória de urgência cautelar, antes do ajuizamento do pedido principal”. (MARINS, Graciela. Comentários ao art. 381, CPC/2015. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; et al. (Coords.). Código de Processo Civil anotado. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016. p. 541.)
7
Ovídio Baptista há longa data afirmava que “a exibição pode constituir-se em simples expediente probatório, sem que a parte exerça pretensão à segurança e pode derivar de direito autônomo à exibição que não é também cautelar e muito menos expediente probatório” (destacamos). SILVA, Ovídio A. Baptista da. As ações cautelares e o novo processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 144). Ao tratar da produção antecipada de provas Piero Calamandrei refletiu sobre sua natureza cautelar, admitindo-aquando a finalidade fosse a de antever e de reservar para acontecimentos futuros, como materiais brutos destinados a uma construção ainda em projeto, elementos que servem para a formação de um processo de conhecimento futuro (...) na falta do que, esses procedimentos cautelares ficariam inutilizados, como todas as precauções tomadas em vista de um perigo que depois não acompanha o evento temido”. (destacamos). CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Tradução: Carta Roberta Andreasi Bassi. Campinas: Servanda, 2000. p. 57-58.
8
Na dicção literal do art. 861, a justificação tinha cabimento quando alguém pretendesse “justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para simples documento e sem caráter contencioso”. Desta forma, como lecionava Ovídio Baptista, não obstante situada topograficamente no Livro III, do CPC/1973, a ação de justificação “não é cautelar, bastando-lhe o simples interesse na constituição da prova de algum fato ou relação jurídica, sem que o requerente alegue sequer urgência para a coleta da prova”. (SILVA, Ovídio A. Baptista. Do processo cautelar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 471).
9
Como explica Flávio Luiz Yarshell, “o CPC de 2015 positivou o que se pode qualificar como direito autônomo à prova. (...) A medida probatória autônoma encontra fundamento no poder ou direito de ação (CF, art. 5º, XXXV), que tem amplitude suficiente para autorizar o interessado, sem propriamente invocar a declaração do direito material em dado caso concreto, a postular atuação estatal dirigida à busca, obtenção e produção de providências de instrução. O direito à prova – com tal concepção – se afeiçoa não apenas ao escopo jurídico da jurisdição, mas especialmente ao escopo social, de pacificação pela superação da controvérsia” (grifamos). YARSHELL, Flávio Luiz. Comentários ao art.381, CPC/2015. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; et al. (Coords.). Breves comentários ao novo CPC. 3. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 1150.
10 “É, pois, ação que busca o reconhecimento do direito autônomo à prova (...) que se esgota na produção da prova – tão somente”. (DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. Vol. 2. 11. ed. Salvador: Juspodium, 2016. p. 141.). Consigna-se que, para os autores, quando o objeto da demanda recair sobre a prova documental, a ação cabível será a ação de exibição. (Idem. p. 142). Em que pese o destaque quanto ao nomen iuris, ao tratar especificamente da referida ação de exibição, invocam expressamente os arts. 381 a 383: “a exibição de coisa ou documento contra a parte adversária poderá ocorrer por ação autônoma. Seria uma ação probatória autônoma, nos termos em que autorizada pelos arts. 381-383, CPC” (Idem. p. 235).
11 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar. 23. ed. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2006. p. 51-56.
12 MARINS, Graciela. Comentários ao art. 381, CPC/2015. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; et al. (Coords.). Código de Processo Civil anotado. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016. p. 540.
13 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 660.
Por André Luiz Bäumi Tesser - 31/10/2016
A tutela cautelar e a antecipação de tutela estão tratadas no novo Código de Processo Civil brasileiro especialmente nos artigos 294 a 310, topograficamente inseridos no Livro V, da Parte Geral, denominado “Tutela Provisória”. Nesse particular, portanto, veja-se quer o novo Código dá novo tratamento à temática dos chamados “provimentos de urgência”, topograficamente situando a tutela cautelar e a antecipação de tutela em um mesmo Livro. Tal posicionamento é bem diverso daquele que a legislação codificada de 1973 adota, mesmo após suas reformas. Isso porque, no CPC/1973, a tutela cautelar é vista como tertium genius de atividade jurisdicional, e, por isso é disciplinada em Livro próprio (Livro III – Do Processo Cautelar), enquanto a antecipação de tutela, enquanto técnica genérica, é disciplinada no Livro I, do Código (Processo de Conhecimento), especialmente nos artigos 273 e 461, § 3º.
Em verdade, a nova legislação aponta que a “tutela provisória” pode ser fundada com base na urgência ou na evidência. Insere ainda as medidas urgentes ora mencionadas como espécies do gênero tutelas provisórias de urgência. É o que se depreende do seu artigo 294, que determina que: “A tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência. Parágrafo único. A tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental”. Mais especificamente, aliás, no Título I, do citado Livro, denominada “Tutela de Urgência”.
A partir de uma leitura sistemática, é possível dizer que a nova legislação adota sob o signo tutela de urgência, a tutela provisória que tem por fundamento a existência de um perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. Tal definição parece emergir de uma leitura a contrario sensu do artigo 311, do novo Código, que, ao estabelecer a chamada Tutela da Evidência, a diferenciou da tutela de urgência justamente porque independe da demonstração das citadas situações de perigo.
Portanto, tutela cautelar e antecipação de tutela, para o novo Código de Processo Civil brasileiro, podem ser definidas como tutelas provisórias de urgência. Ou seja, tutelas jurisdicionais que não têm o condão de serem definitivas e que são concedidas com fundamento (e em razão de) um perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo.
Sobre a temática objeto desse ensaio, naturalmente há várias questões a serem discutidas. Todavia, opta-se por abordar duas perspectivas gerais importantes.
A primeira diz respeito à inexistência de distinção quanto aos requisitos gerais positivos para a concessão das medidas. O caput do artigo 300 do novo Código de Processo Civil especialmente dispõe que: “A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.
Assim, depreende-se de uma leitura simples do citado dispositivo legal que os pressupostos que precisam estar presentes para a concessão da tutela de urgência, seja ela de natureza antecipada ou cautelar, são os mesmos, quais sejam: a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo .
A outra perspectiva é a adoção de procedimentos diversos para cada uma daquelas espécies de tutela de urgência apontadas no novo Código de Processo Civil, especialmente quando forem requeridas de forma antecedente, ou seja, na dimensão da nova legislação, antes de ajuizada ação que busca a tutela jurisdicional definitiva.
O pedido de tutela antecipada antecedente impõe ao autor, quando a medida for concedida, o ônus de aditar a petição inicial, com a complementação da sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em quinze dias, ou em outro prazo maior que o juiz fixar (artigo 303, § 1º, inciso I), sendo que, o não antendimento a essa regra implica a extinção do processo sem resoluçao do mérito (artigo 303, § 3º).
Ainda, a tutela antecipada requerida em caráter antecedente pode tornar-se estável, se da decisão que a concede não for interposto o respectivo recurso (artigo 304, caput), salientando-se que o recurso cabível contra tal decisão é o agravo de instrumento, na forma do artigo 1.015, inciso I, da nova legislação.
Assim, e porque o artigo 304, § 1º, determina que, no caso de estabilização da tutela antecipada, o processo será extinto, caso não haja a interposição de recurso contra a decisão que conceder a tutela antecipada em caráter antecedente, o autor não precisará aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, na forma do artigo 303, § 1º, inciso I.
No caso da tutela antecipada antecedente, e após o aditamento do pedido inicial, com a dedução do pedido de tutela final, o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação na forma do art. 334, sendo que, se não houver autocomposição, o prazo para contestação será contado na forma do art. 335, como estabelece o artigo 303, § 1º, inciso II.
Por outro lado, no caso de pedido de tutela cautelar antecedente, a efetivação da medida concedida imporá ao autor o ônus de formular o pedido inicial no prazo de 30 (trinta) dias, que será apresentado nos próprios autos da medida cautelar, independentemente de adiantamento de novas custas processuais (artigo 305, caput). Caso o autor não formule o pedido principal no prazo assinalado, a medida cautelar perderá sua eficácia, na forma do artigo 309, inciso I .
De se destacar, portanto que, o novo Código de Processo Civil não previu a estabilização da tutela cautelar concedida em caráter antecedente, como fez com a tutela antecipada de igual natureza temporal.
No procedimento da tutela cautelar antecedente, a nova legislação prevê que o réu será citado para, no prazo de cinco dias, contestar o pedido e indicar as provas que pretende produzir (artigo 306).
Dessa simples análise, parece que a nova legislação padece do mal da bipolaridade. Ao mesmo tempo em que indica não haver necessidade de estabelecimento da diferença entre a tutela cautelar e a tutela antecipada, no que tange aos seus requisitos positivos de concessão, ressalta ser muito importante a distinção entre aquilo que considerou espécies do gênero tutela provisória de urgência, especialmente a partir da possibilidade ou não de estabilização dos efeitos da medida concedida e, também, com a adoção de procedimentos diferenciados.
A título conclusivo, e a partir da análise da distinção entre tutela cautelar e tutela antecipada no novo Código de Processo Civil, é possível apontar as seguintes considerações: (i) a nova legislação reafirma a ideia mais antiga e clássica de que a distinção entre as medidas se dá a partir do resultado com ela obtido para o direito material, posto que a tutela cautelar conservará o direito material somente, ao passo que a tutela antecipada o realizará plenamente; (ii) em razão disso, a tutela cautelar e a tutela antecipada são apresentadas como espécies do gênero tutela provisória de urgência; (iii) tal concepção levou à ausência de distinção de requisitos positivos para a concessão de cada uma das medidas, sem a criteriosa diferenciação, inclusive, das diversas situações de perigo possíveis de condicionar medidas urgentes.
Assim, a nova sistemática dos provimentos de urgência deverá ser tratada com cuidado, especialmente pelos magistrados quando de sua eventual concessão, uma vez que a definição da natureza da medida a ser concedida repercutirá de forma inegável tanto no plano material (com a possibilidade ou não de sua estabilização) quanto no plano processual (com a adoção de procedimentos diferentes).
__________________
1 Advogado, professor universitário de Graduação e de Pós-Graduação, Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Doutorando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
2 Isso porque é possível apontar, no plano legislativo, ao menos uma distinção quanto a um requisito negativo para concessão das medidas. O novo Código de Processo Civil, no § 3º, do artigo 300, determina que “A tutela de urgência, de natureza antecipada, não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão”. Assim, é de se dizer que o perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão é requisito negativo para a concessão da tutela de urgência de natureza antecipada, permitindo uma interpretação a contrario sensu de que tal pressuposto não se aplica à tutela de urgência de natureza cautelar. A ausência da distinção no que tange aos requisitos positivos para concessão da tutela cautelar e da antecipação de tutela é reforçada novo Código de Processo Civil em seus artigos 303 (que trata da tutela antecipada requerida em caráter antecedente) e 305 (que trata da tutela cautelar requerida em caráter antecedente).
3 Também são razões para a cessação da eficácia da tutela cautelar concedida em caráter antecedente a não efetivação da medida em 30 (trinta) dias (artigo 309, inciso II) e o julgamento de improcedência do pedido principal formulado ou a extinção do processo sem resolução de mérito (artigo 309, inciso III). Em todos os casos de cessação da eficácia da tutela cautelar tratados no artigo 309, da nova legislação, fica vedada a propositura a renovação do pedido, salvo por novo fundamento (artigo 307, Parágrafo Único).
Por Fernanda Pederneiras- 01/11/2016
No último dia 31 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou julgamento sobre a validade do tratamento diferenciado da sucessão do companheiro, em razão das disposições dos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil. A questão foi levada a julgamento pelo Min. Luís Roberto Barroso, relator do Recurso Extraordinário nº 878694/MG, após o reconhecimento da repercussão geral do tema em abril de 2015.
O recurso foi interposto pela companheira do falecido, que não deixou nem ascendentes nem descendentes, mas apenas três irmãos. O Tribunal de origem (TJMG), aplicando o disposto no art. 1.790, III, do CC/02, concedeu à companheira sobrevivente direito à herança sobre um terço dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, destinando aos irmãos a parte restante, que incluía também bens particulares. Se casada com o falecido, a companheira receberia a totalidade dos bens por ele deixados.
Em fundamentado voto, Luís Roberto Barroso salientou que, estando o direito sucessório vinculado ao conceito de família, de continuidade patrimonial como fator de proteção, mostra-se inadmissível qualquer distinção entre os modelos de família equiparados pela Constituição Federal de 1988, sob pena de afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. O Min. ressaltou, ainda, que o regime sucessório estabelecido atualmente pela lei civil às uniões estáveis viola os princípios da proporcionalidade como vedação à proteção estatal insuficiente e da vedação ao retrocesso, na medida em que até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, cônjuges e companheiros ocupavam a mesma posição na ordem de vocação hereditária e tinham direito tanto ao usufruto como ao direito real de habitação (leis 8.971/94 e 9.278/96).
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) participou do julgamento como amicus curiae para defender a inconstitucionalidade do tratamento sucessório conferido aos companheiros pelo art. 1.790 do CC/02. Em sustentação oral da Profª Ana Luíza Nevares, o IBDFAM requereu o reconhecimento jurídico da equiparação entre cônjuge e companheiro no âmbito sucessório, pugnando pela aplicação dos mesmos dispositivos legais previstos para a sucessão das famílias provenientes do casamento.
O voto do Relator, acompanhando pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luis Fux, Celso de Mello e Carmen Lucia, pugnou pela exclusão do art. 1.790 do Código Civil e aplicação do mesmo regime sucessório aos cônjuges e companheiros, nos termos do art. 1.829. Em observância à segurança jurídica, Barroso propôs a modulação dos efeitos da decisão, para atingir apenas os processos judiciais em que não tenha havido o trânsito em julgado da sentença de partilha e os inventários extrajudiciais nos quais não tenha sido lavrada a escritura pública. O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do Min. Dias Toffoli e ainda não tem previsão de pauta.
Por Phillip Gil França- 03/02/2017
Legalidade é, basicamente, saber lidar com seus limites frente ao mundo, bem como, saber lidar com os limites do mundo frente a você. O sentido e as fronteiras de eficácia da norma constitucional da legalidade (caput do art. 37) são definidos no momento da aplicação desse sentido de legalidade à concreta realidade a que se destina.
Logo, apenas quando se determina a sujeição da Administração à legalidade, em situações reais e determinadas – ao regular o aspecto geral e abstrato da lei – pode se observar a abrangência e o objeto a que se destina o pilar da atuação administrativa estatal, qual seja: agir conforme o princípio da legalidade sob uma perspectiva substancial.
Nesse prisma, o princípio da legalidade, como delineador da atividade administrativa estatal, é efetivado com a concreta realização do direito na realidade a qual é submetido. Significa, então, que enquanto não ocorre a conclusão da filtragem axiológica jurídica do ato administrativo aplicado, acompanhado de motivação proporciona ao seu impacto no mundo real, o princípio da legalidade não presta para delimitar a Administração Pública, conforme determina a Constituição.
A mera retórica de agir nos limites da lei, como dicção do caput do art. 37 da CF/88 não adequa as tarefas administrativas do Estado aos objetivos fundamentais da República estabelecidos no art. 3º da Constituição.
Agir conforme a legalidade é agir conforme o sistema jurídico estabelecido para proteger, promover e realizar o Estado necessário e proporcional para todos, isonomicamente.
Nesse sentir, princípio da legalidade é instrumento limitador da Administração Pública para que, quando aplicado em situações individualizadas, viabilizem o constante desenvolvimento intersubjetivo dos partícipes do Estado, indistintamente. E porque limita e, muitas vezes, restringe, mister é a apresentação de uma correspondente motivação robusta para se estabelecer o nexo causal entre a produção do ato administrativo e o interesse público concreto a ser promovido por tal atuação estatal.
Logo, além da mera legalidade estrita, além da juridicidade que vincula o agir administrativo conforme a lei e o direito, o princípio da legalidade fundamenta, estrutura e estabelece interligações desenvolvimentistas de todo o sistema estatal.
Assim, pensar em legalidade é idealizar a aplicação da lei como sistema promotor de desenvolvimento objetivo e subjetivo dos envolvidos, direta e indiretamente, quando da atividade administrativa do Estado.
Nesse universo da legalidade administrativa substancial, deixa-se uma questão: qual justiça queremos? A da legalidade real.
Entretanto, vale lembrar que justiça nas mãos de poucos é, quase sempre, injustiça. Isso porque, "justiça" depende de uma concreta interatividade social entre indivíduos que se identificam e se reconhecem em standards culturais mínimos de como alcançar o desenvolvimento pessoal e de seus pares em um determinado tempo e espaço.
É necessário o diálogo das fontes, das causas, dos resultados e das consequências para o afastamento da aflição da injustiça em casa indivíduo, em cada grupo, em cada nicho social, em cada ente representativo de Estado e em cada manifestação de tutela do cidadão em nome de um desenvolvimento comum, a partir de renúncias recíprocas e proporcionais, que apenas o tal "senso de justiça" pode indicar a direção.
Torna-se essencial, então, para os indivíduos sedentos de desenvolvimento a sistematização intersubjetiva desses standards culturais mínimos, para se estabelecer, objetivamente, caminhos bem asfaltados de como agir e reagir em um determinado grupo que almeja evoluir para melhor aproveitar o tempo que dispõe, sempre idêntico para todos, mas que pode, constantemente, também, ser melhor gerenciado.
Logo, a noção do agir corretamente e do reprovar o equivocado torna-se luz nos escuros túneis do império da autotutela social, bem como, da imposição da unilateral vontade do mais forte.
Nesse sentir, a densificação dos valores em princípios e, após, em regras, conformam sistemas que determinam o legal, em conformidade com o correto, estabelecido de forma objetiva e isonômica para todos, em razão de todos, bem como, indica a ideia de reprovação do errado e dos instrumentos de reconstituição das consequências reais e jurídicas das agressões ao sistema de legalidade estabelecido.
Destarte, passamos a seguir e a cobrar que sigam passos de legalidade nos caminhos constitucionalmente ladrilhados de busca de um melhor futuro permanentemente renovado - a partir da "legalidade", como valor que limita o meu agir conforme critérios de fazer o correto, mediante standards objetivamente estabelecidos e, nesta mesma lógica, de afastar o errado, limitando a minha e as demais liberdades, em nome de uma proteção pessoal frente aos outros e de uma proteção dos outros frente a mim.
Para tanto, o agir administrativo precisa estar voltado para uma Justiça e uma Legalidade estatal a partir de suas consequências no mundo real.
No sentir-se justiçado, em um ambiente regulatório estatal, faz-se necessário a sensação de atendimento do que precisa para si, a partir da realização do que é necessário para se realizar como um ser humano digno de limites de suas ações, conforme a limitação das ações dos demais frente a si próprio.
O justo é o que não extrapola o que se deve fazer e o que devem fazer em face de todo aquele titular de direitos que lhe trazem a sensação de justiça, reciproca, proporcional e sustentável para que o homem justo – e promotor de justiça – possa viabilizar um renovado mundo de liberdades limitadas por justiças intersubjetivas contrapostas.
Ou seja, depende-se, ainda e muito, das rotinas de legalidades estabelecidas pelo Estado para que os humanos entendam que a justiça que procuram estão atreladas à justiça que promovem.
Nesse sentir, roteiros estabelecidos de ações e repercussões, conforme critérios substanciais de legalidade, ainda são importantes e precisam ser considerados sob a perspectiva das consequências no mundo real.
A justiça está aqui, não apenas em um processo.
Por Ingo W. Sarlet e Jayme W. Neto - 03/02/2017
RESUMO: O presente artigo discute, em perspectiva jurídico-constitucional, a realização do interrogatório no início ou no final da instrução em processo penal, avaliando o problema à vista das exigências da ampla defesa e do devido processo legal e da assim designada dimensão objetiva dos direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais; processo penal; interrogatório do réu.
SUMÁRIO: 1 Introdução: apresentando e delimitando o problema; 2 As razões em causa e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal; 3 A fundamentação constitucional: máxima eficácia das normas de direitos fundamentais e a sua respectiva dimensão objetiva; Conclusão.
1 INTRODUÇÃO: APRESENTANDO E DELIMITANDO O PROBLEMA
Diferentemente do que prevê o art. 400 do Código de Processo
Penal brasileiro (doravante apenas CPP), de acordo com o qual
o interrogatório do denunciado deverá ser realizado ao final da
fase instrutória, após a inquirição das testemunhas, são diversos os diplomas
legislativos (com destaque para o art. 57 da Lei de Drogas e para a legislação penal
eleitoral) que preveem que seja tal ato realizado – como, de resto, correspondia
à regra antes da alteração do CPP – na fase inicial do processo, ou seja, antes da
coleta da prova testemunhal.
Muito embora a ressalva estabelecida no próprio art. 400 do CPP, no
sentido de que exigência do interrogatório ao final da instrução não é aplicável
a procedimentos que obedecem a rito previsto em lei especial, sobreveio
relativamente acirrada discussão sobre a legitimidade constitucional de tal
previsão, já que a realização do ato depois da inquirição das testemunhas teria o
condão justamente de assegurar ao denunciado a possibilidade de se manifestar
– em homenagem ao direito de ampla defesa – por último. Contudo, importa
ter em conta que em causa não está somente a garantia (direito fundamental)
da ampla defesa, mas também aspectos de segurança jurídica e mesmo questões
relevantes em matéria de interpretação constitucional e compreensão dos
critérios de solução de antinomias jurídicas.
Por outro lado, verifica-se que a jurisprudência segue dividida e não fornece
referenciais seguros, havendo tanto Magistrados que acabaram superando o
critério da especialidade e passaram a realizar o interrogatório ao final quanto
os que seguem, especialmente em se tratando da legislação de drogas, colhendo
a versão do réu na fase inaugural da instrução.
As razões esgrimidas em prol da manutenção do interrogatório no
início do processo são diversas e merecem toda a consideração, razão, aliás, da
própria existência deste texto. Ademais, não se cuida apenas de estabelecer o
momento constitucionalmente correto para a coleta do interrogatório, mas sim
de identificar as consequências jurídicas advindas de sua desconsideração.
Assim, por exemplo, é possível invocar o argumento de que o interrogatório no
início, de modo suficiente e eficaz, assegura o contraditório e a ampla defesa.
Além disso, por razões de segurança jurídica, assume relevo a circunstância
de que, embora aplicando não apenas a lei especial, mas também cumprindo a
própria ressalva do art. 400 do CPP, a declaração de nulidade do ato realizado
no início da instrução estaria a consagrar uma espécie de inconstitucionalidade
superveniente por força de alteração de lei ordinária geral, sem prejuízo da
instabilidade daí resultante3.
Assim, esboçada a questão, o que se pretende é avaliar as razões favoráveis
e contrárias, especialmente tal como esgrimidas na esfera jurisprudencial, ao
interrogatório no final da instrução, mesmo no caso de previsão diversa em lei
especial, quanto à sua consistência constitucional, designadamente à vista da
dimensão organizatória e procedimental dos direitos fundamentais (vinculada
ao que se convencionou designar de sua dimensão objetiva), com destaque para
o direito-garantia da ampla defesa e a correta aplicação dos princípios diretivos
da interpretação constitucional. Além disso, convém frisar, há que dialogar com
as exigências nucleares da segurança jurídica, incluindo o respeito a precedentes
dos Tribunais Superiores, especialmente no que diz respeito ao problema das
consequências advindas da violação de eventual direito de matriz constitucional
e da prática decisória do Supremo Tribunal Federal (STF).
2 AS RAZÕES EM CAUSA E O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como já sinalizado, a realização – em todos os procedimentos criminais
(mesmo os previstos em legislação especial) – do interrogatório ao final da
instrução tem sido amplamente discutida nos diversos segmentos do Poder
Judiciário nacional4, tendo, ademais, aportado nos Tribunais Superiores,
designadamente, para o efeito de nossa análise, dada a relevância constitucional
da matéria, o STF. Nas instâncias ordinárias, igualmente segue controversa
a questão, como dá conta, em caráter meramente ilustrativo, o caso da
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde se verifica
dissídio sobre a matéria5. Todavia, antes de apresentar e comentar a orientação
do STF e encaminhar a nossa posição sobre o tema, convém esboçar de forma
mais precisa o problema e suas principais dimensões.
Conforme alteração trazida pela Lei nº 11.719/2008, o art. 400 do Código
de Processo Penal passou a ter a seguinte redação:
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a
ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias,
proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido,
à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação
e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no
art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos
dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas
e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
O procedimento ordinário, ao qual se refere o texto do mencionado
art. 400, tem aplicação quando inexistente previsão em ordem de legislação
especial ou outra disposição em sentido contrário, na hipótese de sanção
máxima cominada igual ou superior a 4 (quatro) anos de privação de liberdade
(art. 394, § 1º, inciso I). Portanto, haveria óbice a arrostar já na partida, pois o
procedimento ordinário é uma das modalidades do procedimento comum
(art. 394, § 1º, do CPP) e cederia diante de lei especial, nos termos da própria
Lei nº 11.719/2008, que incluiu o § 2º no art. 394. Mais ainda: quando a nova
legislação (Lei nº 11.719/2008) pretendeu aplicação geral, sem ressalva de
lei especial, explicitamente o comandou (precisamente no § 4º do art. 394 em
comento), caso das disposições dos arts. 395 a 398 do Código de Processo Penal.
De qualquer sorte, a despeito da ressalva estabelecida no que diz com
disposição de caráter especial em sentido diverso, passou a ganhar (mais) espaço
a tese de que a realização do interrogatório ao final do procedimento, nos termos
da atual redação do art. 400 do CPP, garante ao acusado a plenitude do direito
constitucional à ampla defesa e ao contraditório. A aplicação disso aos procedimentos
regrados por legislação especial (como é o caso, pela sua relevância, da assim
chamada Lei de Drogas [Lei nº 11.343/2006] ou mesmo na seara da legislação
eleitoral), atenderia, segundo determinada linha argumentativa, ao princípio
da máxima eficácia e efetividade da Constituição, uma das linhas mestras
da interpretação constitucional6, ademais de se tratar de desdobramento
da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que implicam deveres de
proteção do Estado e exercem uma função organizatória e procedimental, que,
entre outras derivações, estabelece um dever de assegurar a via procedimental
mais efetiva em termos de proteção dos direitos fundamentais, desde que
disso não resulte compressão desproporcional de outros direitos e garantias
de matriz constitucional. Tal linha de argumentação carece, todavia, de maior
aprofundamento, notadamente tendo em conta as peculiaridades do problema
concreto que ora se discute.
Nesse contexto, é possível invocar o argumento de que a ressalva expressa
à existência de “disposições em contrário” (§ 2º do indigitado art. 394 do Código
de Processo Penal) – a indicar que, inexistindo, na Lei de Drogas, regra explícita
determinando seja o interrogatório realizado ao final da instrução, ou mesmo
havendo vedação de tal possibilidade (como é o caso, precisamente, do que
se pode inferir da leitura do caput do art. 57 da Lei nº 11.343/2006) – dificulta
a incidência do disposto no art. 394, § 5º, que resguarda a possibilidade de
aplicação subsidiária, aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo, das
disposições do procedimento ordinário. Verifica-se, neste nódulo problemático,
a necessidade de compatibilizar os dispositivos da legislação especial (anterior)
e da comum (geral e posterior), o que, aliás, representa a generalidade das
situações, já que, ao menos por ora, a legislação que não prevê o interrogatório
como último ato da instrução é anterior à reforma do art. 400 do CPP.
Dito de outra forma, no esforço de clareza: as inovações trazidas pela Lei
nº 11.719/2008 concernem aos ritos ordinário, sumário e sumaríssimo. A ação
penal que versa sobre o crime de tráfico de drogas tem previsão em legislação
especial, cabendo, no caso, observar o procedimento estabelecido nos arts. 54
a 59 da Lei nº 11.343/2006. Nada obstante, a conciliação do rito previsto na Lei
nº 11.343/2006 com a disposição do art. 400 do CPP se nos parece possível.
Com efeito, além de não existir, em rigor lógico, incompatibilidade entre as normas7, trata-se de atender, como já adiantado, ao dever de assegurar a alternativa
mais favorável em termos de proteção dos direitos e garantias fundamentais do
acusado.
Mas a questão, embora possa parecer, em uma primeira mirada, de fácil
elucidação, não é assim tão singela.
Uma primeira objeção – já aventada – vai no sentido de que não é
necessariamente correta a afirmação de que o interrogatório ao final da
instrução estabeleça inexoravelmente um regime mais benéfico para o réu, pois
este poderá mesmo, estrategicamente, querer trazer sua versão o quanto antes
ao feito, inclusive podendo, com isso, agilizar eventual liberdade provisória.
Que tal argumento não pode subsistir, por si só, como apto a afastar a tese
aqui sufragada, já se percebe pelo fato de que, ao final da instrução, o réu terá
a oportunidade de direcionar a sua defesa (e autodefesa) de modo muito mais
seguro, à vista das provas já colhidas, dos depoimentos de vítimas e testemunhas.
Além disso, sempre resta a alternativa de deferir, mediante específico e
tempestivo requerimento por parte da defesa, seja o réu interrogado no início
da instrução, de modo a ter assegurada a sua liberdade de opção e de avaliação
quanto à conveniência e oportunidade do ato, sem prejuízo de se permitir, seja
o interrogatório renovado ao final, caso aferida a necessidade.
Importa frisar que o próprio STF já sinalou (ao enfrentar a questão do
interrogatório das ações penais originárias do STF) a prevalência do art. 400 do
CPP, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, em detrimento do previsto
no art. 7º da Lei nº 8.038/1990, porque propicia maior eficácia à defesa, sendo
tal prática benéfica à defesa e em uma interpretação teleológica e sistemática do direito
(STF, AgRg-Ação Penal nº 528, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em
24.03.2011), muito embora – convém frisar – a Corte Suprema tenha ressalvado
as ações penais nas quais o interrogatório já havia sido realizado.
Na mesma linha, mais recentemente, em relação ao processo penal militar,
julgados no sentido de que a “máxima efetividade das garantias constitucionais
do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares
do devido processo legal (CRFB, art. 5º, LIV, CF) e cânones essenciais do Estado
Democrático de Direito (CRFB, art. 1º, caput) impõem a incidência da regra geral
do CPP” (HC 115698/AM, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, J. em 25.06.2013 e
HC 115530/PR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, J. em 25.06.2013). No mesmo
sentido, vale invocar a decisão – também do STF – na Medida Cautelar no Habeas
Corpus nº 107795 – MC/SP, Relator Ministro Celso de Mello, Julgada em 28.10.11,
que destaca a utilização de opção hermenêutica que se mostra mais compatível com o
exercício pleno do direito de defesa.
Todavia, o mesmo STF, posteriormente ao primeiro precedente citado
(AgRg-Ação Penal nº 528, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em
24.03.2011), consignou a impossibilidade de novo interrogatório ao final da
instrução, justamente no que tange à Lei nº 11.343/2006, acenando, no caso, com
o princípio da especialidade. Convém ter em conta, contudo, que uma leitura
atenta do julgado parece demonstrar que o motivo determinante da decisão foi
o fato do interrogatório em tela ter ocorrido antes da inovação do Código de
Processo Penal. Confira-se a ementa:
EMENTA: HABEAS CORPUS – PROCESSUAL
PENAL – PACIENTE PROCESSADA PELO DELITO
DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO SOB A
ÉGIDE DA LEI Nº 11.343/2006 – PEDIDO DE NOVO
INTERROGATÓRIO AO FINAL DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL
– ART. 400 DO CPP – IMPOSSIBILIDADE
– PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE – ATO PRATICADO
CONFORME A LEI VIGENTE À ÉPOCA –
AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO –
ORDEM DENEGADA.
I – Se a paciente foi processada pela prática do delito
de associação para o tráfico, sob a égide da Lei
nº 11.343/2006, o procedimento a ser adotado é o
especial, estabelecido nos arts. 54 a 59 do referido
diploma legal.
II – O art. 57 da Lei de Drogas dispõe que o interrogatório
ocorrerá em momento anterior à oitiva das testemunhas,
diferentemente do que prevê o art. 400 do Código de
Processo Penal.
III – O princípio processual do tempus regit actum impõe
a aplicação à lei vigente à época em que o ato processual
deve ser praticado, como ocorreu, não havendo razão
jurídica para se renovar o interrogatório da ré, como
último ato da instrução.
IV – Este Tribunal assentou o entendimento de que a
demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP,
332
é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou
absoluta, eis que, [...] o âmbito normativo do dogma
fundamental da disciplina das nulidades pas de
nullité sans grief compreende as nulidades absolutas”
(HC 85.155/SP, Relª Min. Ellen Gracie).
V – Ordem denegada (HC 113625/RJ, 2ª Turma, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, J. em 11.12.2012).
Entretanto, e sem conflito normativo intertemporal, em mais recente e
específica decisão, o STF concluiu que, “realizado o interrogatório da recorrente
sob o comando previsto no art. 57 da Lei de Drogas, não há razão jurídica para
determinar a sua renovação como último ato da instrução”. Saliente alguma
tergiversação em relação à Lei de Drogas, a decisão mencionada faz prevalecer
o critério da especialidade, a significar interrogatório prévio:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS –
PROCESSUAL PENAL – PACIENTE PROCESSADA
PELO DELITO DE TRÁFICO DE DROGAS SOB A
ÉGIDE DA LEI Nº 11.343/2006 – PEDIDO DE NOVO
INTERROGATÓRIO AO FINAL DA INSTRUÇÃO
PROCESSUAL – ART. 400 DO CPP – IMPOSSIBILIDADE
– PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE – AUSÊNCIA
DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO – RECURSO
ORDINÁRIO IMPROVIDO – I – Se a paciente foi
processada pela prática do delito de tráfico ilícito de
drogas, sob a égide da Lei nº 11.343/2006, o procedimento
a ser adotado é o especial, estabelecido nos arts. 54 a 59
do referido diploma legal. II – O art. 57 da Lei de Drogas
dispõe que o interrogatório ocorrerá em momento
anterior à oitiva das testemunhas, diferentemente
do que prevê o art. 400 do Código de Processo Penal.
III – Este Tribunal assentou o entendimento de que a
demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP,
é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa
ou absoluta, eis que [...] o âmbito normativo do
dogma fundamental da disciplina das nulidades pas de
nullité sans grief compreende as nulidades absolutas”
(HC 85.155/SP, Relª Min. Ellen Gracie).
IV – Recurso
ordinário improvido (RHC 116713/MG, 2ª Turma, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em 11.06.2013).8
À vista do exposto, é possível afirmar que, no âmbito do STF, ainda não
se verifica uma posição uníssona em relação à exigência de ser o interrogatório
prévio ou posterior à inquirição das testemunhas, inclusive quanto ao tipo de
procedimento em que isso deve ser observado, dada a existência de diversos
ritos especiais. Mas a situação não se apresenta diversa nos demais Tribunais
Superiores, nos quais também ainda impera o dissídio9.
Em que pese o foco ser a matriz constitucional, razão pela qual se prioriza
o STF, a ausência de uma diretriz firme por parte da nossa Corte Constitucional
acaba por favorecer a insegurança jurídica, especialmente no que diz respeito
às consequências do ato, pois, a depender da hipótese, poderá (ou não) resultar
a nulidade do feito a contar da fase instrutória. Daí mais uma razão a justificar
a necessidade de uma sólida fundamentação, designadamente de matriz
constitucional, do que nos ocuparemos na sequência, sem, contudo, restringir
o espectro argumentativo aos votos proferidos pelos Ministros do STF, embora
com os mesmos mantendo necessário diálogo.
3 A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL: MÁXIMA EFICÁCIA DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SUA RESPECTIVA DIMENSÃO OBJETIVA
Em uma primeira aproximação, ponderável a tese de que o interrogatório
ao final (pelo menos como regra a ser observada pelos Magistrados na condução
do processo) decorreria – consoante já apontado – do princípio hermenêutico
da máxima eficácia e efetividade da Constituição, que “implica o dever do intérprete
e aplicador de atribuir o sentido que assegure maior eficácia às normas
constitucionais. Assim, verifica-se que a interpretação pode servir de instrumento
para assegurar a otimização da eficácia e da efetividade, e, portanto, também
da força normativa da constituição”10. De modo que, podendo optar por duas regras diversas, prefere-se aquela que mais concretiza – como se dá na hipótese
(ao menos, é o que se sustenta enfaticamente) – o direito fundamental à ampla
defesa, a priori o art. 400 do CPP, mas não inexoravelmente, podendo a estratégia
de defesa, pessoal ou técnica, por miríades de razões, optar pelo interrogatório
ao início, aspecto que, contudo, será desenvolvido mais adiante. Por outro lado,
a simples afirmação genérica e desacompanhada de maior fundamentação à luz
do caso ora discutido, de que se está dando cumprimento ao mandamento da
interpretação mais favorável a direito fundamental, por si só, pouco nos diz e
reclama cuidadosa reflexão adicional.
Nessa perspectiva, há que conciliar o mandamento da máxima eficácia e
efetividade em matéria da interpretação/aplicação de normas jusfundamentais
com aquilo que se tem designado de dimensão objetiva dos direitos fundamentais,
que, a par de direitos subjetivos, também representam decisões valorativas
de natureza jurídico-objetiva da Constituição, que se projetam em todo o
ordenamento jurídico. Dito de outro modo, os direitos fundamentais passaram
a apresentar-se, no âmbito da ordem constitucional, como um conjunto de
valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos Poderes Públicos,
e não apenas garantias negativas (e positivas) dos interesses individuais11. Desta
categoria dogmática, a doutrina e a jurisprudência constitucionais derivam a
assim chamada eficácia irradiante dos direitos fundamentais, no sentido de
que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes
para aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, implicando
uma interpretação conforme aos direitos fundamentais de todo ordenamento
jurídico12. Da dimensão objetiva derivam, ainda, os deveres de proteção do Estado
(gradativamente reconhecidos pelo STF, v.g., HC 104410), que, naturalmente,
implicam deveres de atuação do Estado (prestação), inclusive no que se pode
designar (terceira derivação da dimensão objetiva) por função organizatória e
procedimental.
Já na perspectiva das posições subjetivas das quais é investido o titular
dos direitos fundamentais, consolidou-se a noção de que tais desdobramentos
da dimensão objetiva (deveres de proteção e dimensão organizatória e
procedimental) representam espécies do gênero direitos a prestações (ou
direitos positivos), visto que seu objeto é o de assegurar ao indivíduo a execução
(implementação) de procedimentos ou organizações em geral, ou mesmo a
possibilidade de participação em procedimentos ou estruturas organizacionais
já existentes13. Assim, a dimensão objetiva implica, em certa medida, uma
subjetivação, ou seja, a possibilidade de invocar tais efeitos perante o Poder Judiciário,
no caso, o direito do réu de exigir a aplicação de normas processuais que mais concretizem
seu direito fundamental à ampla defesa, e, na perspectiva do Estado, o correlato
dever de emitir (cuidando-se de hipótese de ausência de lei) e aplicar (o que
vale para o Estado-juiz) as normas procedimentais mais adequadas ao efetivo
exercício da ampla defesa.
Em suma, com o reforço da positividade constitucional, a partir do
disposto no art. 5º, § 1º, da CF e da assim chamada dimensão objetiva e de
seus desdobramentos, é possível sustentar a existência – ao lado de um dever
de aplicação imediata – de um dever, por parte dos órgãos estatais (mas com
ênfase nos órgãos jurisdicionais, a quem incumbe inclusive a revisão dos atos
dos demais entes estatais nos casos de violação da Constituição), de atribuição
da máxima eficácia e efetividade possível às normas de direitos fundamentais14.
Tal dever, de maximização da eficácia das normas de direitos fundamentais,
evidentemente não dispensa o exame criterioso de cada caso e
a avaliação do impacto da opção, no caso judicial, de, por força de uma
interpretação conforme aos direitos fundamentais (ainda que não tomada no
sentido estrito da técnica de interpretação conforme a constituição), superar a
regra legal (frise-se, infraconstitucional!) de caráter especial para aplicação de
alternativa mais favorável à ampla defesa e especialmente à defesa pessoal do
réu, quando tal opção não implica restrição de outro direito fundamental (o que
é precisamente que se verifica na hipótese) ou quando eventual restrição de
outro bem de hierarquia constitucional, no âmbito de uma avaliação relacional,
atende às exigências da proporcionalidade.
Assim, pode o interrogatório ser realizado ao final da instrução probatória
em detrimento do disposto na legislação específica, sem que tal heterotopia
comprometa o telos da audiência e sem que disso resulte compressão indevida
de outros direitos e bens constitucionais. Todavia, muito embora essa – à vista
de uma exegese afinada com as exigências dos direitos fundamentais e dos
respectivos deveres de proteção estatais – seja, s.m.j., a melhor resposta para
a situação examinada, nada impede, muito antes pelo contrário, que, a pedido
da defesa, no concreto exercício do direito fundamental esculpido no inciso LV
do art. 5º da CF, o interrogatório aconteça no início da fase instrutória, antes da
coleta da prova oral, pena de configurado cerceamento.
De todo modo, há que considerar algumas questões adicionais,
designadamente em virtude de suas implicações jurídicas.
Assim, é o caso de se indagar o que ocorre quando o Magistrado condutor
do processo criminal não tiver designado o interrogatório ao final e tiver havido
requerimento prévio (tempestivo) da defesa nesse sentido. Verificada tal
hipótese, será o processo nulo, a contar da audiência? A resposta, em princípio,
será sim, considerando-se, no caso, cerceamento da mais ampla defesa.
Além disso, cabe avaliar, no caso ventilado, se está em face de nulidade
sanável (relativa) ou insanável (absoluta)? Na esteira do regime das nulidades tal
como estabelecido pelo STF, trata-se, todavia, de nulidade relativa, a depender de
arguição oportuna (pena de preclusão) e demonstração do prejuízo. Entretanto,
é de se aventar indicativo de prejuízo pela perda da oportunidade de exercer a
autodefesa de acordo com a estratégia previamente estabelecida, o que deve ser
aferido em conjunto com a correlata condenação e trecho da prova oral sobre a
qual o réu não pode ofertar sua versão – presunção que não subsistiria, quer nos
parecer, em face de confissão espontânea ou exercício do direito constitucional
ao silêncio.
Outra interrogação diz com a reiteração do interrogatório, caso realizado
no início. Tal providência (reiteração, ao final, do interrogatório realizado no
início) supre a irregularidade, havendo, ou não, pedido da defesa nesse sentido?
Tem-se que sim, salvo demonstração em contrário, pois, ao fim e ao cabo,
oportunizou-se manifestação da defesa pessoal acerca do prova oral colhida.
CONCLUSÃO
Enfim, sem desconsiderar as regras (art. 57 da Lei nº 11.343/2006), a
posição externada no presente texto ainda ampara-se na preferência pela lei
(art. 400 do Código de Processo Penal) e harmoniza a segurança jurídica, valor
forte da normativa processual, com o exercício concreto da ampla defesa,
outro pilar constitucional do Estado Democrático de Direito e que possibilita a
pacificação social com justiça, aqui compreendida como aquela que emerge do
contraditório, na trilha do devido processo legal substancial e afinado com as
exigências da ampla defesa.
_______________________
1 Professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Ciências
Criminais (Mestrado e Doutorado) da PUCRS, Professor da Escola Superior da Magistratura do RS
(AJURIS), Juiz de Direito no RS e Juiz Efetivo do TRE/RS (biênio 2013-14).
2 Professor do Programa de Mestrado em Direito da UNILASALLE, Desembargador junto ao Tribunal
de Justiça do RS.
3 Cf., por exemplo, voto divergente na Apelação Crime nº 70053096376, TJRS, 3ª C.Crim., Rel. Des.
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, J. 28.03.2013.
4 Basta referir, aqui, o processo penal militar e o processo penal eleitoral.
5 Para ilustrar a controvérsia, no âmbito do TJRS, posiciona-se pelo interrogatório ao final, na Lei
de Drogas, a 3ª Câmara Criminal (v.g., Apelação Crime nº 70058577255, TJRS, 3ª C.Crim., Rel. Des.
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, J. 12.06.2014), ao passo que a 1ª e a 2ª Câmaras, fazendo prevalecer
a especialidade, chancelam o interrogatório ao início da audiência (por exemplo, Apelação Crime
nº 70056951502, TJRS, 1ª C.Crim., Rel. Des. Julio Cesar Finger, J. 09.04.2014; Apelação Crime
nº 70050078617, TJRS, 2ª C.Crim., Relª Desª Lizete Andreis Sebben, J. 26.06.2014).
6 Cf., entre tantos: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina. p. 1224.
7 Daí porque não há que se cogitar de derrogação do art. 57 da Lei nº 11.343/2006, nos exatos lindes
do § 1º do art. 2º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro,
com redação dada pela Lei nº 12.376/2010). Aliás, o art. 400 do CPP, em nossa opinião, amolda-se
justamente ao § 2º do art. 2º da Lei de Introdução, não revogando nem modificando a lei anterior.
8 Em sentido idêntico: HC 121.953/MG, 2ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em 10.06.2014.
9 No STJ, por exemplo, a tendência, em relação à Lei de Drogas, é no sentido de preponderar o art. 57 da
Lei Especial, e.g. HC 267.598/MG, 6ª T., Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, J. 13.05.2014 (no caso, havia
conexão com a Lei nº 10.826/2003, que segue o rito comum ordinário, e mesmo assim prevaleceu a
unidade de processo e julgamento segundo a Lei nº 11.343/2006: interrogatório como primeiro ato da
audiência de instrução e julgamento).
10 SARLET, Ingo Wolfgang. O sistema constitucional brasileiro. In: ______; MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 215.
11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20. ed. Heidelberg:
C.F.Müller, 1995. p. 133.
12 Cf., por todos, na doutrina brasileira: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso
de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva. p. 166 e ss.
13 Cf. por todos: ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994.
p. 395 e ss.
14 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012. p. 261 e ss.
Por Ingo W. Sarlet - 03/02/2017
SUMÁRIO: 1. Observações preliminares. 2. Fundamentação e conteúdo do direito à moradia como direito Fundamental social na ordem jurídico-constitucional brasileira: um complexo de direitos (poderes) e deveres negativos e positivos. 2.1. Breves notas sobre o direito à moradia como direito fundamental. 2.2. Conteúdo do direito à moradia como complexo heterogêneo de direitos (e deveres) negativos e positivos. 3. O direito à moradia na condição de direito de defesa: algumas possíveis manifestações. 4. O Supremo Tribunal e a discussão em torno da possibilidade de penhora do imóvel residencial do fiador no âmbito de contrato de locação. 5. Algumas considerações adicionais.
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
inserção do direito à moradia no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (doravante apenas referida como CF),
além de algumas alterações na esfera legislativa
– como dá conta, em especial, a edição do assim designado estatuto das cidades – foi sucedida por um número significativo de demandas e decisões judiciais invocando o direito à moradia, na sua condição de direito fundamental social. Se mesmo antes da recepção expressa do direito à moradia este já era tido, por alguns representantes na doutrina e mesmo na esfera jurisprudencial, como implicitamente contemplado pela CF (embora já expressamente consagrado em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil), após sua incorporação ao texto do artigo 6º passou a não ser mais possível refutar a consagração deste direito fundamental e, portanto, passou a ser cogente (pelo menos, assim o deveria ser!) a consideração das conseqüências jurídicas de tal reconhecimento. Todavia, tal não significa dizer que a respeito de tais conseqüências jurídicas não se verifiquem uma série de controvérsias, que principiam já pela discussão em torno da própria fundamentalidade do direito à moradia, passando, além disso, pelo debate em torno do seu conteúdo e significado.
Dentre as aplicações correntes do direito à moradia na ordem jurídico-constitucional brasileira, destaca-se a proteção da propriedade que serve de moradia ao seu titular ou para algum familiar. Neste contexto, após uma série de decisões judiciais – inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – vedando a penhora do imóvel utilizado para fins de moradia por parte do devedor em diversas hipóteses, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou por reconhecer, por ora no âmbito do controle incidental, a constitucionalidade da previsão legal que permite a penhora do imóvel do fiador de contrato de locação. Tal decisão – ainda mais se lhe for outorgada eficácia erga omnes e efeito vinculante – diz respeito a um número expressivo de situações concretas e a vida de inúmeras pessoas, sem falar na sua conexão com casos semelhantes, como ocorre com a previsão legal da penhora em se cuidando de dívidas condominiais, assim como nos casos de execuções promovidas pela fazenda pública, dentre outros. Da mesma forma, a depender da força persuasiva da decisão e das suas razões subjacentes, mesmo em outras situações envolvendo a proteção da moradia poderemos vir a experimentar alguns reflexos importantes, sem que aqui nos estejamos a posicionar (ainda!) sobre as possíveis virtudes ou defeitos da decisão ora referida e de outras decisões judiciais envolvendo o direito à moradia no Brasil.
Na esteira dessas considerações, descortina-se já o nosso propósito de promover uma avaliação crítica da referida decisão do STF, notadamente para o efeito de verificar a sua conformidade com a condição da moradia como bem e, de modo especial, como direito fundamental. Para que isto seja possível, iniciaremos com a caracterização do direito à moradia como um direito fundamental, especialmente abordando o seu conteúdo e a sua assim designada dupla dimensão (ou função) negativa e positiva. Na seqüência, explorando já a condição do direito à moradia como direito negativo (ou de defesa), que constitui a preocupação central do presente estudo, passaremos a avaliar criticamente a questão da proteção da moradia contra a penhora tal qual enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal.
2. FUNDAMENTAÇÃO E CONTEÚDO DO DIREITO À MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NA ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UM COMPLEXO DE DIREITOS (PODERES) E DEVERES NEGATIVOS E POSITIVOS
2.1. Breves notas sobre o direito à moradia como direito fundamental
Muito embora o direito à moradia tenha sido incluído (expressamente) no rol dos direitos fundamentais sociais (art. 6°, da CF) por meio de emenda constitucional (EC n° 26,de 2000)2, sua condição de direito fundamental, a despeito de alguma doutrina que refuta a fundamentalidade dos direitos sociais, tem sido amplamente reconhecida na doutrina e na jurisprudência. O próprio Supremo Tribunal Federal, a despeito de ter, por maioria, chancelado a legitimidade constitucional da penhora do imóvel residencial do fiador3 (decisão que será objeto de uma avaliação crítica logo adiante), reafirmou ser a moradia direito fundamental da pessoa humana. Por outro lado, mesmo que não se pretenda aqui aprofundar a questão e embora se saiba (pelo menos é a nossa convicção) que nem todos os direitos e garantias fundamentais expressamente anunciados no elenco do Título II de nossa Constituição encontram seu fundamento direto no princípio da dignidade da pessoa humana e que, de qualquer modo (mesmo que haja uma conexão direta com a dignidade da pessoa), diversa a intensidade do vínculo entre dignidade e direitos fundamentais, já que distinto o âmbito de proteção de cada direito em espécie, não poderíamos, por outro lado, deixar de reconhecer que é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais4, o que evidentemente também se aplica aos direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais em geral e ao direito à moradia em particular.
Com efeito, se as assim designadas “liberdades sociais” – com destaque para os direitos de greve e liberdade de associação sindical – assumiram e seguem exercendo papel relevante na contenção do exercício do poder econômico na esfera das relações sociais, os direitos fundamentais sociais em geral, notadamente na sua condição de direitos a prestações, objetivam, em primeira linha, uma compensação das desigualdades fáticas de modo a assegurar a proteção da pessoa (de qualquer pessoa) contra as necessidades de ordem material, garantindo uma existência com dignidade5. Por outro lado, útil lembrar que a intensidade da vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais é diretamente proporcional em relação à importância destes para a efetiva fruição de uma vida com dignidade, o que, por sua vez, não afasta a constatação elementar de que as condições de vida e os requisitos para uma vida com dignidade constituam dados variáveis de acordo com cada sociedade e em cada época6.
No caso do direito à moradia, a íntima e indissociável vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta inequívoca pelo menos no âmbito daquilo que se tem designado de um direito às condições materiais mínimas para uma existência digna e na medida em que a moradia cumpre esta função. Nesta perspectiva, talvez seja ao direito à moradia – bem mais do que ao direito de propriedade – que melhor se ajusta a conhecida frase de Hegel, ao sustentar – numa tradução livre – que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa (Sphäre ihrer Freiheit)7. Com efeito, sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar,certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. Não é por outra razão que o direito à moradia, também entre nós – e de modo incensurável – tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim designados direitos de subsistência, como expressão mínima do próprio direito à vida8 e, nesta perspectiva (bem como em função de sua vinculação com a dignidade da pessoa humana) é sustentada a sua inclusão no rol dos direitos de personalidade9. Assim, de acordo com a lição de José Reinaldo de Lima Lopes, inclui o direito de ocupar um lugar no espaço, assim como o direito às condições que tornam este espaço um local de moradia, de tal sorte que morar, na acepção do ilustre doutrinador, constitui um existencial humano10. Enfatiza-se, portanto, a direta vinculação do direito à moradia com a assim designada garantia (e direito) a um mínimo existencial, bem como com o que se tem chamado de um conteúdo existencial de outros direitos fundamentais11, como é o caso inclusive do direito de propriedade e do direito à propriedade12.
Por ora, importa notar que mesmo dentre os que, pelo menos em princípio, questionam
a própria fundamentalidade dos direitos sociais há quem admita o caráter fundamental de um direito à moradia, designadamente naquilo em que integra um direito às condições mínimas para uma existência humana digna, destacando-se, entre nós, o magistério de Ricardo Lobo Torres13. Não sendo o nosso intento adentrar a discussão em torno das diversas posições esgrimidas a respeito da fundamentalidade dos direitos sociais, importa que se deixe pelo menos consignada a nossa posição, no sentido de que todos os direitos consagrados no Título II da Constituição, sem prejuízo de outros decorrentes do regime e dos princípios, assim como constantes dos tratados internacionais de direitos humanos retificados pelo Brasil (a teor do que dispõe o artigo 5°, parágrafo 2°, da CF), são direitos fundamentais e comungam do pleno regime jurídico assegurado pela Constituição aos direitos fundamentais, ou seja, integram elenco dos limites materiais à reforma constitucional e, na condição de norma de direitos fundamentais, são sempre diretamente aplicáveis, a teor do que dispõe o artigo 5°, parágrafo 1°, da CF14.
2.2. Conteúdo do direito à moradia como complexo heterogêneo de direitos (e deveres) negativos e positivos
Ainda que se possa estabelecer, a depender dos critérios adotados, uma distinção entre o direito à moradia e o direito à habitação15, e iniciando a abordagem com algumas anotações sobre a questão terminológica, verifica-se que a nossa Constituição, ao referir- se ao direito à moradia no artigo 6°, o fez de forma genérica (que será também aqui seguida), desacompanhado de qualquer adjetivo. Tendo em conta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito à moradia adequada (a exemplo do que ocorre com o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966), ou mesmo, como é o caso da Constituição da Bélgica, de um direito a uma moradia decente, entre outros muitos exemplos que poderiam ser colacionados, a ausência de qualquer adjetivação não autoriza que o direito à moradia possa ter seu conteúdo esvaziado, no sentido daquilo que se tem designado de um mínimo vital (ou meramente fisiológico), portanto, situado aquém das exigências da dignidade da pessoa humana e do correspondente mínimo existencial. De qualquer modo, convém levar em consideração que a adjetivação tem o mérito inquestionávelde afastar interpretações demasiadamente restritivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à moradia ou (o que poderia dar no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legislador infraconstitucional.
Na definição do conteúdo do direito à moradia, cumpre, ainda em caráter preliminar, traçar (dentre outras diferenciações possíveis) a sua distinção em relação ao direito de propriedade e ao direito à propriedade. Muito embora a evidência de que a propriedade possa servir também de moradia ao seu titular e que, além disso, a moradia acaba, por disposição constitucional expressa – e em determinadas circunstâncias – assumindo a condição de pressuposto para a aquisição do domínio (como no caso do usucapião especial constitucional urbano e rural), atuando, ainda, como elemento indicativo da aplicação da função social da propriedade, o direito à moradia – convém frisá-lo – é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios, o que não elide a sua maior ou menor vinculação com outros bens (e correspondentes direitos e deveres) fundamentais. Ademais, adiantando já aspectos da discussão a ser travada na última parte, onde será examinada a questão da penhora do imóvel que serve de moradia ao fiador, a conexão com o direito a uma existência digna implica (como se irá desenvolver mais adiante) que em diversas situações o direito à moradia ocupe uma posição preferencial em relação ao direito de propriedade ou mesmo outros direitos, no mínimo para justificar uma série de restrições ao direito de propriedade, que, de resto (de acordo com previsão constitucional expressa!) encontra-se limitado pela sua função social, de tal sorte que já de há muito expressiva doutrina sustenta que apenas a propriedade socialmente útil (isto é, que cumpre sua função social) é constitucionalmente tutelada16.
De outra parte, é preciso considerar, ainda mais levando em conta o direito constitucional positivo brasileiro, que se é verdade que mesmo sem a propriedade sobre um bem imóvel a pessoa, por si só, não estará necessariamente privada de uma vida digna, o que, por outro lado, inevitavelmente ocorrerá em não dispondo de uma moradia com padrões compatíveis com uma vida saudável, tal não significa que o direito de propriedade não assuma a condição de direito fundamental. Pelo menos não se poderá desconsiderar, a exemplo do que tem enfatizado Luiz Edson Fachin, que a propriedade, quando conectadacom as exigências de uma vida digna, acaba sendo merecedora de uma tutela na medida em que cumpre precisamente uma função existencial e não meramente patrimonial17. Tal enfoque, em verdade, acaba por remeter-nos novamente à discussão em torno do caráter fundamental do direito de propriedade, que, visto sob prisma eminentemente patrimonial, poderia ser – como há quem sugira – considerado direito fundamental em sentido apenas formal18.
Estabelecidas estas primeiras diretrizes, verifica-se que, especialmente em função
do silêncio da nossa Constituição no que diz com uma definição direta e mínima do conteúdo do direito à moradia, há que construir tal definição a partir de outros parâmetros normativos contidos na própria Constituição e extraídos de outras fontes normativas, de tal sorte que também para este feito assumem lugar de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e documentos internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno. Com efeito, naquilo em que versam sobre direitos fundamentais da pessoa humana, os tratados internacionais – pelo menos de acordo com a doutrina majoritária – possuem hierarquia constitucional, na condição de direitos fundamentais pelo menos (naquilo que não contemplados no texto constitucional) em sentido material, integrando aquilo que se costuma também denominar – com inspiração na tradição jurídico-constitucional francesa
– de um bloco de constitucionalidade19. Mesmo que assim não fosse, pelo menos – o que já seria de extrema utilidade em diversas circunstâncias – os tratados de direitos humanos devidamente incorporados são equivalentes à legislação ordinária federal e como tal devem ser aplicados.
Além disso, em face da sua íntima conexão com a dignidade da pessoa humana e o
próprio direito à vida, verifica-se, desde logo, que na identificação (construção) do conteúdo de um direito à moradia, há que considerar os parâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, nos termos das exigências postas pela Organização Mundial da Saúde, no sentido de um completo bem-estar físico, mental e social, já que uma vida com dignidade em hipótese alguma poderá ser menos do que uma vida com saúde, à evidência não restrita à mera existência e sobrevivência física20. O que se constata, portanto, é que o conteúdo do direito à moradia (em outras palavras, o seu âmbito de proteção ou de aplicação) há de ser identificado também mediante uma interpretação simultaneamente tópica e sistemática21, que, além de observar a necessidade de um diálogo entre as diversas fontes do Direito (interno e internacional22) dialogue com os diversos direitos e deveres fundamentais que com ele guardam conexão. É que também o direito à moradia, da mesma forma como ocorre com o direito à saúde e uma série de outros direitos (e bens) fundamentais, embora seja sempre um direito autônomo, encontra-se “marcado por zonas de sobreposição com esferas que são autonomamente protegidas”23, como é o caso, dentre outras, da vida, da alimentação, da saúde, da privacidade e intimidade, do meio ambiente e da propriedade, tudo a reforçar a idéia de que o Estado Democrático de Direito contemporâneo deve ser compreendido como sendo sempre um Estado Socioambiental, o que aqui não será explorado.
Neste contexto, complementando e iluminando os critérios já veiculados pelo direito (constitucional, legal e jurisprudencial) interno, há que ter presente os padrões internacionais desenvolvidos e difundidos pela Comissão da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, naquilo que enunciam uma série de elementos básicos a serem atendidos em termos de um direito à moradia24:
a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem, incluindo um conjunto de garantias legais e judiciais contra despejos forçados;
b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança,
conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico, etc.).
c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação
de outras necessidades básicas.
d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitação, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.
e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência.
f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação e
outras serviços sociais essenciais.
g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população.
Tais diretrizes, que não são exaustivas e que também desafiam uma exegese adequada e contextualizada, desnudam de modo emblemático aquilo que já havia sido anunciado, no sentido de que um direito à moradia digna não pode ser interpretado como sendo apenas um “teto sobre a cabeça” ou “espaço físico” para viver, pressupondo a observância de critérios qualitativos mínimos. Que a efetivação dos padrões estabelecidos pela ordem jurídica internacional reclama, por outro lado, uma exegese afinada com as peculiaridades de cada País e de cada região (já que é na realidade concreta de quem mora e onde se mora que é possível aferir a compatibilidade da moradia com uma existência digna), por sua vez, constitui premissa igualmente já destacada.
De outra parte, resulta evidente a conexão do direito à moradia (na sua dimensão compreensiva e complexa já indiciada) com o que já se tem designado de um direito à cidade, visto que, como bem averba Gerardo Pisarello, quando se abandona o âmbito restrito da unidade habitacional concreta, a vinculação da moradia com seu entorno e com o desenho urbanístico em geral é cogente25. Tal premissa, por sua vez, inequivocamente inspirou o legislador brasileiro na elaboração da Lei n° 10.257/2001 (o assim designado Estatuto da Cidade) que contempla todo um conjunto de princípios e diretrizes, além de prever uma série de instrumentos específicos, que não apenas objetivam a promoção e tutela da moradia das pessoas individualmente consideradas, mas busca avançar no que diz com uma inserção da moradia no espaço urbano como um todo, na perspectiva de um desenvolvimento sustentável26.
Assim, já a partir do exposto e de modo especial considerando o conjunto de obrigações que têm sido vinculadas à tutela e promoção da moradia no plano internacional e nacional, verifica-se também que são múltiplas as formas pelas quais podem os Estados efetiva o direito à moradia, aspecto que guarda conexão com o próximo segmento e que voltará a ser objeto de menção. Portanto, como bem demonstra o elenco de diretrizes que concretizam o conteúdo do direito à moradia, também a este se aplica a noção de que se cuida de um direito fundamental com um todo, de cunho compreensivo, e que, como já de há muito demonstrou Robert Alexy27, abrange um conjunto complexo e heterogêneo de posições (direitos e deveres) fundamentais, o que, por sua vez, guarda relação com a já consagrada lição de que o texto (dispositivo=enunciado semântico) não se confunde com a norma e nem esta com os direitos (e deveres) que possa vir a atribuir28. Assim, sem que aqui se vá aprofundar este aspecto, importa ter presente que também o direito à moradia abrange um complexo de posições jurídicas, visto exercer simultaneamente a função de direito de defesa e de direito a prestações (de cunho normativo e/ou material) e que, nesta dupla perspectiva, vincula as entidades estatais e, em princípio, também os particulares.
Muito embora se possa controverter a respeito do modo e intensidade desta vinculação, assim como das possíveis conseqüências jurídicas a serem extraídas a partir de cada manifestação do direito à moradia, o que importa, por ora e para efeitos deste estudo, é que cientes da dupla dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais em geral (e não apenas dos assim designados direitos sociais), tal circunstância não altera o fato (e nem as conseqüências que disso se pode e se deve extrair!) de que na sua condição de direito (subjetivo) de defesa o direito à moradia tem por objeto em primeira linha a sua não- afetação por parte do Estado, ao passo que na sua condição de direito a prestações, o direito à moradia terá por objeto a criação e estruturação de órgãos, a edição de normas queestabeleçam procedimentos de tutela e promoção dos direitos, o fornecimento de bens e serviços ou outras ações comissivas29.
É também nesta perspectiva que optamos por utilizar a expressão direito à moradia
no seu sentido mais amplo possível, abarcando todo o conjunto de posições jurídicas e garantias que – mesmo que tenham alguma autonomia quando considerados individualmente – são todas vinculadas à garantia (positiva e negativa) de uma moradia digna para a pessoa humana. É por essa razão que mesmo que se possa sempre falar genericamente do direito à moradia, este abrange um conjunto de direitos de e à moradia (de tutela e promoção da moradia) ou de direitos habitacionais como também já tem sido referido, com o que não se está a excluir a existência de deveres fundamentais (conexos e autônomos) em matéria de moradia, que, por sua vez, não se confundem com os assim chamados deveres de proteção (ou imperativos de tutela) que incumbem aos órgãos estatais.
Cientes, portanto, desta dupla dimensão positiva e negativa do direito à moradia e levando em conta os propósitos do presente trabalho, passa-se a explorar a assim designada dimensão negativa, já que é nesta perspectiva que também se irá, na última parte priorizar a análise crítica do entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da penhora do imóvel residencial do fiador, ainda que tal questão também guarde conexão com a dimensão positiva do direito à moradia e de outros direitos fundamentais. Em suma, o que estará em causa, em última análise, é se o Supremo Tribunal Federal, notadamente ao decidir pela possibilidade da penhora do imóvel residencial do fiador, desincumbiu-se do seu dever de tutela em relação ao direito à moradia.
3. O DIREITO À MORADIA NA CONDIÇÃO DE DIREITO DE DEFESA: ALGUMAS POSSÍVEIS MANIFESTAÇÕES
No âmbito da assim denominada dimensão negativa ou daquilo que também tem
sido chamado de uma função defensiva dos direitos fundamentais, verifica-se que a moradia, como bem jurídico fundamental, encontra-se, em princípio, protegida contra toda e qualquer sorte de ingerências indevidas. O Estado, assim como os particulares, tem o dever jurídico de respeitar e de não afetar a moradia das pessoas, de tal sorte que toda e qualquer medida que corresponda a uma violação do direito à moradia é passível, em princípio, de ser impugnada em Juízo, seja na esfera do controle difuso e incidental, seja por meio do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, ou mesmo por intermédio de instrumentos processuais específicos disponibilizados pela ordem jurídica. É também precisamente esta a dimensão – a função defensiva do direito à moradia – a que se referem as diretrizes internacionais acima mencionadas, quando utilizam os termos “respeitar” e “proteger”,30 embora a proteção também envolva ações concretas (normativas e fáticas) de tutela da moradia contra ingerências oriundas do Estado ou de particulares, tudo a reforçar a íntima conexão entre a dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais.
Na sua condição de direito (subjetivo) negativo ou de defesa, também ao direito à moradia é aplicável a lição de Robert Alexy, especialmente quando demonstra que a dimensão negativa abrange: a) direitos ao não-impedimento de ações; b) direitos à não-afetação de propriedades ou situações (em suma, não-afetação de determinados bens jurídicos); c) direitos à não-eliminação de posições jurídicas31. Também a assim designada proibição de retrocesso em matéria de concretização dos direitos sociais assume uma posição de destaque e acaba sendo reportada à dimensão negativa, não sendo o caso aqui de analisar se há ou não uma equivalência entre a proibição de retrocesso e as situações mencionadas por Alexy32.
Sem que se pretenda neste estudo explorar cada uma destas manifestações da dimensão ou função negativa, visto que a finalidade precípua será a de analisar especificamente o problema da possibilidade (ou não) da penhora do imóvel que serve de moradia ao fiador e/ou sua família, percebe-se, desde logo, que mesmo como direito de defesa (negativo) há todo um complexo de situações a ser levado em conta, que não podem ser pura e simplesmente equiparadas. De outra parte, resulta evidente que a dimensão negativa (com as posições jurídico-fundamentais que lhe são inerentes) atua visivelmente como indispensável meio de tutela da própria dimensão positiva, pois de nada adiantará assegurar (positivamente) o acesso a uma moradia digna, se esta moradia não estiver protegida (negativamente) contra ações do Estado e de terceiros.
Importa frisar, nesta quadra, que justamente aos direitos fundamentais considerados na sua dimensão negativa, não se costuma refutar sua direta aplicabilidade, o que, como bem se sabe, não é exatamente incontroverso quando se trata da dimensão positiva. Tendo por objeto ações negativas (exigindo o respeito e a não-ingerência na esfera da autonomia pessoal ou no âmbito de proteção do direito fundamental) não se verifica, em regra, a dependência direta (vale enfatizar este aspecto!) da realização destes direitos subjetivos negativos de prestações fáticas ou normativas por parte do sujeito passivo, o que, como já frisado, não afasta a dupla dimensão positiva e negativa dos direitos fundamentais. Nesta linha de entendimento, vale a pena consignar o ensinamento de Vieira de Andrade, para quem, em se cuidando de direitos, liberdades e garantias (direitos de defesa, em última análise, há que acrescentar) e em ocorrendo a falta ou insuficiência de lei, “o princípio da aplicabilidade direta vale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseada no caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui, incluídos o dever dos Juízes e dos demais operadores jurídicos de aplicarem os preceitos constitucionais e a autorização de para esse fim os concretizarem por via interpretativa.”33 Ainda que a dimensão negativa dos direitos fundamentais não exclua a existência de conceitos mais ou menos indeterminados – como é o caso justamente do direito à moradia – nada impede (ainda mais em se levando a sério o disposto no artigo 5°, parágrafo 1°, da Constituição Federal de 1988) que tais conceitos não possam ter seu conteúdo definido pela via da intervenção judicial, quando for o caso, não sendo o caso de uma dependência da intermediação pelo legislador.
Que todos os direitos fundamentais (inclusive os direitos sociais) desencadeiam efeitos diretos e que não podem estar condicionados à prévia regulação legal, pelo menos no sentido de que geram para seu titular um direito subjetivo de cunho negativo, no sentido de situações prontamente desfrutáveis e que são, em primeira linha, dependentes apenas de uma abstenção por parte do sujeito passivo, também entre nós já tem sido sustentado há muito34. Sintetizando, podemos afirmar que, em se tratando de direitos de defesa (posições subjetivas negativas), a lei não se revela absolutamente indispensável à fruição do direito, já que, de acordo com a concepção desenvolvida por Celso Antônio Bandeira de Mello, correspondem àquelas situações em que a norma constitucional outorga ao particular uma situação subjetiva ativa (um poder jurídico), cujo desfrute imediato independe de qualquer prestação alheia, bastando, para tanto (como também refere Luís Roberto Barroso), uma abstenção por parte do destinatário da norma35. Por outro lado, resulta evidente que, para além de uma posição jurídico-subjetiva (que, consoante já demonstrado, pode manifestar-se de formas diferenciadas), as normas constitucionais definidoras de direitos de defesa podem gerar uma série de outros efeitos, inclusive na esfera jurídico-objetiva, efeitos que, de resto, são comuns a todas as normas de direitos fundamentais36.
Que com o exposto não estamos a recusar uma eficácia plena e aplicabilidade direta aos direitos fundamentais na sua dimensão positiva (de direitos subjetivos a prestações) é bom fique registrado e apenas não será objeto de desenvolvimento em virtude do enfoque do presente trabalho37. Por outro lado, dizer que o direito à moradia (em outras palavras, o conjunto de posições jurídicas que lhe são inerentes) é, no plano normativo, diretamente aplicável, não significa dizer, a exemplo dos demais direitos fundamentais, que o direito à moradia possa ser considerado (mesmo na sua dimensão negativa) como sendo um direito absoluto, no sentido de completamente imune a restrições38. Assim, apenas para mencionar um entre tantos exemplos que poderiam ser referidos, a desocupação de área de proteção ambiental, estribada, portanto, em outro valor constitucional fundamental, poderá levar à desocupação e afetar o direito à moradia não apenas de uma pessoa ou família, mas de uma coletividade inteira, sem que tais objetivos possam ser alcançados de modo arbitrário, de tal sorte a impor um sacrifício do direito à moradia dos atingidos pelas medidas, já que haverá de se assegurar uma realocação das pessoas e um acesso a uma moradia digna. É também por esta razão que a normativa internacional (de modo especial a Agenda Habitat) e as diretrizes fixadas pelos organismos de controle impõem aos Estados a garantia de uma segurança jurídica efetiva da posse utilizada para moradia, seja pela edição de legislação regulamentando os desapossamentos,seja pela observância do devido processo legal e assegurando uma proteção adequada contra medidas arbitrárias, entre outros aspectos a serem considerados39.
Nas relações entre particulares, onde o direito à moradia, notadamente (mas não
exclusivamente) na sua dimensão defensiva, também alcança eficácia e aplicabilidade40, igualmente são comuns as situações de conflito entre o direito à moradia e outros bens fundamentais salvaguardados pela Constituição, destacando-se o direito de propriedade, como pode ocorrer precisamente numa ação movida pelo locador proprietário contra o inquilino. Também nesta perspectiva se enquadra a discussão em torno da possibilidade (ou não) da penhora do imóvel que serve de moradia para o devedor e/ou sua família, que constitui justamente o enfoque específico desta abordagem, a ser enfrentado no próximo e último segmento.
4. O SUPREMO TRIBUNAL E A DISCUSSÃO EM TORNO DA POSSIBILIDADE DE PENHORA DO IMÓVEL RESIDENCIAL DO FIADOR NO ÂMBITO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO
A despeito da evolução jurisprudencial precedente, que, especialmente a partir da inclusão do direito à moradia no artigo 6° da Constituição, passou a tutelar cada vez mais a moradia na condição de bem fundamental, especialmente nas hipóteses em que estava em causa a proteção da propriedade imobiliária utilizada para fins de moradia contra uma penhora (seja ampliando o âmbito de proteção do assim chamado bem de família, seja por aplicação direta do direito à moradia, hipótese, todavia, menos comum), o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 08 de fevereiro de 2006 (Recurso Extraordinário n° 407.688- 8, relator Min. Cezar Peluso), acabou por considerar constitucionalmente legítima a penhora do imóvel residencial do fiador, tal qual autorizada pela legislação que excepcionou a regra geral da impenhorabilidade do bem de família (art. 3°, inciso VII, da Lei Federal n° 8009/90, na versão que lhe deu a Lei Federal n° 8.245/91). Considerando que a penhora do imóvel residencial, que vinha, em regra, sendo – embora alguns temperamentos – tida por inconstitucional por parte de expressiva jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e até mesmo em decisão monocrática anterior do próprio Supremo Tribunal Federal41, constitui uma possível forma de violação do direito à moradia (pois se cuida de uma afetaçãodo bem constitucionalmente tutelado) coloca-se a questão do acerto da decisão ora comentada, ainda mais em se levando em conta os fundamentos esgrimidos pelos votos vencedores e a repercussão da decisão.
Embora não se pretenda adentrar todos os possíveis aspectos ventilados na decisão, alguns pontos chamam particularmente a atenção e reclamam uma avaliação crítica. Para tanto, faz-se necessária uma breve resenha dos principais argumentos colacionados tanto no voto do relator, Ministro Cezar Peluso, quanto nos demais votos proferidos. Iniciando pelo que disse o ilustre relator na sua fundamentação, verifica-se que boa parte das premissas que sustentam as conclusões podem ser facilmente ratificadas. Com efeito, após ter reconhecido que o direito à moradia é direito social e que constitui direito subjetivo que “compõe o espaço existencial da pessoa humana”, o relator, igualmente com acerto, averbou serem “várias, se não ilimitadas, as modalidades ou formas pelas quais o Estado pode, definindo-lhe o objeto ou o conteúdo das prestações possíveis, concretizar condições materiais de exercício do direito social à moradia”. Mais adiante, na esteira da doutrina e dos parâmetros normativos acima apresentados, destaca o voto vencedor que o direito à moradia não se confunde, necessariamente, com o direito à propriedade imobiliária ou o direito de ser proprietário de bem imóvel, salientando, todavia (e neste passo já principia o encaminhamento da conclusão), que o direito à moradia pode, “sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores”. Na seqüência, ao afirmar que a ratio legis da exceção legal à regra da impenhorabilidade reside justamente na garantia do acesso à moradia pela via da locação de imóveis, obstaculizada pela falta, insuficiência ou onerosidade de garantias contratuais licitamente exigíveis pelos proprietários ou possuidores de imóveis de aluguel, o Ministro relator lança sua conclusão, no sentido de que a salvaguarda da exceção legal, por assegurar o acesso à moradia de uma classe ampla de pessoas interessadas na locação há de prevalecer em face do dano menor resultante para os fiadores proprietários de um só imóvel, ainda mais não sendo estes obrigados a prestar fiança. Para finalizar, averba o relator que “castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia”.
Em face do arcabouço argumentativo esgrimido no voto condutor da decisão, impõe- se uma série de considerações, parte delas ventilada no bojo dos outros votos proferidos, muito embora em boa parte sem maior desenvolvimento.
Desde logo, como bem lembrou o Ministro Eros Grau, autor de um dos três votos divergentes, é preciso considerar que a penhora recaiu sobre o único bem imóvel de propriedade do fiador, no caso, o imóvel que lhe serve de moradia, recordando, ainda, que a impenhorabilidade do imóvel residencial “instrumenta a proteção do indivíduo e de sua família quanto a necessidades materiais, de sorte a prover à sua subsistência”. Além disso, após enfatizar o vínculo entre a tutela do imóvel residencial e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, evoca simultânea violação do princípio isonômico, visto que o afiançado, que não pagou os alugueres, estaria beneficiado pela impenhorabilidade, ao passo que ao fiador estaria subtraído o benefício. Mais adiante, já no embate direto com o Ministro- Relator, refuta o caráter programático das normas constitucionais, afirmando o seu efeito vinculante, bem como afastando o argumento de que a impenhorabilidade do bem de família causará forte impacto no mercado de locações, já que políticas públicas deverão assegurar este mercado de modo apropriado.
Muito embora não se possa imputar ao Ministro-Relator ter outorgado ao direito à moradia a condição de norma programática e a despeito de ter aquele esclarecido que a intenção é justamente proteger os que não são proprietários, já que estes constituem uma minoria no Brasil, seguem em aberto algumas questões vinculadas à argumentação do Ministro Eros Grau e que merecem reflexão mais detida.
A primeira diz respeito ao fato de que em se cuidando do único imóvel do fiador e
servindo este de residência para aquele e/ou sua família, em princípio, não se pode simplesmente admitir o sacrifício do direito fundamental (e, no caso, possivelmente até mesmo uma violação da própria dignidade da pessoa humana) por conta de uma alegação genérica e ainda por cima desacompanhada até mesmo de dados comprobatórios, de uma tutela do direito à moradia de um conjunto maior de pessoas. A dignidade da pessoa humana, assim como o núcleo essencial dos direitos fundamentais de um modo geral, não pode ser pura e simplesmente funcionalizada em prol do interesse público, mesmo que este seja compreendido como interesse socialmente relevante de uma comunidade de pessoas. Importa recordar, nesta quadra, que embora legítimas, em determinadas circunstâncias, restrições a direitos fundamentais, estas devem respeitar os critérios da proporcionalidade e, acima de tudo, preservar o núcleo essencial do direito restringido. Aliás, é justamente no exame dos critérios da proporcionalidade que reside uma das lacunas da decisão ora comentada. Se aos órgãos estatais incumbe um permanente dever de proteção de todos os bens fundamentais e a restrição de algum direito encontra fundamento na tutela de outro, impõe-se, de qualquer modo, sempre a observância dos critérios da proporcionalidade na sua dupla acepção, pois tanto está vedado ao Estado intervir excessivamente na esfera de proteção de bens fundamentais quando atuar de modo manifestamente insuficiente (ou o que é pior, sequer atuar) na tutela do mesmo ou de outros bens fundamentais42.
Mesmo que aqui não se vá adentrar nas possíveis distinções entre os institutos da proibição de excesso e de proteção insuficiente, importa pelo menos lançar algumas indagações em relação a esta perspectiva de abordagem do problema ora discutido. Assim, se de fato é plausível aceitar, a exemplo do que argumentou o Ministro-Relator, que a possibilidade da penhora do imóvel do fiador, por constituir garantia do contrato de locação, acaba também sendo um meio de assegurar o acesso à locação e, portanto, à moradia para quem não é proprietário, já no que diz com o critério da necessidade as coisas não parecem tão simples, pois, em havendo outros meios disponíveis, a opção deveria recair no meio menos gravoso, considerado como tal o que menos restringe o direito fundamental colidente, no caso, o direito à moradia do fiador e de sua família, pois sequer se está aqui argumentando com a tutela da propriedade na sua dimensão meramente patrimonial. O argumento de que não existem outras garantias para o crédito em execução é evidentemente falho, visto que não foi examinada a possibilidade de se lançar mão de outros meios, como, por exemplo, a exigência de fiador proprietário de imóvel que não seja residencial ou mesmo a utilização do seguro fiança, que, se fosse mais difundido e submetido a controle rigoroso, poderia inclusive gerar a total desnecessidade da utilização de garantias reais. A não-utilização das alternativas referidas (ou mesmo de outras, que, de resto, também incumbe ao Estado disponibilizar no âmbito dos seus deveres de proteção!) não significa que não estejam disponíveis e que, portanto, não possam ser levadas em conta. Assim, vista a questão sob este viés, no mínimo haverá de se considerar a possibilidade de considerar, nas circunstâncias do caso, que a penhora do imóvel residencial (único imóvel do fiador) como violação da proporcionalidade. De outra parte, mesmo superado o exame do critério da necessidade, haveria de se avaliar a violação da assim designada proporcionalidade em sentido estrito ou, para quem assim o preferir, a ingerência no núcleo essencial do direito fundamental, que, quando detectada, implica a manifesta inconstitucionalidade do ato. Sem que se vá aqui avançar mais neste exame, inclusive para fins de análise do atendimento das exigências também da proibição de proteção deficiente, a crítica mais contundente que possivelmente poderá ser direcionada é que tais questões, a despeito de sua relevância (pois inequivocamente este em causa uma restrição de direito fundamental) não chegaram a ser minimamente desenvolvidas na decisão.
Seguindo já outra linha de raciocínio, tanto o Ministro Joaquim Barbosa quanto o Ministro Gilmar Mendes, ambos secundados pelo Ministro Sepúlveda Pertence (invocando que se poderia estar chancelando a incapacidade civil do fiador) enfatizaram, em síntese, que a regra legal que excepciona a impenhorabilidade não constitui violação do direito à moradia pelo fato de que o fiador voluntariamente, portanto, no pleno exercício da sua autonomia de vontade. Por mais que se deva admitir que a própria liberdade contratual expressa uma manifestação da mesma dignidade da pessoa humana que serve de fundamento ao conteúdo existencial da propriedade, quando, por exemplo, serve de moradia ao seu titular, não se pode olvidar que a ordem jurídica impõe limites significativos à autonomia privada, especialmente quando se cuida de hipóteses de renúncia a direitos fundamentais. A própria alienação voluntária da integralidade do patrimônio, em havendo herdeiros necessários ou eventualmente outros interesses a serem tutelados encontra limites em determinadas circunstâncias, sendo, se resto, no mínimo parcialmente equivocada a apontada identidade entre a venda e a prestação de fiança43, tal como afirmou o Ministro Cezar Peluso ao intervir no voto do Ministro Carlos Britto, que justamente invocou a indisponibilidade do direito à moradia. Se de fato é correta a tese, de resto sufragada por expressiva doutrina e inclusive acatada pelo voto do Relator, de que a moradia constitui um existencial humano, sendo, pelo menos naquilo em que revela uma conexão com a dignidade da pessoa humana, um direito de personalidade, não se pode deixar de reconhecer também a existência de um dever de proteção da pessoa contra si mesma, pelo menos no âmbito em que prevalece a indisponibilidade do direito, o que ocorre justamente no plano da sua dimensão existencial44. Da mesma forma, se em princípio se poderá afastar a existência de coação, também é correto que em muitas hipóteses resulta praticamente inexigível a negativa da prestação da fiança, especialmente nos casos de garantias prestadas por familiares próximos. Embora as hipóteses não sejam idênticas, a referência à difundida decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha45, que versava justamente sobre a liberação da responsabilidade por parte da filha (na fase da execução) que havia “espontaneamente” afiançado um contrato de mútuo bancário do pai não nos parece impertinente.
Também aqui não houve maior consideração das circunstâncias do caso concreto, pelo menos para investigar o efetivo caráter existencial da moradia ou mesmo a existência de alternativas viáveis de acesso a uma moradia decente para o fiador e sua família (por exemplo, pelo menos um trabalho com certa estabilidade e com remuneração compatível com o aluguel de uma moradia adequada), já que, convém reiterar este aspecto, o direito à moradia não se confunde necessariamente com o direito de propriedade. Não tendo sido efetuado este exame e em se tratando do único imóvel do fiador e sendo este utilizado para fins residenciais, haveria, por certo, de prevalecer pelo menos uma presunção (ainda que relativa) em favor da indisponibilidade.
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS
Por mais que se possa avançar na discussão e avaliar outros argumentos, tenham sido, ou não, ventilados na decisão ora comentada, já é possível perceber o quanto uma solução constitucionalmente adequada, ainda mais em matéria de tamanha repercussão geral, reclama maior investimento argumentativo. Da mesma forma, verifica-se que se está apenas diante de mais uma dentre tantas questões decididas pelo Supremo Tribunal Federal que escancaram o quão falaciosa é a distinção entre matéria de fato e matéria de Direito. Além disso, a desconsideração de importantes dimensões do caso concreto aponta para a possibilidade de equívocos significativos no processo decisório e, o que é pior, de um resultado que pode implicar flagrante violação de princípios fundamentais e do próprio núcleo essencial de direito fundamental, somente evitáveis mediante uma exegese simultaneamente tópica e sistemática, como necessariamente há de ser toda a interpretação46. A situação, todavia, acaba sendo ainda mais grave se à decisão em favor da legitimidade constitucional da penhora for outorgada eficácia erga omnes e efeito vinculante, mormente se impeditiva pelo menos de uma divergência justificável à luz das circunstâncias do caso concreto, sem que se vá aqui adentrar a discussão em torno da legitimidade constitucional do efeito vinculante em decisões que sequer atendem o quorum qualificado da súmula vinculante. Tão fundado é o receio, que já se verifica uma tendência, mesmo por parte de órgãos judicantes que antes consideravam inconstitucional a exceção legal permissiva da penhora, de, sem qualquer reflexão adicional (sequer para justificar minimamente as razões da alteração de seu convencimento e mesmo sem qualquer olhar para as circunstâncias do caso concreto) pura e simplesmente alterarem o seu posicionamento, afinando-o com a orientação ora imprimida pelo Supremo Tribunal Federal.
Importa enfatizar, nesta quadra, que não se trata aqui de fazer coro com os que
pregam uma espécie de resistência teimosa e irrefletida às decisões do Supremo Tribunal Federal, pois a crítica que aqui se formula também abarca decisões que, igualmente sem maior reflexão e conexão com as circunstâncias do caso concreto (e da dignidade concreta das pessoas às quais dizem respeito os casos!) em várias hipóteses transformaram o discurso legítimo em prol do direito à moradia em instrumento de tutela de propriedades de luxo, como se propriedade e moradia fossem direitos idênticos e como se fossem direitosabsolutamente blindados a qualquer limite ou restrição. O que se buscou problematizar neste ensaio, foi justamente a necessidade de se exercer uma resistência em relação a soluções simplistas e generalizadas, e que a busca da melhor resposta implica avaliação criteriosa não apenas de algumas questões de ordem normativa e formal. O que se espera é que o Supremo Tribunal Federal, assim como já o fez em matéria de saúde e até mesmo em relação a possíveis temperamentos do efeito vinculante na hipótese da vedação de tutela antecipada contra a fazenda pública, siga de portas abertas, se não para uma reformulação radical do seu entendimento expresso pelo voto da maioria dos seus Ministros, pelo menos para uma possível flexibilização à luz das circunstâncias do caso concreto, pena de, no limite, acabar chancelando situações de extrema injustiça.
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1 Estudos em nível de Pós-Doutorado em Munique (Universidade de Munique e Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional, como bolsista DAAD e Max-Planck) e Washington DC (Georgetown Center). Professor Titular da Faculdade de Direito e do Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS. Professor do Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Professor de Direito Constitucional e Teoria dos Direitos Fundamentais na Escola Superior da Magistratura (AJURIS).
2 O fato de a inclusão do direito à moradia no âmbito dos direitos sociais ter ocorrido por emenda constitucional apenas no ano 2000 não significa, contudo, que a moradia não tenha recebido já alguma tutela direta na Constituição e que, além disso, não poderia já ser considerada como direito fundamental social pelo menos implicitamente positivado. Neste sentido, v. o nosso “O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia”, in: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Dir.), Arquivos de Direitos Humanos, n° 4, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 150 e ss. A respeito do histórico do direito à moradia na ordem jurídica brasileira, v. também INÁCIO, Gilson Luiz. Direito Social à Moradia & Efetividade do Processo. Contratos do Sistema Financeiro de Habitação, Curitiba: Juruá, 2002, p.38 e ss.; SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. Análise Comparativa e Suas Implicações Teóricas e Práticas com os Direitos de Personalidade, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004,
p. 104 e ss.; AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia, 2.ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 84 e ss. e, mais recentemente, GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 37 e ss.
3 RE 407.688-8, Relator Ministro Cezar Peluso.
4 V. por todos, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2.ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 79 e ss. Entre nós, enfatizando a ausência de uma
fundamentação direta na dignidade da pessoa humana de todos os direitos consagrados na Constituição de 1988, v., em especial, o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
de 1988, 5.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79 e ss.
5 Cf. dentre outros, HÖFLING, Wolfram. “Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz”. In: SACHS, Michael (Org.). Grundgesetz-Kommentar. München: C.H. Beck, 1996, p. 109-110. assim como MAUNZ, Theodor & ZIPPELIUS, Reinhold. Deutsches Staatsrecht. 29.ed. München: C.H. Beck, 1994, p. 182. Na França, a íntima ligação entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa encontra-se referida por PAVIA, Marie-Luce. “Le Principe de Dignité de la Personne Humaine: um Nouveau Principe Constitutionnel”. In: CABRILLAC, Rémy, ROCHE-FRISON, Marie-Aenne & REVET, Thierry. Droits et Libertés Fondamenteaux. 4.ed. Paris: Dalloz, 1997, p. 109-110, valendo-se do exemplo de um direito fundamental à moradia, a partir do reconhecimento da moradia como objetivo e valor de matriz constitucional pelo Conselho Constitucional. Também na Bélgica, sustenta-se que o direito a uma existência com dignidade implica o reconhecimento de um direito aos meios de subsistência mínimos, especialmente no âmbito da assistência social. Neste sentido, v. DELPÉRÉE, Francis. “O Direito à Dignidade Humana”. In: BARROS, Sérgio R. & ZILVETI, Fernando A. (Coord.). Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 156 e seguintes. Assim também, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., v. 4, p. 186 (ao menos é o que se infere da referência a diversos direitos sociais). Entre nós, v., dentre tantos, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 329 e ss., assim como o pioneiro trabalho de TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”, in: Revista de Direito Administrativo, n° 177, 1989, p. 20-49 (apontando-se aqui a existência de desenvolvimentos posteriores), NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. “O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”. Revista de Direito Administrativo 219: 247, 2000, BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo, Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, todos apontando a vinculação do mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana, ainda que existam variações importantes sobre a fundamentação, conteúdo e eficácia do assim designado mínimo existencial que podem ser encontradas tanto nos autores referidos em caráter ilustrativo quanto nos demais que têm dado atenção ao tema.
6 Cf. a oportuna menção de MODERNE, Frank. “La Dignité de la Personne Comme Principe Constitutionnel dans les Constitutions Portugaise et Française”. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas Constitucionais – nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, v. 1, p. 220.
7 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, v. 7, p. 102.
8 Cf. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. “Direito à Moradia”. Revista de Informação Legislativa 127: 49, 1995. Também VIANA, Rui Geraldo Camargo. “O Direito à Moradia”. Revista de Direito Privado, abril/junho 2000, p. 9, destaca a vinculação do direito à moradia com o direito à vida e uma existência digna. Registre-se, ainda quanto a este ponto, que também pelo prisma do direito internacional, o que decorre inclusive de previsão expressa do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, incorporado pelo Brasil em 1992, o direito à moradia, assim como o direito à alimentação, integra o direito a um adequado padrão de vida. Neste sentido, dentre tantos, CRAVEN, Matthew. The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights – A Perspective on its Development. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 330.
9 Neste sentido, destacando a vinculação com os direitos de personalidade, v., entre nós, em especial SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de, op. cit., p. 145 e ss., e, mais recentemente, também GODOY, Luciano
de Souza, op. cit., p. 48 e ss.
10 Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Cidadania e Propriedade: Perspectiva Histórica do Direito à Moradia”. Revista de Direito Alternativo, 1993, p. 121, igualmente sinalando a direta conexão do
direito à moradia com o direito à vida (p. 133).
11 Sobre o tema, v., dentre outros, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 329 e ss. No que diz
respeito à consideração do direito à moradia como sendo vinculado a uma garantia do mínimo existencial, não se irá aqui desenvolver as diversas possibilidades de fundamentação deste mínimo existencial e nem
a sua conexão com as diversas teorias sobre as necessidades da pessoa humana, que também podem servir de fundamento para um direito à moradia. A respeito destas questões, v., por exemplo,
PISARELLO, Gerardo. Vivienda para todos: un derecho en (de) construcción. El derecho a una vivienda digna y adequada como derecho exigible, Barcelona: Içaria, 2003, p. 23 e ss. Entre nós, no
que diz com o direito à moradia e explorando esta senda (designadamente a conexão com uma teoria das necessidades)., confira-se especialmente ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo
de direitos humanos e fundamentais à alimentação e à moradia, Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003.
12 Cf., por todos, FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.
13 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”. Revista de Direito Administrativo 177: 29, 1989, que, em paradigmático e pioneiro estudo sobre o mínimo existencial, destaca que este carece de um conteúdo específico, já que pode abranger qualquer direito, ainda que não originariamente fundamental, desde que considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não obstante neste primeiro estudo o ilustre doutrinador Fluminense não tenha feito menção expressa ao direito à moradia como exemplo de direito fundamental, tal veio a ocorrer, recentemente, em outro texto de crucial relevância para a discussão da problemática dos direitos fundamentais, admitindo que no concernente aos indigentes e às pessoas sem-teto a moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial e tornando obrigatória até mesmo a sua prestação pelo Estado (cf. TORRES, Ricardo Lobo. “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”. In: TORRES, Ricardo Lobo. (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 289).
14 Para maiores desenvolvimentos v. o nosso já citado A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 88 e ss.
15 Neste sentido v. especialmente SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes. Direito à Moradia e de Habitação, cit.
p. 141 e ss., destacando a vinculação entre ambos os institutos e, em termos gerais, compreendendo o direito de habitação (como o direito real de habitação, por exemplo) como uma possibilidade específica
de assegurar a moradia, que assume contornos mais amplos.
16 Entre nós, vale lembrar a lição do saudoso Professor e Desembargador Gaúcho RUY RUBEN RUSCHEL, Direito Constitucional em Tempos de Crise, Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1997, p. 145-155, alertando para a necessidade de uma releitura (à luz da Constituição e do princípio da função social da posse da propriedade) do art. 524 do Código Civil (de 1916) e da própria definição de posse, sustentando a necessidade do uso e gozo do bem secundum beneficium societatis. Também adotando esta linha de entendimento, convém lembrar, entre outros, os preciosos ensinamentos de FACHIN, Luiz Edson. “Novas Limitações ao Direito de Propriedade: do Espaço Privado à Função Social”. Revista de Direito da Universidade de Santa Catarina 11: 33-46, 1999; TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999; ARONNE, Ricardo. Por uma Nova Hermenêutica dos Direitos Reais Limitados: das Raízes aos Fundamentos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, todos convergindo no sentido de uma necessária interpretação dos institutos jurídicos sobre a posse e propriedade à luz da Constituição, da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais.
17 Cf. a notável contribuição de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
18 A respeito de uma possível distinção entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, v. a interessante
contribuição de FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias. La Ley del más Débil. Madrid: Ed. Trotta, 1999, p. 45-50. Desde logo, para não quedarmos omissos, destacamos que – compreendida pela
perspectiva de seu conteúdo socialmente útil e de sua possível dimensão existencial – a propriedade constitui direito fundamental na sua dupla vertente formal e material, não apresentando necessariamente
caráter exclusivamente patrimonial. De qualquer modo, considerando a ausência de hierarquia formal entre as normas constitucionais e tendo em conta a conhecida e prestigiada tese (basta aqui lembrar a
abalizada lição de JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., v. 2, de que em favor das normas constitucionais em sentido formal milita uma presunção de sejam materialmente constitucionais),
eventual decisão em prol da relativização da propriedade, deverá ocorrer mediante uma cuidadosa ponderação de bens e levar em conta a maior ou menor conexão da propriedade com outros valores
essenciais, notadamente, com a dignidade da pessoa humana.
19 Cf., por todos, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7.ed.,
São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43 e ss.
20 Tal entendimento guarda coerência com a conceituação da dignidade da pessoa humana por nós apresentada em trabalho anterior, sustentando que “a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Cf. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988., 5.ed., p. 62).
21 Sobre o tema, remetemos ao já clássico contributo de FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, 4.ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
22 Também ao direito à moradia, como de resto a todos os direitos humanos e fundamentais, aplica-se,
portanto, a noção da observância necessária de uma juridicidade em rede, marcada por uma interpenetração normativa crescente e cada vez mais inclusiva das normas internacionais, mas também do recurso ao
direito comparado. Neste sentido, explorando a questão em relação ao direito à saúde, v. a recente manifestação de LOUREIRO, João Carlos. “Direito à (Protecção) da Saúde”, in: Estudos em Homenagem
ao Professor Doutor Marcello Caetano. Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 667 e ss.
23 Cf., novamente, LOUREIRO, João Carlos. “Direito à (protecção) da saúde”, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, op. cit., p. 666. Especificamente cuidando da relação entre o
direito à moradia e outros direitos humanos e fundamentais v. PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 25 e ss. Entre nós, v. SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de., op. cit., p. 198 e ss., explorando a relação do direito
à moradia com os direitos de personalidade.
24 Tal como disposto no parágrafo 8º do Comentário-Geral nº 4 a respeito de um direito à moradia
adequada editado pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. A síntese ora efetuada foi extraída do relatório elaborado por SACHAR, Rajindar, “The Right to Adequate Housing:
The Realization of Economic, Social and Cultural Rights, p. 17-18, apresentado em 1993 pelo autor, à época relator da ONU para o direito à moradia, para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, acessado
pela internet no seguinte endereço: http://www.undp.org/um/habitat/rights/s2-93-15.html. No âmbito da literatura especializada, confira-se, ainda e de modo especial, PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 81
e ss., aprofundando a problemática do conteúdo normativo do direito à moradia também tendo em
conta os parâmetros construídos no âmbito das relatorias especiais da ONU, bem como, mais recentemente, a listagem de critérios apresentada por TEDESCHI, Sebastián, “El derecho a la vivienda a diez años de la reforma de la Constitución”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org), Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 216 e ss., reproduzindo, em termos gerais, a listagem referida acima, mas com importantes comentários e acréscimos.
25 Cf. PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 84 e ss. Importa registrar que também no Brasil tem crescido o número dos que discutem a noção de um direito (humano e fundamental) à cidade, em especial no que
diz respeito à concepção de uma “cidade sustentável”, o que apenas reforça a já apontada necessidade
de se ampliar os horizontes e inserir a questão do direito à moradia no contexto mais amplo e afinado com as exigências do conjunto dos direitos humanos e fundamentais, na perspectiva de um Estado
Socioambiental de Direito. Dentre os diversos títulos que poderiam ser colacionados e que se inserem nesta perspectiva destacamos aqui a recente coletânea de PRESTES, Vanêsca Buzelato (Org), Temas de
Direito Urbano-Ambiental, Belo Horizonte: Fórum, 2006.
26 Apenas em caráter exemplificativo, considerando já o expressivo número de publicações produzido nos últimos anos, v. ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org), Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004.
27 Cf. ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p. 240 e ss.
28 Neste sentido v. novamente ALEXY, Robert. op. cit., p. 47 e ss. (especialmente p. 62 e ss.); entre nós, notadamente no que diz com a distinção entre texto e norma, vale lembrar o já clássico texto de GRAU,
Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 164 e seguintes, assim como a relevante contribuição de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m)
Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 16.
29 Desenvolvendo o tópico v. especialmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 182 e ss.
30 Fica o registro de que o dever de proteção do Estado, para além da imposição de um dever de respeito e não-violação (dimensão negativa propriamente dita) abrange a necessidade de praticar atos concretos
no sentido de alcançar uma proteção minimamente eficaz do direito à moradia, que, por sua vez, pode
ocorrer pela edição de atos normativos ou mesmo outros atos concretos destinados a salvaguardar a moradia (direitos a prestações normativas e fáticas), aspecto este que será considerado logo a seguir e que diz com a dimensão prestacional (positiva).
31 Cf. ALEXY, Robert., op. cit., p. 186 e ss.
32 A respeito da proibição de retrocesso v. especialmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais,
p. 442 e ss. No âmbito da doutrina estrangeira, v., por último a coletânea de COURTIS, Christian
(Compilador), Ni Un Paso Atrás. La Prohibición de Regresividad en Matéria de Derechos Sociales, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006, com contribuições de vários autores sobre as experiências de
diversos Países e também a aplicação da proibição de retrocesso na esfera internacional.
33 Cf. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 1987, p. 256-257.
34 É o que, de há muito, advoga BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas
Normas, 5.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 106.
35 Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. “Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”.
Revista de Direito Público 57/58: 242,1981.
36 É neste contexto, entre outros aspectos que poderiam ser citados, que a doutrina e jurisprudência
germânicas passaram a reconhecer uma assim designada (e a terminologia não restou imune a críticas) eficácia irradiante dos direitos fundamentais, considerados também como elementos integrantes de
uma ordem de valores objetiva, sobre o restante do ordenamento jurídico. Para uma compreensão da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, v. dentre outros, HESSE, Konrad. Grundzüge des
Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C.F. Müller, 1995, p. 133 e ss. Entre
nós, v., a respeito da dimensão objetiva e seus desdobramentos, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 167 e ss., bem como BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; “Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais”, in: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 152 e ss., SARMENTO, Daniel. “A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria”, in: MELLO, Celso Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Org.), Arquivos de Direitos Humanos, vol. IV, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 63-102, e, mais recentemente, DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 116 e ss.
37 Sobre o problema da eficácia e aplicabilidade das normas de direitos fundamentais em geral, mas explorando com detalhes a questão dos direitos a prestações como direitos subjetivos, remetemos ao nosso já citado A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 268 e ss.
38 Com efeito, o fato de estarmos diante de normas de eficácia plena, capazes de gerarem todos os seus efeitos, inclusive na esfera subjetiva, não afasta a potencial restringibilidade destes efeitos, notadamente
no que diz com o exercício dos direitos subjetivos, de tal sorte que a possibilidade de sofrer restrições não
se constitui, em absoluto, um “privilégio” das assim denominadas normas de eficácia contida, consagradas no direito pátrio pela obra de José Afonso da Silva.
39 Cf. aponta CRAVEN, Matthew, op. cit., p. 335 e seguintes, consignando que o direito à moradia inclui o direito a não ser privado arbitrariamente da moradia.
40 Aqui iremos desconsiderar a discussão a respeito de uma eficácia imediata (direta) ou mediata (indireta) do direito à moradia e dos direitos fundamentais em geral no âmbito das relações entre particulares,
partindo do pressuposto de que tal eficácia ocorre, implicando uma vinculação não apenas do legislador e do Poder Judiciário na esfera cível (do direito privado), mas também uma eficácia que opera em
relação aos atos dos particulares. A respeito desta temática, v., dentre outros, SARLET, Ingo Wolfgang “Direitos Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações em Torno da Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo Pontes com o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 107-164, assim como aos estudos de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, STEINMETZ, Wilson. Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais, São Paulo: Malheiros, 2004, SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. Os Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares, São Paulo: Malheiros, 2005, especialmente p. 132 e ss., PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 434 e ss., todos sustentando, ainda que com alguma variação, uma eficácia em princípio direta (embora não absoluta) dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Sustentando uma eficácia apenas indireta, v. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 108 e ss. Especificamente versando sobre a eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares v., por último, SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos Fundamentais Sociais, Mínimo Existencial e Direito Privado”, in: Revista de Direito do Consumidor, n° 61, janeiro-março de 2007, p. 90-125.
41 V. a decisão nos Recursos Extraordinários de n° 352.940 e 449.657, relatados pelo Ministro Carlos Velloso.
42 A respeito desta dupla perspectiva (proibição de excessos e de proteção insuficiente ou deficiente) v., entre nós, especialmente SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência”, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais n° 47, março-abril de 2004, p. 60-122, assim como STRECK, Lenio Luiz. “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”, in: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica n° 2 (2004), p. 243 e ss. Dentre a literatura estrangeira, notadamente no que diz com a aplicação da proibição de insuficiência e dos imperativos de tutela no âmbito do Direito Privado, v. o pioneiro e paradigmático CANARIS, Claus-Wilhelm, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra: Almedina, 2003, tradução da edição alemã de 1999, onde o autor retoma e desenvolve seus estudos sobre o tema desde já o início dos anos 1980.
43 No mínimo, há que levar em conta que a venda do patrimônio resulta em benefício patrimonial para próprio vendedor (alienante) e que tal situação não pode ser equiparada à dação em garantia que poderá resultar na expropriação do imóvel!
44 A respeito do tópico v. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p.115 e ss. Sobre as possibilidades e limites das renúncias em matéria de direitos
fundamentais, no âmbito da literatura em língua portuguesa, v. especialmente NOVAIS, Jorge Reis.
“Renúncia a Direitos Fundamentais”, in: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas Constitucionais, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 263-335. Cuidando da temática na perspectiva dos direitos de
personalidade, v., dentre outros, MOTA PINTO, Paulo, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português”, in: SARLET, Ingo Wolfgang
(Org). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61-84.
45 Cf. BVerfGE vol. 89, p. 214 e ss., onde prevaleceu justamente a tese de que a autonomia privada não pode ser entendida apenas num sentido formal, de tal sorte que, em determinadas circunstâncias, a
pessoa pode e deve ser tutelada em face de disposições contratuais que lhe são desvantajosas.
46 Sobre o tema v. as indispensáveis lições de FREITAS, Juarez, A Interpretação Sistemática do Direito,
4.ed., São Paulo: Malheiros, 2004, bem como de PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico – Uma Introdução à Interpretação Sistemática do Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999.
Por Ingo W. Sarlet - 03/02/2017
I – Considerações introdutórias: a crise do estado social de direito e a problemática da proteção dos níveis vigentes de segurança social
Hoje, mais do que nunca, constata-se que a problemática da sobrevivência do assim denominado estado social de direito constitui um dos temas centrais da nossa época. A já corriqueira afirmativa de que o Welfare State ou Es- tado-Providência se encontra gravemente enfermo (1), além de constantemente
submetido à prova, não perdeu, portanto, sua atualidade. Que as discussões de longe já não se restringem mais à esfera da análise política, socioeconômica e jurídica, mas se transformaram na preocupação de larga parcela da humanidade pela manutenção de seu padrão de vida e até mesmo pela sua sobrevivência, verifica-se não apenas a partir da especial atenção dedicada ao tema nos meios de comunicação, mas pelo fato de que cada ser humano, em maior ou menor grau, acaba sendo atingido pela crise. Cada elevação de tributos, cada redução nos níveis prestacionais do Estado e cada perda de um emprego e local de tra- balho acaba por influenciar diretamente o cotidiano da vida humana, de tal sorte que se pode partir da premissa de que a crise do estado social é, ao mesmo tempo, uma crise de toda a sociedade.
Oportunamente denominado de filho da moderna sociedade industrial, o estado social de direito não poderá jamais permanecer imune às suas transfor- mações e desenvolvimento (2). Limitando-nos, por exemplo, a uma das manifes- tações da atuação do estado social e analisando a problemática dos sistemas de segurança social, verifica-se que é particularmente nesta esfera que o dilema representado pela simultânea necessidade de proteção e, por outro lado, de uma constante adequação dos níveis de segurança social vigentes à realidade socioeconômica se manifesta com particular agudeza. Se, por um lado, a ne- cessidade de uma adaptação dos sistemas de prestações sociais às exigências de um mundo em constante transformação não pode ser desconsiderada, simul- taneamente o clamor elementar da humanidade por segurança e justiça sociais continua a ser um dos principais desafios e tarefas do Estado (3).
De outra parte, a crescente insegurança no âmbito da seguridade social decorre, neste contexto, de uma demanda cada vez maior por prestações so- ciais e de um paralelo decréscimo da capacidade prestacional do Estado e da
sociedade (4). O quadro delineado remete-nos, por outro lado, ao angustiante
questionamento de o quanto as conquistas sociais podem e devem ser preser- vadas. Em que pese o entendimento dominante de que uma supressão pura e simples dos sistemas de seguridade social, sem qualquer tipo de compensação, não é, em princípio, admissível e sequer tem sido seriamente defendida a pro- blemática relativa à proteção constitucional das posições sociais existentes per- manece no centro das atenções (5). Em outras palavras, cuida-se de investigar
se, como e em que medida os sistemas prestacionais existentes, concretizado- res do princípio fundamental do estado social, podem ser assegurados contra uma supressão e/ou restrições.
Neste particular, é preciso ressaltar que, de acordo com a doutrina majoritária, uma proibição absoluta de retrocesso social tem sido excluída de plano, mormente em face da dinâmica do processo social e da indispensável flexi- bilidade das normas vigentes, de modo especial, com vistas à manutenção da capacidade de reação às mudanças na esfera social e econômica (6). Por outro lado, constata-se que a Lei Fundamental da Alemanha (no que não se encontra isolada no âmbito europeu) não contém nenhum preceito que direta e expres- samente ofereça qualquer tipo de proteção em nível constitucional do sistema de segurança social e dos níveis prestacionais vigentes, advogando-se, além disso, o entendimento de que tal garantia não pode ser direta e exclusivamente deduzida do princípio geral (fundamental) do estado social de direito (arts. 20, inc. I, e 28, inc. I, da LF) ou mesmo das diversas normas de competência (7).
Mesmo assim, no âmbito de uma proibição relativa de retrocesso, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas com o problema, lograram desenvolver, a partir do Direito Constitucional Positivo, algumas alternativas destinadas a ense- jar um certo grau de proteção às prestações sociais e ao sistema global de se- guridade social. Particular relevância assumiu, neste contexto, o direito e garan- tia fundamental da propriedade (art. 14 da LF), razão pela qual esta será priori- zada neste breve estudo sobre a proibição de retrocesso social na Alemanha. As demais alternativas referidas na doutrina serão, por ora, objeto de mera apresentação, tanto pelas limitações deste artigo quanto pelo fato de que não lograram atingir a mesma importância.
Antes de iniciarmos a análise propriamente dita da função da garantia da
propriedade para a proteção do sistema de seguridade social na Alemanha, con- vém lembrar o leitor de que, ao mesmo tempo em que a discussão em torno da redução (e até mesmo do desmonte completo) do estado social de direito apresenta proporções mundiais, não há como desconsiderar que as dimensões da crise e as respostas reclamadas em cada Estado individualmente considera- do são inexoravelmente diversas, ainda que se possam constatar pontos co- muns. Diferenciadas são, por outro lado, as soluções encontradas por cada or- dem jurídica para enfrentar o problema, diferenças que não se limitam à esfera da natureza dos instrumentos, mas que abrangem, de modo especial, a intensi- dade da proteção outorgada por estes aos sistemas de seguridade social.
O estudo do modelo germânico, no âmbito do Direito Comparado, assume particular interesse por várias razões, destacando-se o fato de que a Alemanha foi não apenas o berço do socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels,mas também da social-democracia (com Lassale), bem como da própria noção de um estado social e democrático de direito, bastando aqui a referência à Constituição de Weimar (1919), vertente do constitucionalismo social deste sé- culo. Por outro lado, pela posição de destaque que a Alemanha (juntamente com a França e a Itália, por exemplo) ocupa na União Européia, o estudo do exemplo germânico, além de expressar de modo geral e paradigmático – ressal- vadas as especificidades de cada país – a realidade do estado social de direito na Europa ocidental, serve como importante fonte de referência para uma análi- se comparativa.
Além disso, a peculiaridade das soluções desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência alemãs (independentemente de sua eficácia e de suas vantagens) merece alguma atenção não apenas pelas alternativas oferecidas, mas, também, pelo uso de certas categorias que, salvo melhor juízo, poderiam gerar certo in- teresse prático também entre nós, notadamente no que diz com a figura da ex- pectativa de direitos, a proteção da confiança e o uso do princípio da proporcio- nalidade. Ademais, assume relevo o uso alternativo do direito e garantia funda- mental da propriedade, sinalizando de forma paradigmática as diversas funções que podem ser deduzidas dos direitos fundamentais e das transformações que estes sofreram ao longo dos tempos. Assim, ainda que venhamos a concluir pela desnecessidade ou inconveniência desta solução no âmbito do Direito pá- trio, de modo especial em face dos mecanismos consagrados em nossa Consti- tuição, temos a convicção de que o presente estudo não se restringe a um mero capricho pessoal, já que – salvo melhor juízo – o desmantelamento do estado social de direito também entre nós se encontra na ordem do dia.
Por derradeiro, ainda no que diz com a apresentação do tema e as limita- ções deste estudo, cumpre ressaltar que a nossa atenção estará centrada na apresentação e breve análise do modelo germânico, de modo especial, na di- mensão constitucional, isto é, jurídico-positiva, do problema da proibição de re- trocesso social. Estamos cientes, todavia, de que estaremo-nos ocupando ape- nas de um dos inúmeros aspectos da problemática global das possibilidades e limites do estado de direito, isto sem falar na relevância filosófica, socioeconô- mica e política do tema.
II – A garantia fundamental da propriedade e a proteção constitucio- nal de posições jurídicas sociais prestacionais
Consoante já referido, a principal solução desenvolvida na Alemanha para fundamentação de uma proteção para o sistema de prestações sociais e das respectivas posições jurídico-subjetivas encontra-se vinculada ao direito e garan- tia fundamental da propriedade (art. 14 da LF). A problemática da estabilidade e flexibilidade das posições jurídicas no âmbito da seguridade social acabou, por esta via, alcançando uma dimensão genuinamente constitucional (8). Ainda que este tema continue sendo controverso, o Tribunal Federal Constitucional da Ale- manha (Bundesverfassungsgericht), após uma fase inicial caracterizada por uma certa retração (9), acabou por reconhecer em diversas decisões que a garantia da propriedade alcança também a proteção de posições jurídico-subjetivas de
natureza pública, de tal sorte que, atualmente, se pode falar da formação de um determinado grau de consenso nesta esfera (10).
Como ponto de partida para este desenvolvimento, costuma-se referir a doutrina de Martin Wolff, que, relativamente ao art. 153 da Constituição de Weimar, advogava o ponto de vista de que o conceito de propriedade abrange toda sorte de direitos subjetivos privados de natureza patrimonial, o que acabou por levar à afirmação de um conceito funcionalista de propriedade (11). Daí por
que a garantia da propriedade não protege apenas a propriedade no âmbito dos direitos reais, mas alcança uma função conservadora de direitos, no sentido de que ela igualmente tem por escopo oferecer ao indivíduo segurança jurídica re- lativamente aos direitos patrimoniais reconhecidos pela ordem jurídica, além de proteger a confiança depositada no conteúdo de seus direitos (12).
As posições jurídico-subjetivas patrimoniais de natureza pública acabaram sendo colocadas sob a proteção da garantia fundamental da propriedade, na medida em que se considerou que o princípio do estado de direito exige um tra- tamento igualitário relativamente às posições jurídico-subjetivas privadas (13). Para o Tribunal Federal Constitucional, o reconhecimento desta proteção outorgada às posições subjetivas de direito público por meio da garantia fundamental da propriedade encontra seu principal alicerce na estreita vinculação entre o di- reito de propriedade e a liberdade pessoal, no sentido de que ao indivíduo deve ser assegurado um espaço de liberdade na esfera patrimonial, de tal sorte que possa formatar de maneira autônoma sua existência (14).
Ainda no que diz com a proteção de posições jurídico-subjetivas de natureza pública por meio da garantia fundamental da propriedade, o Tribunal Fede- ral Constitucional, já em arestos anteriores, entendeu que esta proteção tem por pressuposto a circunstância de que ao titular do direito é atribuída uma posição jurídica equivalente à da propriedade privada e que, no caso de uma supressão sem qualquer compensação, ocorreria uma colisão frontal com o princípio do estado de direito, tal como plasmado na Lei Fundamental (15).
Paradigmática é, portanto, a virtual equiparabilidade das posições subjeti- vas de direito público com a condição do proprietário (16). Com a inclusão de direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública na esfera da seguridade so- cial no âmbito de proteção da garantia fundamental da propriedade, verificou-se uma ampliação do conceito de propriedade vigente no direito privado, do qual o conceito constitucional de propriedade acabou por se desprender quase que completamente (17).
De acordo com a melhor doutrina e jurisprudência, verifica-se, todavia, que nem todos os direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública encon- tram-se abrangidos pela garantia fundamental da propriedade (art. 14 da LF), mas tão-somente os que atendem a determinados requisitos, sendo, desde logo, descartada uma extensão generalizada (18). A partir de duas decisões modelares
sobre o tema, o Tribunal Federal Constitucional acabou enunciando alguns crité- rios essenciais para o reconhecimento da proteção de posições jurídico-subjeti- vas de natureza pública pela garantia da propriedade, quais sejam: a) à posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo a prestação social) deve corres- ponder uma contraprestação pessoal de seu titular; b) deve tratar-se de uma posição jurídica de natureza patrimonial, que possa ser tida como de fruição privada para o seu titular; e c) ela deve servir à garantia da existência de seu titular (19). Sobre estes pressupostos passaremos a nos manifestar em seguida.
No que diz com o primeiro critério, é preciso que se leve em conta se o direito subjetivo público se encontra exclusivamente fundado em uma prestação estatal ou se ele pode ser tido como equivalente a uma prestação própria de
seu titular (20). Uma posição jurídico-subjetiva patrimonial embasada exclusivamente numa prestação unilateral do Estado tem sido rechaçada (21). O quanto cada titular de um direito público subjetivo deve ter contribuído a título de pres- tação própria ainda não foi, contudo, completamente esclarecido (22). No que tange a este aspecto, é possível partir da premissa de que uma equivalência absoluta entre a prestação estatal e a contrapartida pessoal não se revela como indispensável, bastando – de acordo com o Tribunal Federal Constitucional – uma contribuição “não irrelevante” por parte do titular do direito (23).
Significativo é que, desde sua decisão do dia 16-07-85, o Tribunal tem sustentado o entendimento de que, para o reconhecimento da proteção da ga- rantia da propriedade, considera-se suficiente que a pretensão do particular não se encontre embasada única e exclusivamente numa prestação unilateral do Es- tado (24).
Para além disso, tem sido tolerado que a contraprestação provenha de terceiros, em favor do titular do direito, tal como ocorre com as contribuições sociais dos empregadores (25). Importa referir, neste contexto, o fato de que é a totalidade da pretensão, e não apenas as parcelas equivalentes às contraparti- das individuais dos particulares, que se encontra abrangida pela proteção da ga- rantia da propriedade (26).
Na base do critério da contrapartida pessoal do particular, encontra-se a concepção de que as posições jurídicas patrimoniais de natureza pública radi- cam no reconhecimento do esforço pessoal, isto é, do que foi alcançado pelo
trabalho e formação profissional de cada indivíduo (27), correspondendo, além
disso, à concepção de que é o próprio indivíduo que deve, em princípio, zelar pelo seu sustento (28). Ainda que o reconhecimento da proteção por meio da garantia da propriedade não esteja condicionado ao montante da contrapresta- ção pessoal (desde que esta exista e não seja irrelevante), este tem sido consi- derado decisivo quando se cuida de avaliar a relação de pertinência pessoal
(der personale Bezug), no sentido de que quanto maior a contraprestação do particular, mais robusto o vínculo pessoal que caracteriza a proteção constitu- cional baseada no direito-garantia de propriedade (29).
Assim, chega-se à conclusão de que para o Tribunal Federal Constitucio- nal, o montante da contribuição pessoal é decisivo para o alcance e a definição da intensidade da proteção constitucional das posições jurídico-subjetivas de natureza pública no âmbito da seguridade social (30).
Estreitamente vinculada ao critério da contribuição pessoal do particular, situa-se a segunda condição exigida pelo Tribunal Federal Constitucional, qual seja a de que as posições jurídicas patrimoniais de direito público protegidas constitucionalmente correspondam, de certa forma, às posições jurídico-subjeti- vas particulares, sintonizando, de tal sorte, com a noção de propriedade parti- cular (31).
De acordo com o Tribunal, esta equivalência pode ser reconhecida quan- do o titular do direito pode partir da premissa de que se cuida de uma posição jurídica pessoal, própria e exclusiva (32), caracterizada por uma essencial dispo
nibilidade por parte de seu titular (33). De outra parte, esta indispensável relação
de similitude com o direito de propriedade, tal como exigida pelo Tribunal Fede- ral Constitucional, pressupõe que estejamos diante de uma posição jurídico-sub- jetiva pessoal consolidada, que não poderá ser simplesmente suprimida de acor- do com o que deflui do princípio do estado de direito (34).
Essencial para o reconhecimento da proteção de uma posição jurídico-subjetiva na esfera da segurança social por meio da garantia da propriedade é, além disso, o fato de que deverá ser destinada à garantia da existência de seu titular (35). Com este entendimento, o Tribunal Federal Constitucional acabou aderindo à posição sustentada, no âmbito de decisão anterior, pela Juíza Rupp- von Brünneck, em seu voto dissidente, de acordo com a qual quando a garantia da propriedade contém também um certo grau de proteção da liberdade, na medida em que assegura ao cidadão as condições necessárias para uma vida autônoma e responsável, assim também esta proteção deverá abranger as posi- ções jurídico-subjetivas de direito público, já que estas têm alcançado uma crescente importância para a pessoa no que diz com sua existência econô- mica (36).
Cumpre observar, todavia, que com este critério adicional, o pressuposto da contraprestação do particular acabou sendo relativizado (37), já que com o caráter existencial da posição jurídico-subjetiva individual, o Tribunal Federal Constitucional reconheceu que a maior parte dos cidadãos alcança a sua segurança existencial econômica (wirtschaftliche Existenzsicherung), menos por meio de patrimônio privado imobiliário e/ou mobiliário, do que pelo resultado de seu trabalho (38). Para o Tribunal, a garantia da propriedade no estado social de direito sofreria um sério déficit na sua funcionalidade, caso não abrangesse po- sições jurídico-subjetivas patrimoniais que cumprem a função de principal e, por
vezes, até mesmo de única fonte para a existência de maior parte da po- pulação (39).
No âmbito destes três pressupostos e da ampliação do conteúdo social do conceito de propriedade a eles vinculada (40), a proteção das posições jurídi- co-subjetivas patrimoniais de direito público pela garantia da propriedade foi sen- sivelmente enrobustecida. Assim ocorre, por exemplo, com a maioria das pres- tações que integram o sistema público de seguridade social, de modo especial, contudo, as aposentadorias e pensões (41). Também as expectativas de direitos (Anwartschaften) foram abrangidas, notadamente, aquelas posições jurídico-sub- jetivas de direito público que, mediante o implemento de outras condições (por
exemplo um certo prazo de espera e/ou carência), tornam-se plenamente exigí- veis (42).
Da mesma forma ocorre com o seguro-desemprego, os direitos decorren- tes do seguro de acidentes, a remuneração pelo trabalho temporário (Kurzarbeitsgeld), os incentivos para a infância (Kinderzuschüsse), bem comocom o seguro-saúde dos aposentados contra doenças, apenas para citar as hi- póteses mais habituais (43).
Não protegidas pela garantia de propriedade (art. 14 da LF), são, em contrapartida, as assim denominadas prestações reabilitatórias (Rehabilia- tionsleistungen) e secundárias (Nebenleistungen) sem a respectiva contraprestação (44), tal como o auxílio para as crianças (Kindergeld), o auxílio para a juventude (Jugendhilfe), a assistência social (Sozialhilfe), o auxílio-moradia (Wohngeld), os incentivos para a formação profissional (Ausbildungsförderung) e a indenização social (soziale Entschädigung) (45). Já que não se cuida, aqui, de relacionar todos os possíveis exemplos, analisando-os individualmente, cumpre referir, neste contexto, que, para o reconhecimento da proteção constitucio- nal ora em exame, é necessário que se trate de prestações obrigatórias (Pflichteleistungen), o que exclui, desde logo, prestações discricionárias, que não radicam numa posição jurídica similar à propriedade privada, ao menos, de acordo com o entendimento do Tribunal Federal Constitucional e de parte da
doutrina (46).
Os critérios enunciados pelo Tribunal Federal Constitucional e, de regra, reconhecidos também pela doutrina, não ficaram, contudo, imunes a críticas. Neste sentido, costuma referir-se, a partir do paradigmático voto dissidente da Juíza Rupp von Brünneck, que não se revela razoável o entendimento de que a proteção outorgada pela garantia fundamental da propriedade às posições jurídi- co-subjetivas patrimoniais de direito público deva, necessariamente, estar condicionada a uma contraprestação do titular do direito e, além disso, servir para garantir a sua existência.
Argumenta-se, neste sentido, que estes dois requisitos não são aplicados no âmbito do direito privado, onde basta a existência de um direito subjetivo de cunho patrimonial, de tal sorte que os critérios da contraprestação e do caráter existencial – exigidos em se tratando de posições jurídico-prestacionais de natu- reza pública – assumiriam relevância apenas no que diz com a problemática dos limites à regulamentação legislativa (47).
Aderindo a estas críticas, o Prof. Hans-Jürgen Papier, da Universidade de Munique, ressalta o fato de que as posições patrimoniais jurídico-privadas al- cançam sua força direta e exclusivamente a partir da norma contida no art. 14 da LF (garantia da propriedade), de tal sorte que, se as posições de direito pú- blico já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitu- cionais, a aplicação supletiva da garantia da propriedade não apenas se revela desnecessária, mas relativizante, visto que, de acordo com o art. 14, inc. III, da LF, estaria, em princípio, sujeita a ser desapropriada mediante uma indenização.
Neste contexto, há, ainda, quem advirta para os riscos de uma ruptura no
clássico e unitário conceito de propriedade, no sentido de que estaria ocorrendo uma inequívoca evolução de uma propriedade assegurada sem reservas, para uma propriedade carente de justificação (rechtfertigunsbedürftigten Eigentum) (48).
Para além disso, argumenta-se que o requisito da garantia existencial (Existenzsicherung) acabaria levando a uma tendencial substituição do conteúdo liberal da garantia da propriedade (49). No que diz com a exigência da contraprestação do titular do direito, sustenta-se a opinião de que no âmbito dos direi- tos patrimoniais públicos não se cuida do direito a uma parcela do patrimônio global da seguridade social equivalente à soma das contraprestações pessoais do titular, mas, sim, da participação na receita futura da previdência social, de tal sorte que à pretensão do particular corresponde apenas de forma relativa e em tese uma contrapartida pessoal equivalente (50).
Por derradeiro, aponta-se oportunamente para a circunstância de que, em decorrência dessa flexibilização e ampliação da noção de propriedade e do âm- bito de proteção da respectiva garantia fundamental, corre-se o risco de uma crescente relativização desta proteção, visto que em virtude das exigências da função social da propriedade, boa parte daquilo que foi concedido poderá acabar
sendo retirado (51). Com efeito, no âmbito do já referido dilema representado
pela necessidade constante de adaptação e simultânea proteção dos níveis prestacionais vigentes, a problemática da cimentização das posições jurídicas sociais acaba por alcançar dimensões preocupantes, de modo especial em face da possibilidade de restrições por parte do legislador, expressamente autoriza- das pelo art. 14, inc. I, da LF, bem como do conseqüente risco de uma flexibili- zação demasiada da proteção constitucional da propriedade, já referida. Importa consignar, neste sentido, que a proteção concreta das posições jurídicas sociais depende, em última análise, da definição do conteúdo e dos limites da garantia fundamental da propriedade por parte do legislador (52).
A respeito deste tema, cumpre ainda citar o entendimento do Tribunal Fe- deral Constitucional, para o qual, “na determinação do conteúdo e dos limites de posições jurídicas previdenciárias, o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação. Isto se aplica principalmente a normas que se destinam a pre- servar, aperfeiçoar ou adaptar à realidade econômica em mutação, em benefício da coletividade, a funcionalidade e capacidade prestacional do sistema legal de previdência social. Neste sentido, a norma contida no art. 14, inc. I, da LF tam- bém abrange a possibilidade de restringir direitos e expectativas de direitos. Conquanto tal medida sirva ao interesse comunitário e corresponda ao princípio da proporcionalidade, ao legislador não estará, em princípio, vedada a reduçãode prestações, bem como a alteração da amplitude de pretensões e expectati- vas, assim como a sua adequação. Todavia, sua liberdade de atuação encontra-se reduzida, na mesma proporção em que os direitos e expectativas estão im- pregnados pelo vínculo pessoal da contrapartida de seu titular” (53).
A partir destas considerações do Tribunal Federal Constitucional, consta- ta-se que quanto maior a função social da posição jurídica prestacional protegi- da, e existindo uma justificativa legitimadora, no caso, o interesse coletivo, tanto maior é a possibilidade de restrições por parte do legislador. Em contrapartida, o caráter existencial da posição jurídica e o montante da participação do titular traçam limites mais ou menos severos a esta atividade legislativa. De qualquer modo, é preciso considerar sempre a proporcionalidade da medida restritiva e o
respeito ao princípio da proteção da confiança (54). Uma restrição será constitucionalmente legítima – de acordo com o Tribunal Constitucional – quando a limi- tação, adequação ou reformulação das posições jurídicas prestacionais se reve- la como indispensável para a proteção da capacidade funcional e prestacional do sistema de seguridade social (55).
Além disso, deverão ser observados os pressupostos específicos do prin- cípio da proibição de excesso (Ubermassverbot), notadamente, que a medida restritiva seja necessária e adequada ao fim almejado pelo legislador, não po- dendo, para além disso, ser excessivamente onerosa (Belastend) e inexigível (Unzumutbar). Assim, constata-se a indispensabilidade de uma ponderação que leve em conta a relação de equilíbrio entre a intensidade da restrição para o titular do direito e os valores utilizados para legitimar a restrição (56).
Ainda no que diz com a legitimidade de eventuais medidas restritivas, há que considerar que a aferição da proporcionalidade da restrição poderá ser realizada apenas à luz do caso concreto, já que a resposta depende da compa- ração entre o interesse público na restrição e o interesse individual do titular do direito na sua preservação, não podendo, portanto, ser preestabelecida de forma genérica e abstrata (57). Por outro lado, a restrição dependerá de especial justificação constitucional quando o legislador invadir o núcleo essencial da equiva- lência pessoal, já que neste caso não basta a existência de qualquer fim coleti- vo. A restrição deverá servir, portanto, à proteção de outros direitos fundamen- tais, ser indispensável à preservação de bens jurídicos superiores ou mesmo atuar como mecanismo de defesa contra graves ameaças, devidamente comprovadas ou pelo menos altamente prováveis (58).
A estes pressupostos soma-se a necessidade de se atentar para o princí- pio da proteção da confiança, por sua vez, diretamente vinculado ao estado de direito, o qual, relativamente à garantia fundamental da propriedade do art. 14 da LF, realiza a função de uma garantia da segurança jurídica para o cidadão (59). Isto assume relevância especialmente nos casos em que a medida legislativa
restritiva acaba atingindo direitos adquiridos. Ainda que os titulares não te- nham direito a uma determinada posição legislativa (Gesetzeslage), vindo a ser atingidas posições jurídicas já consolidadas, o interesse individual deverá ser especialmente considerado, exigindo-se uma cuidadosa ponderação entre os objetivos do legislador e a necessidade de se proteger a confiança do particular (60).
No contexto desta averiguação da proteção da confiança, a jurisprudência cons- titucional previu a necessidade de o legislador estabelecer regras razoáveis detransição, já que os atingidos pelas medidas restritivas deverão contar com a possibilidade de se adaptar à sua nova situação jurídica (61).
Paralelamente ao princípio da proteção da confiança também tem sido sustentada a obrigação de continuidade do legislador na esfera social, inerente ao princípio do estado de direito, conjugada com a função substitutiva de remu- neração (Lohnersatzfunktion) das aposentadorias. Neste sentido, advoga-se o ponto de vista de que as prestações na seara da previdência social devem res- peitar o parâmetro representado pelo nível de rendimentos dos segurados em atividade profissional, o que decorre da obrigação de continuidade do legislador, que deverá zelar por uma certa continuidade sistêmica (Systemkontinuität) em favor do contribuinte, garantia que não se limita ao patamar representado pelas
condições materiais mínimas para uma existência digna (62).
Ainda no que concerne à proteção das posições jurídicas patrimoniais de direito público pela garantia da propriedade, cumpre referir o cunho participativo da norma contida no art. 14 da LF, no sentido de que as pretensões e expecta- tivas individuais, na verdade, objetivam uma futura e relativa participação no re- sultado financeiro, na proporção das contribuições pessoais (63).
Cuida-se, portanto, de uma garantia (fundamental) da participação indivi- dual no sistema global de seguridade e previdência social na medida das ante- riores contribuições pessoais, de tal sorte que o titular da posição jurídica não dispõe de uma pretensão a um valor determinado ou determinável da prestação social que possa ser tido como equivalente às contribuições pessoais (64).
Do exposto, constata-se que a garantia fundamental da propriedade, no âmbito das prestações sociais, não assegura o nível prestacional vigente, razão pela qual o valor da prestação se encontra, relativamente às contribuições pessoais, tão-somente numa proporção relativa (65). As contribuições do titular do
direito servem, em última análise, para assegurar a posição no ranking da co- munidade solidária dos assegurados sociais (66). Neste contexto, a doutrina che- gou a referir uma espécie de transmutação (Wandelung) no âmbito da garantia fundamental da propriedade, que, de acordo com este entendimento, teria transi- tado de um direito de defesa para a condição de um direito de participação (quota-parte), o qual, por sua vez, se caracteriza pela sua dependência da ca- pacidade prestacional do sistema global de seguridade social, trazendo consigo,
todavia, o risco de uma relativização da proteção outorgada pelo art. 14 da LF (direito e garantia da propriedade) (67).
Por derradeiro, poderá concluir-se que, por meio da garantia fundamental da propriedade, as posições jurídico-prestacionais sociais acabaram recebendo uma proteção muito relativa e flexível, já que – de acordo com a precisa e oportuna formulação de Depenheuer – assegurada constitucionalmente é tão-so- mente a inespecífica pretensão à segurança existencial por meio de prestações sociais na esfera da seguridade e previdência social (68). Constata-se, portanto, que, se por um lado, a garantia de determinadas posições jurídicas sociais de direito público pode ser tida como segura, por outro, o que e o quanto é asse- gurado permanece inseguro.
III) Outras possibilidades de proteção constitucional das posições jurídicas sociais de direito público: uma visão panorâmica
Além da proteção por meio da garantia fundamental da propriedade, existem evidentemente outras possibilidades de assegurar constitucionalmente as posições jurídico-subjetivas prestacionais de direito público no Direito lemão. Isto aplica-se principalmente às posições jurídicas que não preenchem as con- dições exigidas para a incidência o art. 14, inc. II, da LF. É de se atentar, por outro lado, que não se trata de mecanismos assecuratórios complementares, mas de critérios autônomos constitucionalmente embasados. A doutrina, assim como a jurisprudência, costumam referir basicamente as seguintes alternativas:
a) o princípio da proteção da confiança, desenvolvido a partir do postulado do
estado de direito (art. 20, inc. III, da LF); b) o princípio fundamental da dignida- de da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da LF); c) o princípio do estado social (art. 20, inc. I, da LF); e d) o princípio geral de igualdade (art. 3º, inc. I, da LF). É a respeito de tais alternativas que passaremos a tecer algumas conside- rações individualizadas, ainda que de cunho sumário.
A) No que diz com a importância do princípio (fundamental) da proteção da confiança, diretamente deduzido do princípio do estado de direito, este – de acordo com o entendimento majoritário na doutrina alemã – apenas alcança sig- nificado autônomo para a problemática da proteção das posições jurídicas so- ciais, na medida em que estas não se encontram abrangidas pelo âmbito de proteção da garantia da propriedade (69). Como concretização do princípio da segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança serve como fundamentação para a limitação de leis retroativas, que agridem situações fáticas já con- solidadas (retroatividade própria), ou que atingem situações fáticas atuais, aca- bando, contudo, por restringir posições jurídicas geradas no passado (retroativi- dade imprópria), já que a idéia de segurança jurídica pressupõe a confiança na estabilidade de uma situação legal atual (70). Com base no princípio da proteção da confiança, eventual intervenção restritiva no âmbito de posições jurídicas so- ciais exige uma ponderação entre a agressão (dano) provocada pela lei restritiva à confiança individual e a importância do objetivo almejado pelo legislador para o bem da coletividade (71).
B) Vinculado ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana,
tal como plasmado no art. 1º, inc. I, da LF, também pode ser tida como limite ao retrocesso na esfera da legislação social a preservação de um mínimo indis- pensável para uma existência digna, no sentido de que as restrições no âmbito das prestações sociais não podem, em hipótese alguma, ficar aquém deste limi- te, pena de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Independente- mente disto, há que considerar que – de acordo com a doutrina e a jurispru- dência – a própria cláusula geral do estado social (art. 20, inc. I, da LF) já fun- damenta uma obrigação do poder público no sentido de promover a assistência aos necessitados (72). Foi justamente neste contexto que a doutrina e a jurisprudência alemãs desenvolveram, a partir de uma exegese criativa calcada na interligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I), do direito à vida (art. 2º, inc. I) e do princípio do estado social (art. 20, inc. I), um direito fundamental não-escrito à garantia das condições materiais mínimas para uma existência digna (73).
Somente isto já poderia servir de limite para uma legislação restritiva e, principalmente, demolitória do sistema de prestações sociais vigente, no sentido de que em qualquer hipótese jamais poderá o legislador agredir o núcleo essen- cial deste direito fundamental não-escrito (ou implícito).
Cumpre averbar, de outra parte, que a função social da garantia de uma
existência digna já vem sendo concretizada, na Alemanha, há cerca de trinta e sete anos, no âmbito da legislação social infraconstitucional (74). Todavia, há que levar em consideração o fato de que na doutrina – muito embora não sem divergências – sustenta-se a opinião de que a assistência social prestada para uma garantia das condições mínimas existenciais não se limita ao mínimo no sentido econômico, alcançando também um mínimo na acepção sociocultural, ain- da que a determinação do valor da prestação assecuratória deste mínimo existen- cial não tenha sido consensualmente obtida, não se podendo falar, até o presente momento, de uma solução uniforme no que diz com este aspecto (75).
C) Também o princípio do estado social (art. 20, inc. I, da LF) costuma ser utilizado como fundamento para uma proteção constitucional de posições ju- rídicas sociais, ainda que neste contexto não lhe seja outorgada significação au- tônoma, já que a partir do princípio do estado social não se podem deduzir di- reitos subjetivos individuais a prestações legislativas determinadas, de tal sorte que o princípio apenas (o que não é pouco) fornece, como critério hermenêuti- co, diretrizes para a avaliação da constitucionalidade de restrições legislativas
na esfera dos sistemas prestacionais vigentes (76). A importância do princípio
do estado social manifesta-se, portanto, principalmente na sua combinação com outros valores constitucionais essenciais consagrados pela Lei Fundamental, no- tadamente com o princípio da isonomia (art. 3º, inc. I), a garantia das condi- ções existenciais mínimas (aqui, como já referido, em combinação com os arts. 1º, inc. I, e 2º, inc. I), bem como com a concepção já referida atribuída à ga- rantia fundamental da propriedade, impregnada do conteúdo de justiça social inerente ao princípio do Estado social e democrático de Direito.
D) Por derradeiro, também ao princípio geral de isonomia (art. 3º, inc. I, da LF) poderá ser atribuída uma importância relativamente limitada no que diz com a problemática da proibição de retrocesso social na Alemanha, isto pelo fato de que o princípio isonômico basicamente é utilizado como parâmetro para
a aferição da constitucionalidade de medidas legislativas que dizem respeito a outro grupo de pessoas (77). Neste sentido, é necessário que, na hipótese de uma intervenção legislativa em posições jurídicas vigentes, a restrição resultante para todos os segurados (considerados individualmente ou em grupos) seja compatível com as exigências do princípio da igualdade, de tal sorte que este, atuando como mandado de uma restrição igualitária, cumpre a função de claro limite para a arbitrária tomada de medidas restritivas ou impositivas de encar- gos, de modo especial por parte do legislador (78).
IV) Considerações finais, inclusive em nível de direito comparado
Os exemplos referidos, de modo especial, a proteção das posições jurídi- cas sociais de direito público pela garantia fundamental da propriedade, revelam que – para além de uma abolição pura e simples, sem compensação, de siste- mas prestacionais legais, a qual se encontra absolutamente vedada – também medidas de cunho restritivo somente podem ser toleradas até certo ponto, pena de eventual ofensa aos postulados básicos inerentes ao princípio do estado so- cial de direito e aos direitos fundamentais. Neste sentido, constatou-se que no âmbito do Direito germânico é possível sustentar a existência de uma proteção constitucional dos direitos sociais previstos na legislação infraconstitucional, pro- teção cujo alcance não pode ser estabelecido previamente de forma genérica e abstrata. Isto porque esta proteção depende, por um lado, de uma cautelosa e criteriosa ponderação das circunstâncias concretas, devendo, de outra parte, le- var em consideração o abismo inevitável entre a realidade fática e a dimensão normativa.
Para além disso, percebe-se que os critérios e alternativas desenvolvidos no âmbito do Direito Constitucional germânico podem ser trasladados apenas parcialmente para o direito pátrio, carecendo, ademais, de uma adaptação às especifitudes de nossa ordem jurídica. Por outro lado, existem aspectos comuns que não podem ser desconsiderados, de modo especial, o fato de que também entre nós não há como sustentar uma vedação absoluta de medidas restritivas na esfera dos direitos sociais prestacionais, já que nem mesmo os direitos fun- damentais sociais expressamente consagrados na Constituição – os quais inte- gram inequivocamente o rol das “cláusulas pétreas” do art. 60, § 4º, da CF de 1988 – são imunes a restrições. Com efeito, apenas a abolição efetiva ou ten- dencial destes direitos encontra-se vedada, uma vez que o que se pretende é a preservação de seu núcleo essencial, pena de uma indesejável galvanização das normas constitucionais, que, por seu turno, traz em seu bojo o risco de uma intolerável ruptura da ordem constitucional, em face do insuperável abismo entre a constituição formal e a realidade constitucional (79).
Sendo comum a ambas as ordens jurídicas (alemã e brasileira) uma ve- dação pelo menos relativa de retrocesso na esfera do sistema vigente de pres- tações sociais, que, em última análise, representa a concretização no plano da legislação infraconstitucional do princípio do estado social de direito e/ou dos di- reitos fundamentais sociais consagrados na Constituição, não há como negar, de outra parte, a existência de uma série de diferenças a serem consideradas.
Sem qualquer pretensão de exaurir a problemática, em face dos estreitos limites deste estudo, cumpre relembrar, num primeiro momento, o fato de que a Lei Fundamental da Alemanha não consagrou, como regra geral, direitos funda- mentais sociais em seu texto, limitando-se a agasalhar o princípio fundamental do Estado social e democrático de Direito, a partir do qual foi desenvolvida uma abrangente e eficiente legislação na esfera da previdência e da seguridade so- cial. Assim, os direitos a prestações sociais, ainda que indiretamente fundados na cláusula geral do estado social, têm embasamento legal, ressalvado o desen- volvimento jurisprudencial de direitos fundamentais sociais não-escritos, como, de modo especial, a garantia das condições mínimas para uma existência digna, o direito à saúde e o direito à educação.
Justamente por este motivo, quando se fala na proibição de retrocesso social no caso da Alemanha, cuida-se principalmente da problemática da prote- ção das posições prestacionais consagradas em nível infraconstitucional. Para outorgar-lhes uma proteção constitucional, por estar em jogo a concretização do princípio do estado social, o qual também na Alemanha integra o elenco das “cláusulas pétreas”, assim como em face da inexistência de normas expressas na Lei Fundamental, assegurando uma proteção constitucional direta, as posi- ções jurídico-prestacionais sociais de direito público acabaram sendo considera- das como abrangidas pela garantia fundamental da propriedade.
No sistema pátrio, pelo contrário, no qual a Constituição de 1988 foi pró- diga em direitos fundamentais sociais, a problemática alcança um significado di- verso, na medida em que o próprio status constitucional, de modo especial a fundamentalidade material e formal que caracteriza os direitos sociais, já asse- gura aos mesmos um grau diferenciado e evidentemente mais elevado de prote- ção, ainda que lamentavelmente não faltem os que impugnam não apenas a condição de “cláusula pétrea” dos direitos fundamentais sociais, mas até mes- mo a sua fundamentalidade, ao menos no aspecto material.
Além disso, a existência de dispositivos expressos na nossa Constituição,
consagrando, em última análise, o princípio da proteção da confiança, demons- tra que a construção alemã, no que diz com a utilização do direito e garantia da propriedade, é – ao menos entre nós – desnecessária. Neste sentido, basta apontar para o que dispõe o art. 5º, inc. XXXVI, da nossa Constituição, estabe- lecendo o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, dispositivos que se aplicam principalmente (mas não exclusivamente) às posi- ções jurídicas infraconstitucionais. Mesmo assim, temos a convicção de que al- gumas lições úteis podem ser extraídas do exemplo germânico.
Dadas as especificitudes do modelo pátrio, também entre nós há como sustentar a existência de uma proibição de retrocesso na esfera social, vedação que, todavia, não poderá jamais assumir feições absolutas. Esta proibição relati- va de retrocesso, tendo em vista a previsão expressa de direitos sociais na nossa Constituição e a sua proteção por meio das “cláusulas pétreas” é, pelo menos do ponto de vista jurídico-normativo, mais robusta que as soluções de- senvolvidas à luz da Lei Fundamental da Alemanha, carente de direitos funda- mentais sociais e de norma expressa consagrando o respeito aos direitos adquiridos.
Outro aspecto que merece ser destacado é o fato de que a amplitude e intensidade da proteção outorgada pela ordem constitucional às posições jurídi- co-subjetivas na esfera social, tanto no plano constitucional quanto ao nível da legislação ordinária, dependem de uma análise centrada nas especificidades do caso concreto, exigindo um procedimento tópico-sistemático, já que nos parece inviável o estabelecimento de critérios abstratos e genéricos, a não ser o pró- prio reconhecimento de uma proibição meramente relativa de retrocesso.
O estado social de direito/233
A importância do princípio da proteção da confiança que, ao menos no caso da Alemanha, exerce uma função semelhante à atribuída ao direito adquiri- do, revela, entre outros aspectos, o grave equívoco no qual incorrem aqueles que, objetivando fundamentar o livre avanço sobre as conquistas na esfera so- cial, reportam-se ao argumento de que na maior parte dos países desenvolvidos inexiste proteção dos direitos adquiridos. Com efeito, impende considerar que, mesmo em ordens constitucionais em que os direitos adquiridos não mereceram expressa previsão e proteção pelo Constituinte, acabaram sendo objetos de pro- teção constitucional por meio do princípio (implícito) da proteção da confiança. Parece-nos que só esta constatação demonstra claramente que a opção pela abordagem do problema proposto neste estudo não se restringe a um mero ca- pricho pessoal. Pelo contrário, evidencia de forma escancarada que a figura ju- rídica dos direitos adquiridos, respeitadas as especificitudes de cada ordem jurí- dica, ainda que não expressamente agasalhada na nossa Constituição, não prescinde de um certo grau de proteção, já que (também entre nós) pelo me- nos implícita e indiretamente fundada no princípio do estado de direito.
Também pode ser tida como paradigmática a utilização do princípio da proporcionalidade como critério aferidor da legitimidade de uma restrição na es- fera de uma proibição de retrocesso social, revelando, neste contexto, que a função do referido princípio, igualmente deduzido do princípio do estado de di- reito, não se limita a servir de parâmetro para o exame da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, incluídos neste rol os assim deno- minados direitos sociais. Com efeito, também a ação erosiva do legislador que tenha por objetivo a implementação de ajustes e cortes no âmbito do sistema infraconstitucional de prestações sociais deve levar em conta as exigências do princípio da proporcionalidade, isto é, ser ao mesmo tempo necessária, adequa- da e razoável, pena de ofensa aos próprios direitos fundamentais sociais e ao princípio do estado social de direito (80).
Em última análise, não se poderá abdicar jamais da tarefa de realizar uma cuidadosa ponderação de todas as circunstâncias, de modo especial entre o valor dos direitos dos particulares a determinado grau de segurança social e os reclamos do interesse da coletividade.
A sistemática adotada pela doutrina e jurisprudência constitucional ale- mãs, notadamente no que diz com o uso do direito e garantia fundamental da propriedade, revelam, por sua vez, de forma contundente, a multifuncionalidade característica dos direitos fundamentais em geral, assim como as transforma- ções pelas quais têm passado. Além de reforçar, ainda que em outro contexto, a sua função social, a ampliação do âmbito de proteção da garantia da proprie- dade, objetivando assegurar, ao menos de forma relativa, o conteúdo das posi- ções jurídico-subjetivas sociais, especialmente de cunho prestacional, coloca em destaque a importância de uma hermenêutica constitucional criativa num mundo em constante transformação.
Pela sua estreita vinculação com a temática abordada, cumpre referir a
circunstância elementar, inobstante habitualmente desconsiderada, de que o Di- reito não assegura, por si só, os recursos indispensáveis para a existência hu- mana, já que meramente pode oferecer critérios para uma distribuição dos bens materiais. Neste sentido, constata-se que a proteção do conteúdo das posições jurídicas na esfera social não poderá apenas ser desenvolvida a partir da ordem jurídica, mas deverá também levar em conta as circunstâncias socioeconômicas vigentes, dependendo, de modo especial, da receptividade política relativamente a determinadas medidas por parte do poder público e da concepção vigente de justiça social (81).
Por derradeiro, mesmo atentando para as diversidades em absoluto irrele- vantes entre o sistema germânico e a nossa ordem constitucional, esperamos que tenhamos logrado demonstrar que a análise da experiência germânica já terá valido a pena caso tiver contribuído para colocar em evidência a necessida- de de, também entre nós, zelarmos por uma proteção dos níveis vigentes de segurança social. Não hesitamos, portanto, em afirmar que o princípio funda- mental da proibição (relativa) de retrocesso na esfera social, seja ele implemen- tado por meio do reconhecimento de “cláusulas pétreas”, seja ele desenvolvido implicitamente a partir de outros princípios constitucionais, constitui-se não ape- nas em salvaguarda do estado social de direito ou, caso preferirmos, da justiça material, mas principalmente da própria dignidade da pessoa humana, valor-guia de toda a ordem constitucional e objetivo permanente de toda ordem jurídica que se pretenda legítima.
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(1) – Neste sentido, entre outros, P. Rosanvallon, “A Crise do Estado-Providência”, 1997, analisando o problema especialmente com base na experiência francesa.
(2) – Cfe. K. H. Friauf, in: “Sozialstaat – Idee und Entwicklung, Reformzwänge und Reformziele”, p. 67.
(3) – A este respeito, v. B. Schulte, in: “ZIAS 1988”, pp. 208 e ss.
(4) – Cfe., entre outros, B. Schulte, in: B. Riedmüller/M. Rodenstein (Org.), “Wie Sicher ist die soziale Sicherheit?” (O quanto é segura a seguridade social?), pp. 323-4. Sobre as causas da crise. v. também P. Rosanvallon, “A Crise do Estado-Providência”, pp. 13 e ss.
(5) – A este respeito, v. E. Eichenhofer, in: “ZIAS 1988”, pp. 239 e ss., e, mais re- centemente, O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 417 e ss. Na literatura em Língua Portuguesa encontramos, posicionando-se favoravelmente a uma vedação ao me- nos relativa de retrocesso na esfera social, especialmente J. J. Gomes Canotilho, “Direi- to Constitucional e Teoria da Constituição”, pp. 320 e ss.
(6) – Neste sentido, a lição de R.-U. Schlenker, “Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz”, p. 239.
(7) – Cfe. R. -U. Schlenker, “Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz” , pp. 240-1.
(8) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 419.
(9) – Esta a observação, entre outros, de Rittstieg, in: AK I, p. 1.098.
(10) – Cfe. H.-J. Papier, in: “Maunz/Herzog/Dürig/Scholz”, art. 14, p. 77.
(11) – Esta a lição de O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 421.
(12) – Cfe. a lapidar formulação de P. Badura, in: HbVR, p. 347.
(13) – Assim também P. Badura, in: HbVR, p. 349.
(14) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (290).
(15) – A este respeito e sobre as diversas etapas da evolução no âmbito da jurispru- dência do Tribunal Federal Constitucional, v. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.069.
(16) – Cfe. Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 840, e, mais recentemente, R. Wendt,
in: M. Sachs (Org.), “Grundgesetz”, p. 491.
(17) – Neste sentido, a oportuna referência de Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 830.
(18) – Cfe., dentre outros, H.-J. Papier, in : “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz ”, art. 14, p. 80.
(19) – Ainda que o Tribunal tenha, posteriormente, adaptado e aprimorado certos as- pectos específicos, as estruturas fundamentais de sua jurisprudência nesta seara foram preservadas. A este respeito, v. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 423.
(20) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (291).
(21) – Neste sentido, W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 71.
(22) – Cfe. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.069. (23) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (300).
(24) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (301). Na doutrina, v. especialmente H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, pp. 84-5, que oportunamente chama a atenção
para o fato de que, com esta decisão, o tribunal acabou rechaçando a presunção de que a proteção constitucional das prestações sociais (notadamente das de cunho previ- denciário) se limitaria, em verdade, a uma proteção do montante das contribuições par- ticulares, de tal sorte que acabou por se aceitar uma proteção generalizada dos direitos previdenciários (pensões e aposentadorias).
(25) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (302).
(26) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 425.
(27) – Esta a formulação de P. Badura, in: HbVR, p. 350. Neste sentido, v. também H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 81.
(28) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 425.
(29) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (292) e 58, 81 (112).
(30) – Esta a constatação de H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 85.
(31) – Neste sentido, v. BVerfGE 69, 272 (300-1).
(32) – Assim também BVerfGE 69, 272 (300-1).
(33) – Neste sentido, v. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 73.
(34) – Cfe. R. Wendt, in: M. Sachs (Org.), “Grundgesetz”, p. 491. (35) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (303).
(36) – Cfe. BVerfGE 32, 129 (142).
(37) – Cfe. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.070. (38) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (303).
(39) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (294).
(40) – Cfe. a oportuma referência de W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.070.
(41) – Cfe. Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 841.
(42) – Neste sentido, v. BVerfGE 53, 257 (289-90).
(43) – Cfe. R. Wendt, in: M. Sachs (Org.) “Grundgesetz”, p. 492, Jarass/Pieroth, p. 322, “Rittstieg”, in: AK I, p. 1.098, e H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 95.
(44) – Cfe. R. Wendt, in: M. Sachs (Org.) “Grundgesetz”, p. 492.
(45) – Cfe. H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 94.
(46) – Assim também H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p.95
(47) – Assim, aproximadamente, Rittstieg, in: AK I, p. 1.099. Neste sentido, v. tam- bém a crítica de H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 81, que, para além da crítica já tecida, chama a atenção para o fato de que as posições jurídico-pa- trimoniais privadas alcançam sua força única e exclusivamente com base no art. 14 da LF, de tal sorte que se as posições de direito público já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitucionais, a aplicação supletiva do art. 14 da LF não se revela apenas desnecessária, mas relativizante, visto que, de acordo com o dis- posto no art. 14, inc. III, da LF, estaria sujeita a ser desapropriada mediante uma inde- nização (Entziehbar).
(48) – Neste sentido, a pertinente preocupação de O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 428.
(49) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 434.
(50) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 429-31, o qual questiona o critério da contraprestação pessoal do particular, reconhecendo-lhe – com exceção de sua utilidade como critério de cálculo (Berechnungsfaktor) – apenas uma reduzida signi- ficação.
(51) – Neste sentido, v. também O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 434 e ss. Assim também W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.071, que também fala do perigo de uma diluição do conceito de propriedade (“Verwässerung des Eigentums”).
(52) – Cfe. W. Boecken, “Der Verfassungsrechtliche Schutz”, p. 74, em adesão à jurisprudência da Corte Federal Constitucional (BVerfGE 53, 257 [292]).
(53) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (293), posteriormente confirmado em BVerfGE 58, 81 (122 e ss.) e BVerfGE 69, 272 (304).
(54) – A este respeito, v. especialmente H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/ Scholz”, art. 14, p. 85, bem como W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz ”, pp. 77-8.
(55) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (296) e BVerfGE 58, 81 (114).
(56) – Neste sentido, v. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, pp. 77-8. Na jurisprudência, v. BVerfGE 58, 81 (114).
(57) – A este respeito, v. D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 860.
(58) – Esta a lição de H.-J. Papier, in : “ Maunz/Dürig/Herzog/Scholz ”, art. 14, pp. 85-6.
(59) – Neste sentido, v. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, pp. 78 e ss. Assim também D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, pp. 861 e ss. e BVerfGE 58, 81 (120-1).
(60) – Assim o entendimento de D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 863, e Rittstieg, in: AK I, p. 1.118.
(61) – V. os votos dissidentes dos Juízes E. Benda e D. Katzenstein em BVerfGE 58, 81 (131 e ss.) e 72, 9 (23 e ss.), onde a duplicação do prazo de carência no âmbi- to do seguro desemprego foi tida como inexigível. Na literatura, v., entre outros, Rittstieg, in: AK I, p. 1.118.
(62) – Cfe., de modo especial, H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, pp. 88-9, que, baseado na lição de Scholz, aponta para o fato de que no âmbito desta obrigação de continuidade não se assegura a aposentadoria calculada com base no parâmetro da remuneração bruta, assim como não se garante o nível prestacional vi- gente, já que, no caso de uma queda na arrecadação, também uma diminuição do va- lor das prestações sociais se afigura possível.
(63) – Neste sentido, v. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442. Semelhan- temente também P. Badura, in: HbVR, p. 350, que igualmente sustenta a opinião de que as pretensões e expectativas de direitos podem ser consideradas a partir de uma dimensão participativa da noção de propriedade (teilhaberechtlich ausgestaltetes Eigentum).
(64) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442.
(65) – Cfe. O Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442, assim como Rittstieg, in: AKI, p. 1.099. No âmbito da jurisprudência constitucional, v. BVerfGE 58, 81 (108 e ss.).
(66) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442.
(67) – Neste sentido, principalmente, H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 80, secundado por O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 442-3. Aver- be-se, todavia, a posição crítica de G. Haverkate, in: “ZRP 1984”, p. 221, que rechaça o cunho prestacional da garantia da propriedade, sob o argumento de que, em verdade, não é o Estado que fornece as prestações, mas, sim, os contribuintes da seguridade social, de tal sorte que não é propriamente às prestações estatais que é outorgada a especial dignidade dos direitos fundamentais, mas, sim, à comunidade dos segurados sociais.
(68) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 444.
(69) – Neste sentido, entre outros, W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”,
p. 81, e Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 842.
(70) – Cfe. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 80.
(71) – Esta a lição de D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 862, com apoio na jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional, de modo especial, BVerfGE 64, 87 (104). Assim também W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 82.ss.
(72) – Cfe., entre outros, o entendimento de H. -F. Zacher, in: HbStR I, pp. 1.062 e
(73) – A este respeito, v. meu “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, pp. 283 e ss.
(74) – Basta, neste sentido, referir o § 9º da Parte Geral do Código da Previdência e Seguridade Social (Sozialgesetzbuch – allgemeiner Teil), bem como dos §§ 1º, inc. I, 4º, inc. I, e 11, inc. I, da Lei Federal de Assistência Social (Bundessozialhilfegesetz), que, na sua formulação original, foi editada em 30-06-61.
(75) – A respeito desta problemática, v., entre outros, J. van Bargen, in: FS für H. Simon, pp. 745 e ss.(de modo especial, porém, pp. 749 e ss.).
(76) – Cfe. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz”, pp. 82-3.
(77) – Cfe. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 83.
(78) – Neste sentido. v. a lição de B. Schulte, in: “ZIAS 1988”, pp. 212-3, que ain- da chama a atenção para o fato de que os efeitos do princípio da igualdade são, neste contexto, essencialmente de ordem negativa, no sentido de que ela veda determinadas configurações discriminatórias no âmbito da legislação social. Assim também, inobstante de forma mais tímida, E. Eichenhofer, in: “ZIAS 1988”, p. 240.
(79) – A respeito do significado do abismo entre norma e realidade constitucional e as suas conseqüências no âmbito da efetividade das normas constitucionais, v. especial- mente K. Hesse, “A Força Normativa da Constituição”. Sobre a amplitude e alcance da proteção outorgada pelas assim denominadas “cláusulas pétreas” da Constituição, v. meu “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, pp. 359 e ss.
(80) – Sobre o princípio da proporcionalidade, v., entre nós, especialmente, P. Bonavides, “Curso de Direito Constitucional”, pp. 356 e ss., assim como as relativamen- te recentes obras de R. D. Stumm, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Consti- tucional Brasileiro”, 1995, e de S. T. Barros, “O Princípio da Proporcionalidade e o Con- trole de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”, 1996.
(81) – Esta, em suma, a lição de B. Schulte, in: “ZIAS 1988”, pp. 215 e ss.V)
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Por Thiago Lima Breus - 06/02/2017
I. Introdução.
Nos últimos anos, observa-se a crescente adesão à ideia de administração por contrato na qual o contrato público-administrativo assume um papel efetivamente protagonista no exercício da atividade governamental, a ponto de se bem destacar que, “na Administração Pública atual, administrar é, sobretudo, contratar”.
De ferramenta e/ou engrenagem destinada prioritariamente ao atendimento imediato das necessidades de custeio e de utilidades para a gestão pública, o contrato público passa a ser empregado, sobretudo, como mecanismo de regulação da colaboração dos particulares com a Administração para a consecução de finalidades públicas, isto é, os contratos deixam de funcionar tão-só como instrumento técnico-jurídico para o exercício de atividades-meio e passam a servir diretamente para a prossecução de atividades-fim.
Neste movimento, surgem aplicações consideradas “inovadoras” para o contrato na gestão pública, destacando-se o emprego sistemático de formas de externalização (contracting out, outsourcing) de funções públicas, o recurso à contratação interna (contratação in house) entre entidades da Administração Pública, a utilização do contrato como instrumento de regulação pública e como substitutivo de sanções administrativas, tais como os acordos substitutivos nas sanções regulatórias, os termos de ajustamento de conduta, os compromissos de cessação de prática na esfera concorrencial, dentre outros.
O presente texto, excerto parcial da tese de doutoramento do autor defendida perante o Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR - sob a orientação do Prof. Dr. Egon Bockmann Moreira - pretende aludir ao crescente fenômeno de se empregar os contratos públicos para a realização de políticas públicas horizontais, vale dizer, aquelas que não constituem exatamente o objeto imediato da avença, mas que procedem, como externalidades positivas, do contrato público.
II. A dimensão significativa da Contratação Pública no PIB de todos os países.
Atualmente, os contratos públicos representam dimensão indiscutível do PIB (Produto Interno Bruto) de todos os países. De acordo com Nuno Cunha Rodrigues, “em países em vias de desenvolvimento e em economias em transição com setores econômicos privados subdesenvolvidos, a proporção dos contratos públicos em relação ao PIB pode ser de 40%”. Nos Estados Unidos, os contratos públicos equivalem a cerca de 20% do PIB anual. Em 2009, na União Europeia, a contratação pública correspondeu a 19,4% do PIB de 27 países membros.
No Brasil, excetuados os contratos públicos de parceria, concessão e permissão de serviços públicos, as compras públicas (aquisições de bens e serviços) da União, Estados e Municípios representaram aproximadamente 6,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2007. Em 2012, as compras da Administração representaram mais de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro . Incluídos todos os arranjos contratuais dos quais o Estado brasileiro participa, alcança-se o índice de 21,5% do PIB de 2012 , de modo que, nos últimos anos, verifica-se um crescimento vertiginoso da participação da contratação pública em relação ao montante total da riqueza produzida anualmente no país.
A contratação pública tem funcionado, ademais, como base e forma de financiamento de todos os grandes investimentos atuais em infraestrutura, como portos, aeroportos, rodovias, energia elétrica, gasodutos etc, assim como nos planos de mobilidade e de urbanização. Por conseguinte, a verificação de que, no mundo em geral e no Brasil em particular, “contracting out is in” é irrefutável. A mera constatação quantitativa do fenômeno, porém, diz pouco. É impositivo que sejam examinados os efeitos e as consequências da ampliação da contratação pública como mecanismo de ação estatal propriamente dito e não apenas como atividade instrumental.
Por meio de contratos públicos de concessão, por exemplo, o Estado transfere a responsabilidade direta da prestação do serviço, mas, por igual, retém o controle das variáveis atinentes ao cumprimento do contrato. Nestes contratos incidem elementos políticos, econômicos, jurídicos e sociais nos quais o Estado, inequivocamente, deve se fazer presente, regulando, controlando, assegurando e garantindo os direitos e obrigações dos protagonistas do serviço: tanto os prestadores (e/ou fornecedores), quanto os usuários e cidadãos.
Esses contratos não se limitam a estabelecer o conteúdo das obrigações ou a prestação objeto do contrato. Eles vão além, pois determinam, ao mesmo tempo, as condições em que devem se desenvolver as prestações, as metas de qualidade e extensão do serviço a ser prestado, os pagamentos a serem feitos, a modernização e permanente atualização dos meios materiais e técnicos relativos à prestação, as tecnologias a serem empregadas etc.
É nesse modelo de Administração Pública que exsurge a figura de um contrato público, no qual, paralelamente ao seu escopo nuclear, são adicionadas finalidades contratuais acessórias ou suplementares, transversais ou horizontais, ao objeto primeiro das prestações contratuais, mas igualmente presente no bojo e no contexto da sua celebração. Portanto, diante da sua relevância contemporânea, torna-se possível o recurso à contratação pública para a realização de outras finalidades públicas, para além da obtenção de bens e serviços para a Administração.
III. A prossecução de políticas públicas por meio da contratação pública contemporânea: a estruturação da contratação pública estratégica.
A contratação pública se converte, nessa conjuntura, como uma (nova) oportunidade para o Estado desenvolver finalidades públicas que, até então, seriam realizadas por outros meios tradicionais de ação estatal, tais como políticas públicas realizadas pelos próprios agentes estatais. Vale dizer, a Administração pode pretender a adjudicação de um objeto primário, como uma obra pública, a obtenção de um bem, a prestação de um serviço público ou a exploração de um empreendimento e, simultaneamente, a promoção também de fins paralelos ao do contrato, tais como, a inovação, a preservação ambiental, o desenvolvimento da produção industrial, a melhoria do emprego, da saúde pública, das condições sociais e, em especial, a inclusão de grupos hipossuficientes.
A inserção de finalidades paralelas à pretensão original não tem o condão de desnaturar a avença celebrada. Ao contrário, a partir delas é possível a reafirmação da “lógica da função” pública, também na esfera do instrumento contratual. Nesse sentido, exsurge a possibilidade do emprego em sentido lato do contrato público como instrumento de governo ou de gestão pública. De fato, essa noção almeja transcender o papel do contrato como mera ferramenta administrativa, tornando-o própria missão ou tarefa estatal.
Da noção tradicional, portanto, de que o Estado recorreria ao mercado para (i) adquirir bens e serviços indispensáveis para o desempenho de seus encargos institucionais; (ii) edificar obras de infraestrutura necessárias para a prestação de serviços públicos, atividades de regulação, fomento etc. e (iii) prestar serviços públicos, sob o modelo de gestão do governo por contrato(s), são adicionadas a realização de finalidades contratuais suplementares, não diretamente relacionadas ao objeto primeiro das prestações contratuais, mas presente no bojo e no contexto da celebração do contrato.
Nos últimos anos, paralelamente às finalidades contratuais tradicionais, em especial, a obtenção de uma contratação vantajosa, isonômica e transparente, foram-se somando novas preocupações, denominadas também de metacontratuais, de forma que as contratações públicas, a par de seus objetivos imediatos, passaram a servir também como instrumento de realização mediata das mais variadas políticas públicas voltadas à prossecução de demandas morais da sociedade, com fundamento no ordenamento jurídico.
Logo, com a inserção de políticas públicas suplementares na contratação pública, ela passa a se consagrar como um instrumento interventivo estatal dirigido (targeted procurement ) para produzir resultados mais amplos do que o simples aprovisionamento de bens e serviços necessários à satisfação dos entes estatais. Atualmente, inclusive no Brasil, uma série de iniciativas administrativas e legislativas têm buscado impulsionar cada vez mais a utilização de contratos públicos para a satisfação de objetivos extracontratuais, com destaque à idée-force do desenvolvimento nacional sustentável e sua multidimensionalidade.
Parte-se da premissa de que, além de agente normativo e regulador da ordem econômica, o Estado também é consumidor de bens, serviços, obras, dentre outros. Ao se tomar parâmetros de sustentabilidade como critério para as compras que realiza, o Estado passa não apenas a redefinir padrões de consumo, mas também a “(...) impactar diretamente na reorganização do mercado, à medida que inaugura ou potencializa um nicho de mercado, influenciando a opinião pública e decisões empresariais, de modo a influenciar os padrões gerais de demanda”.
Vislumbra-se, assim, que as contratações públicas passam a atuar como instrumentos regulatórios, vale dizer, o contrato público deixa de ser considerado exclusivamente objeto de regulação (caso em que a regulação ocorre por agência) e passa a funcionar, per se, como mecanismo de regulação pública (caso em que a regulação ocorre também por meio do próprio contrato público).
Como consequência disso, a inserção de finalidades acessórias no âmbito da contratação pública pretende o aproveitamento e, mais, a própria “internalização”, na medida das possibilidades jurídicas, sociais e econômicas, das chamadas “externalidades positivas” (spillover effects) como escopo do próprio contrato Com a compatibilização entre as finalidades contratuais e as externalidades internalizadas, “o contrato tenderá a fixar relações ‘preços-quantidades’ que se aproximam do ótimo social”.
A despeito da possibilidade de internalização das externalidades positivas, há muitas questões a serem acertadas no campo da contratação pública, em especial, a partir da sua colocação como instrumento de ação estatal destinada à satisfação de direitos fundamentais. As questões mais complexas hoje dizem respeito a: (i) como integrar as considerações ambientais, sociais e tecnológicas sem desnaturar a própria contratação pública e (ii) qual seria o grau ótimo de integração destas considerações nas contratações públicas?
Nesse sentido, para além da visão (ainda corriqueira) a propósito da contratação pública levada a efeito desde uma perspectiva meramente instrumental, burocrática e estrita da economicidade, cuja finalidade se cinge a salvaguarda privativa da maior vantagem exclusivamente econômica (best value for money), a contratação pública deve ser visualizada como uma ferramenta a serviço do cumprimento efetivo dos fins constitucionais estatais e das políticas necessárias à sua concretização, isto é, devem ser integradas à prossecução do value for money considerações oriundas do best social value.
A compatibilização entre eles não é simples. Ela requer uma visualização ampliada das finalidades da contratação pública e do próprio processo de seleção do contratado, que irá fornecer o produto, prestar o serviço à própria Administração ou diretamente ao usuário. A visão, baseada na legislação atualmente aplicável, de que a licitação se destina à realização da contratação mais vantajosa permanece. A compreensão, todavia, do que vem ser considerada a maior vantagem é que precisa corresponder às demandas da sociedade e aos deveres estatais contemporâneos.
IV. A questão terminológica: Políticas acessórias, secundárias e/ou horizontais?
O contrato público, independentemente de seu objeto imediato, seja a obtenção de um bem ou um serviço, seja a contratação de uma obra ou a concessão de um serviço público, deve ser considerado vantajoso e assegurar a isonomia. Além destas finalidades imediatas, intracontratuais ou microeconômicas, podem ser acrescidas outras finalidades mediatas, extracontratuais ou macroeconômicas. Em princípio, por se tratarem de finalidades inerentes à gestão pública e inseridas no escopo de atribuições constitucionais atribuídas ao Estado, elas têm sido designadas genericamente por políticas públicas dos mais variados matizes: ambientais, sociais, culturais, de desenvolvimento, tributárias, de fomento ou promocionais, dentre outras. A própria contratação pública per se tem sido considerada uma política pública.
Como, em princípio, elas não constituiriam o objeto central da avença celebrada com o particular, essas políticas públicas têm sido adjetivadas como acessórias, secundárias e/ou horizontais, ou ainda, transversais , suplementares, adicionais ou colaterais. Há ainda a denominação de políticas públicas agregadas (contratação pública agregada).
Para os fins do presente estudo, adota-se a nomenclatura políticas públicas horizontais, uma vez que, consoante Sue Arrowsmith, a noção de políticas acessórias e/ou secundárias induziria, ainda que de modo implícito, à ideia de se estar diante de políticas de menor relevância ou expressão frente às buscadas imediatamente pelo contrato. Em diversos casos, há paridade entre elas e, em outros, é possível se denotar que a Administração se utiliza da contratação pública com o objetivo primeiro de concretizar a política horizontal e não o contrário. A definição do que constitui o objeto do contrato permite a inclusão de aspectos ambientais e sociais e outros que assumirão uma natureza principal e não meramente acessória. Por isso, pode-se afastar a terminologia de políticas secundárias. Em grande parte das contratações, elas se tratam de políticas principais. Aí se pode estar diante de contratos com finalidades múltiplas.
A título de exemplo, destaca-se que, com o objetivo de minimizar os efeitos da depressão no pós-1929, os EUA lançaram mão do Buy American Act, a partir do qual contratação pública se destinou antes a estimular a economia interna e, portanto, a promover a recuperação econômica, do que à aquisição de bens e produtos de origem nacional.
No Brasil, é possível também exemplificação nesse sentido. A lei nº 8.666/93 teve a sua redação sistematicamente modificada para ampliar as hipóteses de dispensa de licitação. Em 1994, foram incluídas cinco hipóteses de dispensa de licitação, sendo duas delas de incentivo: dispensa de licitação para aquisição de material gráfico produzido por entidades administrativa criada com esta finalidade específica, a exemplo da Imprensa Nacional (artigo 24, inciso XVI); e contratação direta de associação de portadores de deficiência para prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra (artigo 24, inciso XX).
A partir de então, dos 11 novos casos de dispensa de licitação previstos na Lei 8.666/1993, apenas dois não tratavam de incentivo. Todos os demais tinham por finalidade última promover o desenvolvimento de alguma atividade ou instituição específica. Ademais, merece destaque que, doravante, os dispositivos passaram a ser naturalmente visualizados em seus correspondentes contextos de política pública.
Deste modo, as seguintes políticas públicas ensejaram a criação de novas hipóteses de dispensa na Lei de Licitações: Política de Incentivo à Inovação e Pesquisa Tecnológica (Lei 10.973/2004); Política de Consórcios Públicos (Lei 11.107/2005); Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores – PADIS (Lei 11.484/2007); Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária – PNATER (Lei 12.188/2010); Política de Desenvolvimento Nacional Sustentável (Lei 12.349/2010); e Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica – PRONON (Lei 12.715/2012). Como aludido acima, o artigo 24, da lei nº 8.666/1993 estabelece atualmente uma série de hipóteses de fato, em seus incisos, que autorizam o poder público a promover a contratação direta do particular, sem necessidade do recurso ao processo licitatório. Antes do alcance do objeto imediato do contrato, pretende-se, nesses casos, a realização de uma clara política pública.
V. A “descoberta” contemporânea da relevância socioeconômica da contratação pública e o aproveitamento de suas externalidades positivas.
Como acima destacado, os contratos públicos em geral, e as concessões e permissões de serviços públicos, em especial, estão cada vez mais presentes na vida do cidadão, devido à indispensabilidade da prestação dos serviços públicos para a satisfação de necessidades humanas essenciais.
Se pequenas suspensões da prestação do serviço já acarretam danos incomensuráveis, a interrupção de determinados serviços públicos é capaz de inviabilizar a própria convivência humana em determinados espaços urbanos. A continuidade, a adequação do serviço e a satisfação dos direitos dos usuários perpassa pela garantia da boa execução do contrato público, o que torna o próprio instrumento contratual e os seus possíveis efeitos, tanto fáticos quanto jurídicos, objeto de atenção e controle coletivo. Não raro, os contratos de concessão e permissão de serviço público têm sido inseridos na pauta do debate político eleitoral. Seja em defesa da concessão do serviço, seja em oposição a ela, o instrumento contratual é colocado (sempre) no epicentro da discussão.
Ademais, a afirmação de um Estado social e intervencionista acarretou uma função promocional de satisfação de demandas morais da sociedade correspondentes a direitos constitucionalizados. Os entes públicos assumiram o dever de satisfação de uma vasta gama de necessidades coletivas e individuais, de modo que o Estado, individualmente considerado, tornou-se o maior contratante na economia, inclusive nos EUA, que é considerado o que apresenta menor grau de intervenção, dentre os países desenvolvidos.
Assim, a atividade contratual do Estado não pode mais ser compreendida exclusivamente como mero instrumento para atendimento de necessidades administrativas ou tão-só como meio para a delegação do exercício de atividades públicas para os particulares. É preciso considerá-la também como forma de satisfação de direitos e liberdades constitucionais. A capacidade de compra dos entes públicos passa a funcionar, assim, como elemento de orientação do mercado e dos operadores econômicos no sentido de uma responsabilidade social inescusável, além de fomentar o desenvolvimento de novos produtos ou serviços inovadores, o que traz, por decorrência, a dinamização da atividade econômica e da competitividade.
Se antes os contratos públicos poderiam (facultativamente) ser compreendidos como instrumentos de indução de comportamentos dos particulares em direção à satisfação de fins horizontais, agora, eles passam obrigatoriamente (incide o dever jurídico) a servir para estes fins. Isso se deve à ampliação da conscientização do poder de compra estatal e da sua repercussão no mercado. Em uma das primeiras tentativas de refrear a crise econômica deflagrada a partir de 2008, a União Europeia apresentou a contratação pública como estratégia de fomento ao investimento, de promoção do emprego e de estímulo à economia . Isto é, mais do que, como é seu papel primário, satisfazer as necessidades típicas de aquisição dos órgãos públicos, v.g., suprir suas demandas de bens e serviços, a contratação pública exsurge no contexto de uma política pública macroeconômica de estímulo à economia. Trata-se, portanto, de aplicação da contratação pública para a realização da despesa pública estimuladora , de modo a realizar objetivos políticos fundamentais por meio da inserção de critérios e/ou políticas públicas horizontais na esfera da contratação pública. Por sua vez, em 2009, o Congresso dos EUA aprovou pacote de estímulo à economia em que apresentam novas regras de preferência a produtos de origem norte-americana também em obras públicas.
Na comunidade europeia, destaca-se o chamado Relatório Monti, editado em maio de 2010, o qual estabeleceu uma série de critérios para a revisão, pelos países da União Europeia, das diretivas sobre contratação pública, a partir, essencialmente, da necessidade de se permitir uma maior integração de objetivos de política horizontal na contratação pública.
Em verdade, para além de se buscar estimular o desenvolvimento dos mercados locais, os governos sempre foram relutantes em comprar fora de seus domínios territoriais, seja por razões econômicas, como a fuga de divisas e a formação de déficit externo, seja por razões de segurança nacional e de independência econômica e tecnológica em setores estratégicos (manutenção de experiência e de capacidades industriais). É, portanto, com o crescente aproveitamento das externalidades positivas dos contratos públicos, tanto os de fornecimento (primeira geração), quanto os de delegação da prestação de serviços púbicos (segunda geração) que se passa a fazer referência à instrumentalização da contratação pública para o alcance de finalidades e/ou políticas horizontais, conforme se analisará a seguir.
VI. A instrumentalização da contratação pública como forma de re-funcionalização dos contratos públicos a partir da introdução de fins acessórios, secundários e/ou horizontais.
Como acima afirmado, a introdução de objetivos acessórios, secundários e/ou horizontais na contratação pública abre uma oportunidade para a Administração desenvolver, na própria relação contratual, ações e políticas públicas que, até então, estavam excluídas do escopo contratual (pois deteriam função extracontratual) e, portanto, deveriam ser realizadas por outros meios, como a prestação direta de serviços públicos, as políticas desempenhadas por seus próprios agentes etc., haja vista que estas estão inseridas no espectro de funções constitucionais finalísticas atribuídas ao Estado .
Por outro lado, consoante acima destacado, a contratação pública serve ao alcance de fins que podem ser relacionados ao conceito genérico de políticas públicas, tomado em seu sentido amplo, como forma de atuação/intervenção estatal em vista da satisfação de seus deveres finalísticos. Tanto os contratos de fornecimento ou curta duração, quanto os de concessão ou de longa duração se destinam, em última análise, à satisfação de políticas públicas.
A funcionalização da contratação a outras finalidades para além do objeto específico do contrato, também pode ser designada como função social do contrato público, já que tem o potencial de irradiar efeitos favoráveis para além da própria estrutura estatal. Indubitavelmente, (i) a aquisição de medicamentos para a distribuição em postos de saúde pública, (ii) a compra de livros didáticos para a educação infantil, (iii) a conservação de estradas, (iv) a obtenção de merenda escolar e (v) a distribuição de energia elétrica, dentre outros, constituem-se em ações governamentais que se destinam ao atendimento de direitos fundamentais.
A aquisição de remédios, por exemplo, não se basta com a mera entrega do produto. Pode-se mencionar, como política horizontal de pesquisa e inovação na área farmacêutica, que o produto adquirido seja produzido com matéria pública nacional e/ou ofereça índices progressivos de eficácia, de redução de toxidade, de efeitos colaterais e de interações com outras substâncias, dentre outros, em relação às aquisições anteriores.
No caso da aquisição de livros didáticos, uma possível política horizontal de índole ambiental seria a exigência de sua impressão em papel certificado que ateste que a madeira utilizada em sua fabricação seja oriunda de processo produtivo manejado de forma ecológica e socialmente adequada.
Na manutenção de rodovias, uma política horizontal já bastante difundida de natureza social é a exigência estabelecida no instrumento de concessão da contratação de um percentual mínimo de colaboradores permanentes portadores de necessidades especiais, promovendo a sua inclusão no mercado de trabalho. Por sua vez, na aquisição de merenda escolar, alude-se à necessidade de que ela seja composta exclusivamente por alimentos isentos de agrotóxicos (devidamente certificados) e sem elementos industrializados com potencial cancerígeno.
A concessão da prestação do serviço público de distribuição de eletricidade pode vir acompanhada da exigência de uma política horizontal de substituição gradual das redes aéreas de distribuição por redes subterrâneas – que embora apresente elevados custos iniciais – ao longo do tempo, promove a diminuição de dispêndios com a conservação dos cabos aéreos, pois se minimiza a exposição da rede a eventos climáticos que provocam a interrupção do serviço e descarga elétricas; por consequência, diminui o número de pedidos de ressarcimento por danos a equipamentos elétricos e oferece um serviço mais seguro para a sociedade, evitando acidentes com fios de alta-tensão; obstando atos de vandalismo e dificultando o furto de energia elétrica (o “gato”), dentre outras práticas de implementação de eficiência energética.
Em outro exemplo, se entre as finalidades estatais está presente a sustentabilidade ambiental, por meio da contratação pública de “produtos e serviços verdes” em detrimento de produtos tradicionais, estará a Administração alcançando – ainda que indiretamente – uma política pública de índole constitucional prevista no artigo 225 da lei fundamental brasileira. Das situações narradas acima, denota-se que a instrumentalização dos contratos públicos para realizar finalidades horizontais pode se desdobrar em uma pluralidade de políticas públicas verdadeiramente inimaginável.
A contratação pública representa, nesse sentido, um instrumento multiplicativo para a satisfação de direitos fundamentais. Veja-se, a título de exemplo, o direito fundamental à liberdade de locomoção. A Constituição Federal estabelece normativamente a salvaguarda do direito de ir e vir. Desde o remédio constitucional (Habeas Corpus) hábil à sua defesa em caso de ameaça ou coação à liberdade por ato de autoridade, passando pela criminalização de condutas privadas que impeçam o seu exercício (cárcere privado), até o livre ingresso e saída do país, tem-se deveres estatais obrigatórios para a proteção deste direito.
Do seu núcleo essencial, no entanto, é possível se extrair uma série de deveres estatais adicionais – diretos e indiretos – que se voltam à máxima implementação deste direito. O transporte público é uma decorrência (direito derivado ou decorrente) do direito fundamental de ir e vir. Para pessoas portadoras de necessidades especiais, emerge o direito à acessibilidade como consectário lógico do direito à locomoção. Os subsídios concedidos às pessoas idosas e aos estudantes para que usufruam de meio de transporte adequado também possuem a mesma fundamentação; e, em última análise, a própria implementação de infraestruturas de tráfego se destina, à garantia da plena liberdade de ir e vir.
Do transporte coletivo à construção de vias urbanas e rurais se faz referência à contratação pública. É por meio destes contratos públicos que direitos fundamentais basilares, como a liberdade de locomoção, podem ser implementados. Por conseguinte, mesmo que de modo indireto, a contratação pública abre espaço inclusive para a visualização de deveres estatais que, embora normativamente previstos no núcleo essencial do direito fundamental, ainda não são devidamente satisfeitos, em especial em países de modernidade tardia como o Brasil.
A funcionalização da contratação pública pode ir ainda mais adiante. Para além de satisfazer direta ou indiretamente direitos fundamentais, ela tem o potencial de modelar o mercado, sem que o Estado se utilize diretamente da sua autoridade. Vale dizer, a Administração pode agir sem o recurso à obrigações e proibições ou ainda sem a imposição direta de sanções aos particulares pelo descumprimento de deveres. Em outras palavras, as contratações públicas servem de estímulo para a adaptação gradual e espontânea dos atores privados a finalidades e práticas benéficas, de caráter social, ambiental ou econômica.
De acordo com Daniel Ferreira, as discriminações positivas e negativas podem se apresentar como “(...) o prenúncio do que, em breve, poderá ser compulsório, tanto na esfera pública, quanto no mercado, até mesmo como condição para permanência no mercado”, v.g.: a produção de utensílios e móveis de madeira devidamente certificada; edifícios sustentáveis; tintas e embalagens biodegradáveis, dentre outros. De instrumento hábil para a satisfação de políticas públicas por outros meios, com a ação governamental direta, a contratação pública pode se tornar per se uma política pública, seja de viés econômico, social, ambiental etc., uma vez que a Administração não contrata exclusivamente o objeto da avença mas, em igual medida, uma série de encargos e/ou obrigações atreladas diretamente ao objeto e à própria finalidade estatal.
A título de ilustração, a contratação pública pode ser empregada como política econômica e, sob essa abordagem, ela pode desempenhar, em princípio, cinco funções distintas: (i) contribuir para o aumento da procura global e estimular a atividade econômica privada; (ii) proteger a indústria doméstica de concorrência externa; (iii) aprimorar o desenvolvimento da competitividade de determinados setores; (iv) minimizar as assimetrias regionais e (iv) promover a criação de empregos e beneficiar minorias excluídas.
A políticas públicas implementadas por meio dos contratos celebrados pelo Estado têm sido, a princípio, denominadas de estratégicas , porque visam à promoção do desenvolvimento em geral. São, por igual, taxadas de protetivas , quando protegem o mercado local de concorrência externa, seja regional ou nacional e proativas, nas hipóteses em que pretendem uma intervenção direta do Estado na economia, sobretudo em períodos de recessão, como forma de garantir a recuperação econômica. Com a possibilidade da produção de efeitos econômicos relevantes e não havendo maiores entraves jurídicos, tampouco barreiras financeiras intransponíveis, uma vez que os custos associados à contratação pública tem sido frequentemente considerados menores do que quando comparados a outros meios de implantação de políticas econômicas interventivas, como a concessão de subsídios, os governos têm pautado suas ações econômicas por intermédio da contratação pública para a satisfação de políticas de múltiplas ordens.
Por conseguinte, como se parte da premissa da escassez de recursos financeiros, a concretização de políticas públicas pode (também) ser realizada por meio da contratação púbica, o que permite contornar a utilização direta (e imediata) de recursos públicos para a implementação de políticas públicas (muitas vezes muito mais dispendiosa, mas também mais eficaz), com a consequente satisfação de direitos fundamentais. A utilização estratégica da contratação pública para responder aos desafios de dar atendimento aos deveres estatais inescusáveis não pode significar uma redução na eficácia dos próprios contratos públicos, tampouco a assunção de encargos desproporcionais ou se destinar a falsear a concorrência e a isonomia, que constituem pressupostos para as avenças administrativas.
Em diversos ordenamentos jurídicos, a legislação regente das compras governamentais estabelece de modo minudente a disciplina jurídica (hard law) do processo de contratação, de modo a disciplinar o “como comprar”. Contudo, ela não define o conteúdo da aquisição, cuja competência fica a cargo do Administrador, que detém margem de liberdade (discricionariedade) para decidir “o que comprar”, conforme as necessidades do órgão ou entidade. Além das regras de procedimento, relativas ao “como comprar”, acena-se, na contemporaneidade, à imposição de pressupostos obrigatórios ou à previsão de incentivos para orientar as decisões sobre bens e serviços que serão contratados (o que comprar).
As considerações sociais e ambientais na contratação pública foram vistas, durante muito tempo, como aspectos acessórios, levados a efeito apenas a título de orientação (soft law), pois não dotadas de obrigatoriedade jurídica. Quando admitidas, eram inseridas de forma limitada e com muitas cautelas. Em termos de regime jurídico, o salto qualitativo consistiu na superação de uma visão redutora do potencial do contrato público para realizar políticas públicas, bem como deixar de encarar tanto as preocupações ambientais quanto sociais, como meramente instrumentais.
O marco para este estabelecimento ocorreu na União Europeia com a edição do Acórdão Concórdia Bus – Finland. Ele foi decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, sendo considerado, desde então, como um leading case apto a orientar os critérios de inserção de políticas horizontais nos contratos públicos tanto para os legisladores quanto para os administradores. A respeito do caso, destaca-se que, em 1997, foi lançado um concurso público (procedimento licitatório) para a celebração de um contrato de concessão de serviços de transporte público municipal (ônibus) da cidade de Helsinque, na Finlândia. Como critério de escolha do contratado, consagrou-se a proposta economicamente mais vantajosa combinada com um critério adicional relativo à qualidade dos veículos, à gestão da qualidade e a preservação do meio ambiente. A esses critérios, adicionava-se outro, que permitia um acréscimo adicional de pontos, às propostas que demonstrassem que os ônibus apresentariam um índice de emissões de gases (nitrogênio) inferior a 4g/kWh ou um nível sonoro inferior a 77db, por veículo.
Sagrou-se vencedora a empresa HKL-Bussiliikenne, o que levou a que um dos oito concorrentes, a empresa Concordia Bus Finland Oy Ab, classificada em segundo lugar, requeresse a anulação da decisão, com o argumento de que a empresa HKL só venceu o certame pelo critério adicional supramencionado. Ao solicitar a anulação da decisão, a empresa Concordia Bus fundamentou-se (i) no fato de que a atribuição de pontos adicionais seria discriminatória e (ii) os pontos adicionais foram atribuídos pela utilização de um tipo de ônibus, que apenas um concorrente, a HKL, tinha, à época, a possibilidade de fornecer.
Diante disso, coube ao Tribunal de Justiça da União Europeia decidir sobre: (i) poderia a Administração tomar em consideração critérios ecológicos para decidir qual seria a proposta economicamente mais vantajosa? (ii) é possível a atribuição de pontos adicionais pela verificação do cumprimento quanto ao nível de emissões gasosas e ao nível sonoro? (iii) se provado que apenas uma empresa fosse capaz de cumprir os requisitos adicionais, o resultado permaneceria o mesmo?
À época, em decisão considerada inovadora, o Tribunal de Justiça da União Europeia manteve a decisão da administração local, de modo a referendar a possibilidade de inserção de elementos ambientais como critérios aptos à seleção da proposta mais vantajosa. A decisão consagrou que a proteção do ambiente deveria ser um fator preponderante na escolha do bem ou serviço.
Não resta dúvida, à luz da decisão supra, que a contratação pode ser equacionada como um instrumento importante – paralelo às demais formas de atuação administrativa, como, v.g., o fomento – ao dispor dos governos para a satisfação de seus deveres constitucionais fundamentais, o que reforça os fundamentos para a designação do contrato como instrumento de governo, tal como acima referido. Isso ocorre essencialmente porque uma das características da contratação pública é o fato de que, ao contratar – independentemente do objetivo a ser perseguido – o ente estatal procede a uma redistribuição de riqueza isto é, para usar uma noção da economia, mas que não se limita a ela, a contratação pública cria “externalidades positivas”.
Com a geração e, antes disso, com a própria percepção da ocorrência destas externalidades contratuais positivas, passa a ser possível questionar se não constitui um dever inerente ao exercício do poder público o direcionamento compulsório da contratação também a estes objetivos . Dito de outra forma, a contratação pública, por sua própria natureza, representa uma forma de intervenção na vida econômica e social da comunidade e esse vértice da atuação pública não pode ser, de modo algum, olvidado. Trata-se de uma atribuição adicional à contratação pública, que passa a ser (e a estar) funcionalizada a outros fins, para além de seus objetivos imediatos (tanto no caso dos contratos de fornecimento, quanto nos casos dos contratos de concessão).
A funcionalização da contratação pública é, pois, fenômeno contemporâneo inquestionável. Por meio dela é que nasceram inúmeras boas práticas ambientais e/ou laborais e pesquisas relevantes foram realizadas de modo a promover o desenvolvimento e a inovação tecnológica. Nessa última esfera, ganha relevo o papel que a contratação pública desempenhou para o desenvolvimento, dentre outros, de redes de informática precursoras da internet, do sistema de Global Positioning System – GPS, da indústria de semicondutores e até dos aviões a jato. No Brasil, a título de exemplo, destaca-se o desenvolvimento, a partir da contratação pública, de ônibus escolares com “especificações especiais” e especialmente adaptados, com tração nas quatro rodas, chassi mais alto e rodas mais próximas das extremidades do veículo, para melhorar a trafegabilidade e o transporte de alunos de zonas rurais.
Os exemplos são incontáveis, mas merecem destaque a sustentabilidade ambiental ; a promoção do emprego ; a melhoria das condições de trabalho; a integração em razão de etnia, de gênero e de deficiências físicas ; a pesquisa e o desenvolvimento; a promoção da microempresa e das empresas de pequeno porte; a melhoria das condições sociais e a redução da pobreza etc. Todos representam políticas públicas (horizontais, pois levadas a efeito por meio da contratação pública) que podem ser consideradas estratégicas , pois buscam promover o desenvolvimento nacional, objetivo fundamental da República estabelecido no artigo 3º, II, da CF/88.
Denota-se que o emprego da contratação pública, nesse sentido, pode se apresentar como uma ferramenta extremamente útil para a realização de múltiplas políticas públicas nas quais os custos a elas associados se apresentem inferiores aos comparados a outros modos de implantação, como a concessão direta de auxílios e subvenções, ou a prestação direta. Além disso, a concretização destas políticas através da contratação pública, quando já autorizada por lei geral, pode dispensar a necessidade de autorização legislativa específica, necessária pela adoção de medidas similares, como a alteração da legislação fiscal, por determinação constitucional.
Vislumbra-se, pois, a passagem de uma visão estrita da contratação pública em que ela se destinaria (i) a suprir tão-só a aquisição de bens e serviços para entidade estatal para o suprimento de suas necessidades, ou (ii) a delegar o exercício de atividades públicas para entidades privadas, para uma perspectiva instrumental da contratação pública, vale dizer, na acepção de que ela teria um papel também essencial como atividade fim da Administração.
É inegável, portanto, que considerar a contratação pública como mais uma atividade fim da Administração ou, ao menos, inseri-la entre o rol de suas atividades voltadas à satisfação dos seus escopos constitucionais, tais como o próprio serviço público, significa uma nova funcionalização do contrato público.
VII. Críticas à prossecução de políticas públicas por meio dos contratos públicos.
Embora pareça atrativa na teoria e aplicável na prática, sobretudo em virtude da sua consonância com a pauta axiológica da Constituição Federal de 1988, a utilização da contratação pública para fins de políticas públicas consideradas alheias ao objetivo imediato da celebração do contrato pode se apresentar, em certa medida, de maneira problemática. Isso porque podem surgir dificuldades desde o processo de seleção do contratado, em virtude da eleição de preferências impróprias entre propostas, até consistir em um possível excesso de intervenção das entidades públicas contratantes em opções de organização interna dos contratados, no caso de políticas públicas sociais.
Há outras críticas plausíveis que devem ser analisadas. Em última análise, a introdução de objetivos de política secundária nos contratos públicos pode resultar no aumento de preços pela repercussão do custo do cumprimento destas medidas pelos agentes econômicos, de forma a demonstrar certo grau de ineficácia econômica destas políticas levadas a efeito no contexto da contratação pública. É claro que essas finalidades subsidiárias, mediatas e/ou horizontais não podem prejudicar os fins imediatos do contrato, relativos à obtenção das utilidades necessárias e em condições adequadas para a Administração, com igual respeito ao direito do contratado e dos usuários, nos termos da normatização aplicável. Além disso, a insistência excessiva em objetivos de política acessória e/ou secundária pode, por exemplo, contribuir para o desequilíbrio financeiro do setor contratante.
Pode-se aludir, ademais, que a contratação desprovida da prossecução de objetivos de política horizontal ou secundária, primo occuli, parece ser mais eficiente, uma vez que a adição de outros objetivos mediatos poderia conduzir a uma mitigação da ideia do best value for money, se este for tomado a partir de uma perspectiva econômica estrita. Entretanto, a possibilidade de mitigação do value for money não significa que tais políticas acessórias devam ser evitadas. Ao contrário. Explica-se: a eficiência econômica voltada a seu objetivo principal, em princípio, pode ser cega do ponto de vista dos ideais de justiça. No Estado contemporâneo, com objetivos fundamentais expressos e estabelecidos constitucionalmente, v.g., no Brasil, no artigo 3º da CF/88, esta forma de cegueira quanto à justiça da realização, contudo, não pode ser permitida.
Cabe, portanto, a cada comunidade política procurar, à luz da sua axiologia constitucional, o ponto de equilíbrio entre os deveres e as preocupações de eficiência administrativa e as inquietações a propósito dos ideais de justiça que deverão ser alcançados.
Por definição, as políticas públicas horizontais constituem uma proposta de compromisso de sustentabilidade e de equilíbrio de cada comunidade e, como tais, representam opções (políticas) para cada governo. Soluções de compromisso, como as contidas nas políticas públicas inseridas na contratação pública contemporânea, impõem o dever de ponderação entre os sacrifícios em matéria de eficiência e os objetivos de políticas públicas a serem concretizados.
VIII. Conclusões.
Partindo-se do movimento atual, intenso e progressivo de incorporação do discurso e da prática contratual no agir administrativo, para visualizar que o emprego da via contratual tem o condão de produzir mais resultados do que o esperado inicialmente. Os resultados alcançados por meio da ampliação da contratação não dizem respeito exclusivamente à Administração ou aos contratados, mas à toda a coletividade. A contratação pública sob esta perspectiva possui uma eficácia multiplicativa, não encontrada em todos os meios de ação estatal o que, per se, justifica uma investigação mais detalhada sob este prisma.
A prossecução de políticas públicas voltadas tanto à satisfação de valores morais consagrados pela sociedade quanto a direitos fundamentais na qualidade de objetos mediatos da contratação administrativa abre espaço para uma ressignificação do próprio contrato público, pois ele deixa de ser visto somente como instrumento técnico-administrativo para se tornar também uma atividade administrativa material finalística.
Assim sendo, é possível se falar na re-funcionalização da contratação pública, a partir da qual, para além do atendimento imediato das necessidades de custeio e de utilidades para a gestão pública e da delegação do exercício de atividades públicas para os particulares, o contrato público – dada a sua proeminência socioeconômica contemporânea – passa a funcionar (isto é, a ser e a estar funcionalizada) como fórmula de atendimento de deveres estatais que, até então, ou ainda não eram realizados ou eram objeto de atendimento por outras vias, como os serviços públicos.
Entretanto, em casos extremos, a prossecução de políticas horizontais por meio dos contratos públicos pode desnaturar o próprio contrato. É por isso que se alude à necessidade de observância dos critérios que habilitam o contrato a realizar também essas políticas públicas. Entre eles, destaca-se a autorização legislativa, fundamental, à luz do princípio democrático, para que a população, por meio de seus representantes, autorize a realização de contratos que não visem exclusivamente a melhor vantagem econômica, mas que, ao lado dela, também se destinem à prossecução de outros fins, de caráter ambiental, social e/ou relacionados a escopos difusos e coletivos.
No Brasil, a autorização legislativa genérica ocorreu, aproveitando o contexto histórico mundial do green public procurement, com alteração introduzida pela Lei nº 12.349/2010 no texto do artigo 3º da Lei nº 8.666/1993, que passou a mencionar a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como finalidade da licitação pública e, por consequência, da contratação que lhe segue. Portanto, sob o abrigo multidimensional do desenvolvimento sustentável, tornou-se inequívoco que a contratação pública brasileira se encontra funcionalizada à prossecução de políticas públicas horizontais.
_________________________
1 Sobre a atividade de “administrar por contratos” ver as obras de: AUBY, Jean-Bernand. Comparative aproaches in the rise of contract in the public sphere. Public Law, Spring, 2007, p. 41.; e FREEDLAND, M. Government by Contract and public law, In: Public Law, 1994, p.89.
2 Cfr.: COOPER, Phillip J., Governing by contract: challenges and opportunities for public managers. Washington: CQ Press, 2003, p. 46.
3 SUNDFELD, Carlos Ari; JURKSAITIS, Guilherme Jardim. Apresentação. In: SUNDFELD, Carlos Ari; JURKSAITIS, Guilherme Jardim. (coord.) Contratos Públicos e Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 13.
4 OLIVEIRA, Rodrigo Esteves. Autoridade e Consenso no Contrato Administrativo. Coimbra: Coimbra editora, 2001, p. 01.
5 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Do Contrato Administrativo à Administração Contratual. In: Revista do Advogado. Volume 107, São Paulo, AASP, dezembro de 2009, p.74.
6 VINCENT-JONES, Peter. The new public contracting: regulation, responsiveness, relationality. Oxford: Oxford University Press, 2006, p.03.
7 No Brasil, a contratação interna pode ser exemplificada nos contratos de gestão. O fenômeno relativo à governança por contratos internos é exaustivamente delineado por DAVIES, Ane. Accountability: a public law analysis of government by contract. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 34 e seguintes.
8 Cfr.: GONÇALVES, Pedro. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra editora, 2013, p. 14 e seguintes.
9 RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação Pública como instrumento de política econômica. Coimbra: Almedina, 2013, p. 14.
10 RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação..., p. 193-194.
11 Gestão da Execução de Contratos Administrativos pelo Poder Público. Têmis Limberger (coord.) In: Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos Mecanismos jurídicos para a modernização e transparência da gestão pública. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. v. 2.Brasília: Ministério da Justiça, 2013, p.18,
12 Cfr.: Relatório de Contas Nacionais Trimestrais do IBGE, referência PIB - 2013.
13 GREVE, C; EJESRBO, Niels. Contracts as reinvented institutions in the public sector: a cross-cultural comparison. Westport: Pareger Publishers, 2005, p. 02.
14 DROMI, Roberto. Ecuaciones de los contratos públicos. 2ª. edição. Buenos Aires – Madrid – Mexico: Hispania libros, 2008. p. 87.
15 GONÇALVES, Pedro. A regulação do mercado da contratação pública. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 3, p. 201-208, mar./ago. 2013.
16 RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação..., p. 19.
17 Cfr.: GONÇALVES, Pedro Costa. A regulação do mercado da contratação pública. In: Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 3, p. 201-208, mar./ago. 2013.
18 CÂMARA, Jacintho Arruda; NOHARA, Irene Patrícia. Tratado de Direito Administrativo. (Coord.: Maria Sylvia Zanella Di Pietro). Vol. 06. Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 43.
19 SCHOONER, Steven L., GORDON, Daniel I.; CLARCK, Jessica L., Public Procurement Systems: Unpacking Stakeholder Aspirations and Expectations (Working Paper). In:http://ssrn.com/abstract=2014385. Acesso em 15 de janeiro de 2015.
20 Cfr.: SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 25 e seguintes.
21 DE PALMA, Juliana Bonacorsi; PEDROSO JÚNIOR, Nelson Novaes. Licitações Sustentáveis. In: Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos Mecanismos jurídicos para a modernização e transparência da gestão pública. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. v. 2.Brasília: Ministério da Justiça, 2013, p.175.
22 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16ª ed., São Paulo: RT, 2014. p. 07.
23 GONÇALVES, Pedro Costa. Regulação Administrativa e Contrato. In: Revista de Direito Público da Economia. Ano 9, nº 35, jul-set.2011, p. 124 e seguintes.
24 Cfr.: CAMPOS, Diogo Duarte de. A Admissibilidade de políticas secundárias na contratação pública: a consideração de fatores ambientais e sociais. In: Estudos de Direito Público. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 127 e seguintes.
25 ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 553.
26 ESTORNINHO, Maria João. Curso de Direito dos Contratos Públicos: Por uma Contratação Pública Sustentável. Coimbra: Almedina, 2013, p. 417.
27 FELIÚ, José María Gimeno. Compra pública estratégica. In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p. 45.
28 ESTORNINHO, Maria João. Curso..., p. 418.
29 De acordo com Flávio Amaral Garcia e Leonardo Coelho Ribeiro, a “proposta mais vantajosa não necessariamente se refere à obtenção do menor preço, podendo a licitação servir de legítimo veículo para concretização de valores constitucionalmente protegidos”. GARCIA, Flávio Amaral; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Licitações Públicas Sustentáveis. In: RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 260, maio/ago. 2012, p. 232.
30 Eis o escopo inicialmente estabelecido para a licitação, como instrumento de seleção do particular para a contratação com o poder público no Brasil, na redação originária da Lei nº 8666/1993: a garantia da observância do princípio constitucional da isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração. A Lei nº 12349/2010 atribuiu nova finalidade às licitações, considerada uma política pública horizontal, conforme adiante será expendido neste mesmo capítulo.
31 Cfr. RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. La contratación del sector público como política pública. In: Contratación Pública Estratégica. Navarra: Editorial Aranzadi, 2013, p. 32 e seguintes
32 Cfr.: BLAY, Miguel Ángel Bernal. El desarrollo de políticas activas de empleo através de los contratos públicos. In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p. 163 e seguintes.
33 De acordo com Nuno Cunha Rodrigues, na Europa eles têm sido chamados por “secundary policies” e nos EUA por “collateral policies”. Cfr. RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação..., p.202.
34 Cfr.: CANO, Carlos Aymerich. Crisis Económica y Contratación Pública. In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p. 92.
35 ARROWSMITH, Sue. A taxonomy of horizontal policies in public procurement. In: ARROWSMITH, Sue; KYUNZLIK, Peter (org.) Social and Environmental Policies in EC Procurement Law, Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 21.
36 TRIONFETTI, Frederico. Discriminatory Public Procurement and International Trade. In: The World Economy, 23, (1), 2000, p. 106.
37 Em 2014, o Estado de São Paulo passou por uma grave crise de abastecimento de água, o que levou a uma série de medidas de racionamento, que levou a uma série de pessoas a se mudar para outras cidades e empresas a modificar a sua sede. Sobre o tema: http://www1.folha.uol.com.br/especial/2014/crise-da-agua/#2646214282140136. Acesso em 10 de janeiro de 2015. O estado norte-americano da Califórnia vive também uma crise de água. Em 2014, o governo local declarou estado de emergência e começou a tomar medidas para preservar os recursos e evitar desperdício. Os cidadãos entraram num regime intenso de economia de água, com aplicação de elevadas multas para quem for flagrado em situações de desperdício, como lavar calçadas com mangueira ou deixar a irrigação do jardim ligada. Sobre o tema: http://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-oe-famiglietti-southern-california-drought-20140709-story.html. Acesso em 10 de janeiro de 2015.
38 PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Presentación. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p.17.
39 GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempos de Crise. In: Pedro Gonçalves (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. III. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 07.
40 GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão..., p. 07
41 RAIMUNDO, Miguel Assis. A Formação dos Contratos Públicos: Uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 394
42 Cfr.: RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação Pública como instrumento de política econômica. Coimbra: Almedina, 2013, p.197 e seguintes.
43 Cfr.: RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação..., p.197 e seguintes.
44 Cfr. ESTORNINHO, Maria João. Direito Europeu dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2006, p. 48 e seguintes.
45 FERREIRA, Daniel. A Licitação Pública no Brasil e sua Nova Finalidade legal: A promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 36 e seguintes.
46 Cfr.: GUIMARÃES, Reinaldo. Bases para uma política nacional de ciência, tecnologia e inovação em saúde. In: Bulletin of the World Health Organization. CNPq/PRE/AEI 2002. Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. http://www.scielosp.org/pdf/csc/v9n2/20392.pdf Acesso em 19 de janeiro de 2015.
47 Uma política social considerada satisfatória na Espanha para fazer frente ao elevado índice de desemprego, foi a exigência, nos contratos de concessão e de execução de obras públicas, que os novos funcionários a serem empregados para a execução das atividades que se encontrassem em situação legal de desemprego. Cf.: BLAY, Miguel Ángel Bernal. El desarrollo de políticas activas de empleo através de los contratos públicos. In: In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p.175.
48 O programa governamental “Cultivando água boa” que integra a Usina Hidroelétrica de Itaipu e os municípios brasileiros lindeiros ao lago incentiva o desenvolvimento da agricultura orgânica para a elaboração da merenda escolar destinada aos alunos destes municípios.
49 Cfr.: GARCÍA, J. José Pernas. Contratación Pública y Eficiencia Energética. In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Presentación. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p. 283 e seguintes.
50 FERREIRA, Daniel. A Licitação Pública no Brasil e sua Nova Finalidade legal: A promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 45.
51 JEANRENAUD, Claude. Marchés Publics et politique économique. In: Annales de L’Économie Publique, Sociale et Coopérative. nº 72, 1984, p. 157.
52 Cfr.: PERNAS GARCÍA, J. José (Dirección). Contratación Pública Estratégica. Navarra: Editorial Aranzadi, 2013
53 TREPTE, Peter. Procurement in the EU – A Practitioner’s guide. 2ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 73.
54 RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação Pública como instrumento de política econômica. Coimbra: Almedina, 2013, p. 18.
55 ESTORNINHO, Maria João. Curso de Direito dos Contratos Públicos: Por uma Contratação Pública Sustentável. Coimbra: Almedina, 2013, p. 418
56 Acórdão TJUE, Concórdia Bus, de 17 de Dezembro de 2002 (Processo C-513/99).
57 SCHOONER, Steven L., Desiderata: Objectives for a system of government contract law. In: Public Procurement Law Review, nº 2, 2002, p. 105.
58 SCHAPPER, Paul R.; VEIGA MALTA, João; GILBERT, Diane, An analytical framework for the management and reform of public procurement. Journal of Public Procurement, nº 2006, p. 05.
59 SCHAPPER, Paul R.; VEIGA MALTA, João; GILBERT, Diane, An analytical…, p.11.
60 Mesmo nos contratos que não impliquem no pagamento de um preço ou que não sejam custeados pelo ente público, eles abrem oportunidades de ganho e nessa medida propiciam uma criação de riqueza.
61 KATTEL, Rainer; LEMBER, Veiko. Public Procurement as an industrial policy tool: An option for developing countries. Jornal of Public Procurement, vol. 10. Issue 3, p. 369.
62 Trata-se de projeto de veículo desenvolvido pelo FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e pelo INMETRO para o transporte de alunos na zona rural brasileira e, em virtude da grande quantidade de veículos a serem adquiridos (cerca de vinte e cinco mil unidades), levou diversas montadoras a produzi-los para a União, Estados e Municípios que aderiram às Atas de Registro de Preço do FNDE. http://www.fnde.gov.br/portaldecompras/index.php/produtos/onibus-escolar-rural
63 Cfr. BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: Transformando direito e governança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 32 e seguintes.
64 Cfr. SCHOONER, Steven L., Desiderata: Objectives for a system of government contract law. In: Public Procurement Law Review, nº 2, 2002.
65 Cfr.: FERNÁNDEZ, Patricia Valcárcel. Promócion de la Igualidad de Género através de la Contratación Pública. In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Presentación. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p.329 e seguintes.
66 Cfr.: ALONSO, Alma Patricia Domínguez; MOLINA, José Antonio Moreno. Contratos Públicos y Políticas de Apoyo a las Personas com Discapacidad. In: PERNAS GARCÍA, J. José. (Direccíon) y otros. Contratación Pública Estratégica. Presentación. Pamplona: Thomson Reuters – Aranzadi, 2013, p.187 e seguintes
67 Cfr.: PERNAS GARCÍA, J. José (Dirección). Contratación Pública Estratégica. Navarra: Editorial Aranzadi, 2013.
68 Eis a razão pela qual no título deste tópico se menciona a instrumentalização da contratação pública como “re-funcionalização” dos contratos públicos a partir da introdução de fins acessórios, secundários e/ou horizontais.
69 RAIMUNDO, Miguel Assis. A Formação dos Contratos Públicos: Uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 401.
70 RODRIGUES, Nuno Cunha. A Contratação..., p. 19.
71 Para a satisfação da eficiência econômica, bastaria per se, o alcance ótimo da finalidade. Cfr.: POSNER, Richard A. A Economia da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 108 e seguintes. Contudo, como destacam Alexandre Ditzel Faraco e Fernando Muniz Santos, não se pode “(...) advogar a substituição de valores plasmados em dispositivos constitucionais e legais por um critério de eficiência, lido à luz da escola econômica neoclássica, especialmente a de Chicago. Já foi demonstrado que tal viés não contribui para a solução de dilemas relevantes da sociedade brasileira, seja por seu neutralismo ético em face das disparidades de renda entre os distintos atores sociais, seja pelo simplismo de determinadas presunções que sustentam seu edifício teórico”. FARACO, Alexandre Ditzel; SANTOS, Fernando Muniz. Análise Econômica do Direito e Possibilidades Aplicativas no Brasil. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 03, nº 9, jan. / mar. 2005, p. 68.
72 RAIMUNDO, Miguel Assis. A Formação..., p. 401.
73 TREPTE, Peter. Procurement in the EU – A Practitioner’s guide. 2ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 390.
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Por Eduardo Ramos Caron Tesserolli - 06/02/2017
Resumo: O presente estudo analisa e compara o contencioso administrativo da França com a jurisdição administrativa no Brasil, segundo as características de cada modelo, concluindo-se pela inexistência de um contencioso administrativo brasileiro, nos moldes francês, mas pela existência de uma jurisdição administrativa brasileira, especialmente caracterizada pela (i) unidade de jurisdição, (ii) pela especialização da Justiça Federal e (iii) pelo exercício da função administrativa, pelo Poder Executivo, por intermédio de processos administrativos legitimadores das decisões administrativas.
Palavras-chave: contencioso administrativo; jurisdição administrativa; direito comparado.
Abstract: This study analyzes the French and th Brazilian legal system to identify coincident and dissenting points on administrative jurisdiction.
Keywords: administrative litigation; administrative jurisdiction; comparative law
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, prevalece a ideia de que a jurisdição é exercida unicamente pelo Poder Judiciário, o qual age como agente pacificador da sociedade. Significa que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, nos termos do preceito inserto no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República de 88. Mais do que uma teoria, afirma-se que a jurisdição é una e indivisível, cabendo ao Judiciário proferir a última palavra sobre dado litígio e sobre esta “última palavra” produzirá efeitos a coisa julgada. Diz-se que a decisão judicial, transitada em julgado, não pode mais ser impugnável – em tese.
Sobre este dogma, parece de grande utilidade o estudo das competências administrativas conferidas aos agentes públicos para produzir atos, resolver questões atinentes à boa administração pública, teleologicamente destinadas à concretização de direitos fundamentais, em comparação àquelas estipuladas pelo regime do “contencioso administrativo” francês, o qual está estruturado fundamentalmente numa dualidade jurisdicional, ou seja, há a figura do juiz judicial e outra do juiz administrativo. Ao juiz administrativo cabe a apreciação de litígios de administrados em face da Administração Pública. Por sua vez, ao juiz judicial cabe, apenas, os litígios versados em matéria civil e criminal.
Caracterizadamente, este pretende ser um estudo comparado entre a jurisdição administrativa francesa e a jurisdição administrativa brasileira, principalmente, sob os aspectos da competência para atuação dos agentes destinatários da norma de competência. O tema é analisado no Brasil com certa parcimônia. Tem-se a impressão de que a unidade de jurisdição acachapou o estudo da jurisdição administrativa. Mas não. Há espaço e demanda para o estudo da temática.
Basta uma breve leitura do art. 109, da Constituição da República de 1988, para perceber que foi criada uma jurisdição administrativa à Justiça Federal para processar e julgar causas em que a União, autarquia, sociedade de economia mista, empresa pública, fundação forem autoras, rés, assistentes ou oponentes; entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município; àquelas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro, e algumas outras previstas no referido dispositivo, apenas como exemplo. Há, ainda, a previsão constitucional da garantia do contraditório e da ampla defesa em processo administrativo. Isto pode indicar a existência de uma jurisdição administrativa no Brasil.
O estudo comparado entre a jurisdição administrativa francesa e a jurisdição brasileira permite apontar a existência de um contencioso administrativo no Brasil? Esta pergunta deverá ser respondida por meio deste artigo. O modelo francês confere à dicotomia público-privado especial força distintiva, conduzindo ao apartamento entre direito público e privado em sentido subjetivo, considerando público aqueles litígios que envolvem o Estado. Uma crítica deve ser desenvolvida a partir da concepção do Direito Administrativo Privado, aquele que considera essencial ao Estado Pós-Moderno a intrínseca relação entre direito público e privado, superando-se a ideia de poder extroverso do Estado como marca primordial de um regime jurídico administrativo e, consequentemente, de uma outra concepção de derrogação do chamado direito comum. O objetivo é realizar os interesses do cidadão previstos na Constituição em sentido material, promovendo igualdade – na concepção da Melhoria de Pareto (DOMINGUES: 2011, p. 39-47).
2 DESENVOLVIMENTO
O Direito Administrativo passou a ser estudado, contemporaneamente, sob o enfoque da transformação das finalidades da Administração Pública nos últimos vinte anos. Tradicionalmente, ensinava-se que o atendimento do interesse público pelo Estado era seu fim último; que razões de Estado poderiam ser motivação de qualquer decisão administrativa, ausente qualquer outro fundamento.
Com a virada olímpica da constitucionalização do Direito, passou-se a estudar o Direito Administrativo à luz da Constituição. Tornou-se fim do Estado (e da Administração Pública) a realização de direitos fundamentais, a promoção do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (conforme art. 3º e 5º da CR/88).
A Constituição de 88 eleva o cidadão à categoria de detentor do poder e partícipe das decisões estatais. Com isso, deve-se reconhecer que a relação de administração se tornou dialógica, exigindo a participação da população como diretriz para organização da atividade (saúde e assistência social são exemplos); surgiu o direito constitucional de participação popular. Ouvir e atender aos anseios da sociedade é dever do Estado e da Administração Pública e, ao mesmo tempo, marca de uma postura dialógica, oposta ao autoritarismo patrimonialista superado no Brasil.
Deste modo, a democratização da atuação administrativa estatal passou a ser analisada sob a luz do direito do cidadão intervir nas decisões, antes mesmo delas serem tomadas. Inaugurou-se a ideia de processualidade do agir administrativo.
O processo administrativo passou a ter valor substantivo na Constituição da República de 88. Atualmente, poucas são as decisões tomadas sem o conhecimento prévio ao cidadão, bem como sem oportunizar-se ao particular manifestar-se antecipadamente sobre o chamado “mérito administrativo” – sob o manto da legalidade, legitimidade e eficiência administrativa.
São cases naturais deste estudo as competências jurisdicionais de órgãos do Poder Judiciário para decidir questões de direito público, as quais envolvem o Estado como parte, dos Tribunais de Contas, do Conselho Administrativo de Defesa da Economia – CADE, o julgamento das contas do Presidente da República pelo Congresso Nacional, o julgamento de processos administrativos disciplinares pelos órgãos da Administração Pública. Pode-se afirmar que há uma jurisdição administrativa brasileira. Mas, há um contencioso administrativo?
O estudo da jurisdição administrativa francesa e das suas contribuições ao estudo da jurisdição brasileira se torna relevante a partir da leitura dos livros Direito Administrativo(1981) e Curso de Direito Administrativo Comparado (2004), ambos da autoria de Jean Rivero, importante publicista francês. Ainda, a importante contribuição de Romeu Felipe Bacellar Filho (2009) para o estudo comparado dos sistemas também será abordada neste artigo.
A partir destas obras, percebe-se que a especialidade do sistema francês se insere na organização administrativo-jurisdicional propriamente dita, e não sobre as regras especiais de competência. Diferentemente da realidade da Constituição francesa, caso houvesse unicamente a distribuição de competências entre órgãos jurisdicionais centralizados na estrutura do Poder Judiciário francês, poderia se reconhecer uma proximidade maior com o modelo brasileiro. Deste modo, pode-se afirmar com certa margem de segurança que, sob a luz das regras de competência do juiz administrativo francês e do juiz brasileiro, haver pouca diferença. E esta constatação é o primeiro passo para o vencimento da barreira dogmática – talvez tabu – para enfrentamento do tema sob a perspectiva comparada.
Serão identificados pontos de intersecção entre os modelos francês e brasileiro e, a partir deles, críticas serão tecidas com o intuito de aprimorar ou de elogiar o sistema brasileiro, propiciando-se a evolução do controle da administração pública.
2.1 FUNDAMENTOS DA CRIAÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO FRANCÊS
A lapidar frase que inaugura o Título IV (A Jurisdição Administrativa), do livro Direito Administrativo (RIVERO: 1981), merece ser transcrita: “A existência de uma organização jurisdicional especializada no julgamento dos litígios administrativos separada da jurisdição ordinária é um dos traços essenciais do sistema francês” (RIVERO: 1981, p. 155).
A criação da jurisdição administrativa francesa, por exemplo, deu-se na Revolução Francesa por retomada da experiência do Antigo Regime, raciocínio este que, segundo Romeu Felipe Bacellar Filho (2009, p. 60-61),“guardava um sentido histórico inequívoco: o sentimento generalizado de desconfiança em relação ao poder Judiciário, inspirado na lembrança dos parlamentos do Antigo Regime”. Nasceu a partir de um princípio interpretado sob o influxo de uma tradição (RIVERO: 1981, p. 157).O substrato jurídico para a estruturação deste pensamento foi uma interpretação do princípio da separação dos poderes (BACELLAR FILHO: 2009, p. 61), pois havia desconfiança sobre eventual abuso de poder por parte dos membros do Poder Judiciário ao decidir sobre atos administrativos, sob o pretexto de limitar eventuais desvio de poder por parte dos membros do Executivo. Receava-se legitimar o caminho para um governo de juízes.
Com efeito, na França recém-despontada do Ancien Régime, havia uma desconfiança enorme da magistratura, de tal sorte que se se deferisse aos juízes a competência para a resolução de conflitos envolvendo a Administração Pública e os particulares, estar-se-ia a submeter a atividade administrativa, criando-se o risco de degeneração em um instrumento de usurpação e despotismo. Essa concepção radical da separação orgânico-funcional do poder político conduziu à impossibilidade de submissão do Poder Executivo e seus conflitos ao Poder Judiciário e, assim, criou-se, no âmbito da própria Administração Pública, o órgão incumbido do julgamento dos conflitos que a envolvessem. (MAIOLINO: 2012)
Jean Rivero (1981, p. 157) nos ensina que a jurisdição administrativa é dispensável, pois há países, como os anglo-saxões (e o modelo jurisdicional brasileiro se aproxima do anglo-saxão nesse tocante), que vivem sem; na França, “nasceu por um concurso de circunstâncias históricas; sobreviveu por razões práticas”. E, segundo o pensado por Montesquieu, o princípio da separação dos poderes pode fundamentar tanto a criação de órgãos no Executivo para julgar litígios envolvendo atos administrativos quanto a delegação de tal dever para o juiz comum (membro do Judiciário) (RIVERO: 1981, p. 157-158).
A análise do sistema de dualidade ou duplicidade de jurisdição parte, necessariamente, da compreensão diversa acerca do princípio da separação de poderes, encontradiça no sistema anglo-saxão e francês, principalmente. Criaram-se, a partir daí, dois modos de controle da Administração Pública: um interno à própria organização administrativa, tipicamente francês, em que o Poder Jurisdicional é partilhado entre o Poder Judiciário e a Administração Pública, dando origem ao sistema de dualidade de jurisdição, e outro, em que o monopólio da jurisdição é conservado nas mãos do Poder Judiciário, a quem compete dirimir os conflitos de direito comum, bem como aqueles decorrentes do Direito Administrativo.
(...)
Antes da eclosão da Revolução Francesa e a derrocada do Ancien Régime todo o aparato administrativo prestava-se à consecução daquilo que era determinado pelo monarca, quem se beneficiava da atividade administrativa que então se desenvolvia. No entanto, a queda do antigo, e sua substituição pelo moderno, tinham como uma de suas determinantes político-ideológicas o estabelecimento de uma sociedade e, em consequência, de um Estado, que não fosse governado pelos homens, mas pelas leis, produto da razão humana segundo a filosofia iluminista e capaz, por isso, de conduzir a sociedade ao “reino das leis” segundo o bem comum. (MAIOLINO: 2012)
Jean Rivero (1981, p. 158) afirma que a opção dos homens articuladores da revolução Francesa foi a tradição. “O Ancien Régime conheceu tribunais especializados nas matérias administrativas (corte dos auxílios, câmaras de contas, tribunais de águas e florestas)”. Preponderaram os conflitos entre os parlamentos e a administração monárquica, provocados pelo rei, preocupado em vencer as resistências impostas pelos parlamentares, julgando, per se, casos administrativos. Por isso, reforça-se, o fundamento para criação da jurisdição administrativa francesa e do contencioso administrativo, por sua vez, foi o princípio da separação dos poderes, de Montesquieu. A Lei 16, de 24 de agosto de 1790 estipulou que “as funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação, perturbar por qualquer forma e acção dos corpos administrativos, nem citar, para comparecer à sua presença, os administradores por motivos das respectivas funções” (CAETANO: 2003, p. 385). Marcello Caetano (2003, p. 386) afirma que:
Teoricamente continua a dizer-se que os tribunais administrativos e o Conselho de Estado (que, além das secções de contencioso, possui as secções consultivas) são órgãos da Administração, constituem a sua “consciência”, são “a Administração que se julga a si própria”. Na realidade eles formam uma hierarquia de tribunais de competência especializada, distinta e independente do Poder Judiciários, mas com as mesmas garantias.
Deste modo, observada a criação do sistema de controle da legalidade da atividade administrativa no seio do Poder Executivo, retirando-o do Poder Judiciário, útil analisar-se os dois aspectos da jurisdição administrativa destacados por Jean Rivero.
2.2 DUPLO ASPECTO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA FRANCESA
Há dois aspectos, um negativo e outro positivo, destacados por Jean Rivero (1982, p. 158-159). O negativo diz respeito à impossibilidade de controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário; por outro lado, no aspecto positivo, os litígios serão apreciados por um juiz (administrativo). Antes das reforma da Constituição do ano VIII vigia o sistema administrador-juiz, no qual o próprio administrador – “rei e, após a queda da Monarquia, os ministros ou, para outras categorias de litígios, o directório de departamento” (RIVERO: 1981, p. 159). Após a reforma da Constituição do ano VIII, no qual o Conseil d’Etat, antes meramente órgão consultivo antes, passa a realizar a justiça delegada. Além do Conselho de Estado, foram criados os conselhos de Prefeitura ligados aos municípios (BACELLAR FILHO: 2009, p. 63).
2.3 EVOLUÇÃO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA FRANCESA
Destacam-se três etapas principais da evolução da jurisdição administrativa francesa. (i) parte da justiça reservada à justiça delegada; (ii) segue com o “desaparecimento da jurisdição do ministro” (RIVERO: 1981, P. 160); e (iii) culmina com a “organização da jurisdição administrativa” (RIVERO: 1981, P. 160).
Para o fim de explicar a primeira etapa, expõe-se que justiça reservada é aquela exercida pelo próprio soberano, cujo poder este reserva a si mesmo o poder de decidir sobre os litígios envolvendo a Administração, ao invés de delegar aos tribunais. Assim ocorria antes da reforma do ano VIII. Após a reforma da lei de 28 do Pluvioso do ano VIII, a justiça administrativa passa a ser delegada, com restrita competência, ao Conselho de Estado, junto ao governo central, o qual emite pareceres ao soberano quem poderia, ou não, acata-los (RIVERO: 1982, p. 160). Antes da lei de 24 de Maio de 1872, o Conselho de Estado tinha recebido autoridade e seus pareceres passaram a ser vinculantes para quem os tivesse obrigação para homologar. Após, passou a decidir litígios sem necessidade de homologação (CAETANO: 2003, p. 385). Prosper Weil (1977, p. 13) afirma que o Conseil d’Etat viu-se encarregado (primeiro, pelo Primeiro Consul, e depois por vários outros Chefes de Estado que o sucederam) de preparar um projeto de solução para o litígios envolvendo a Administração. Marcello Caetano (2003, p. 385) afirma que tal fato originou a migração da justiça delegada para a jurisdição própria do contencioso administrativo.
A segunda etapa analisa a mutação da figura do soberano de “juiz de apelação” para “juiz administrativo de direito comum” (RIVERO: 1982, p. 160). Nesta etapa da evolução da jurisdição administrativa surge a distinção entre jurisdição administrativa e Administração ativa com a edição do aresto Cadot pelo Conselho de Estado, em 13 de janeiro de 1889 (BACELLAR FILHO: 2009, p. 64).
A terceira etapa exposta por Rivero (1981, p. 161) é aquela culminada com a reforma de 1953, levada a efeito para “acelerar o curso da justiça” (RIVERO: 1981, p. 216), a qual erigiu os tribunais de prefeitura em juiz administrativo de direito comum. Estes, segundo o autor, decidem “sempre sob reserva de apelação”, salvo algumas exceções, nas quais o Conselho de Estado atua como juiz de primeira instância nas causas enumeradas no Decreto de 30 de setembro de 1953. (RIVERO: 1981, p. 216). Romeu Felipe Bacellar Filho (2009, p. 65) informa decisão contemporânea do Conselho Constitucional da França, a qual indica, com valor constitucional, a competência da jurisdição administrativa para anulação ou reforma das decisões tomadas pelo Poder Executivo.
Não obstante sua manutenção na Constituição francesa de 1958, não subsistem mais as razões da criação da jurisdição administrativa francesa. A separação entre jurisdição administrativa e Administração ativa, no seio do Poder Executivo, nunca satisfizeram plenamente os críticos liberais, pois, no momento da sua criação, havia preocupação de tal separação ofender, por outro lado, o princípio da separação de poderes. Montesquieu elaborou, em sua tese, a ideia de que o aquele órgão, ou agente, que executa não poderia julgar, sob pena de se propiciar condições para o abuso. Segundo os críticos, aquele que age segundo a lei, cumprindo seus misteres, não pode julgar os conflitos oriundos dos seus atos. Entretanto, neste tocante, a jurisdição administrativa demonstrou que o Executivo francês desincumbiu-se da missão constitucionalmente conferida a si com sucesso.
Para além dos benefícios que justificaram sua criação, Jean Rivero aponta inconvenientes manifestos da dualidade de jurisdições. “É muitas vezes difícil saber se uma questão deve ser apresentada perante os tribunais administrativos ou ordinários” (RIVERO: 1981, p. 161). No entanto, aponta como novas razões para manutenção da jurisdição administrativa: (i) a elaboração de um direito administrativo original e autônomo; (ii) as particularidades de um direito administrativo original poderia apresentar dificuldades aos julgadores comuns; (iii) cientes da realidade, os juízes da administração conhecem profundamente os limites do seu controle e podem avançar com o conhecimento específico que os ensinou o limite do arbítrio; (iv) estão menos expostos a excessos de timidez ou audácias intempestivas (RIVERO: 1981, p. 162). E arremata: a existência de um direito administrativo original e autônomo que constitui a “única justificação sólida da existência da jurisdição administrativa” (RIVERO: 1981, p. 162).
Estes fortes argumentos expostos acima permitem afirmar que não se faz necessário a qualquer Estado do mundo adequar seu sistema jurisdicional àquele dualista, pois, para se criar um direito administrativo autônomo e original, basta que o ordenamento jurídico atribua competências especiais a alguns órgãos da jurisdição una para permitir que, por meio da especialização da Justiça, atinja-se este objetivo.
2.4 NOTAS SOBRE A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA BRASILEIRA
No início, destacou-se a advertência de Marcello Caetano (2003) e Romeu Felipe Bacellar Filho (2009) sobre a conotação autoritária da expressão “contencioso administrativo”. Neste estudo, essa fórmula vernácula será observada por mera necessidade de adequação linguístico-histórica com os textos das Constituições brasileiras de outrora. O intuito é estimular o uso da expressão “jurisdição administrativa” como consenso conceitual, pois inegável reconhecer que não existe contencioso administrativo no Brasil atualmente – em sentido estrito, como ocorre na França.
Ademais, as dificuldades existentes lá em face da dualidade de jurisdição são muito maiores do que as existentes aqui no Brasil, as competências da jurisdição especial exercida por órgãos da Justiça Federal – por exemplo – são estipuladas em razão das pessoas submetidas ao conflito, ao invés de se utilizar critérios materiais.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto traça três grandes períodos da história do Direito no Brasil (MOREIRA NETO: 1977, p. 16): o português, de 1500 a 1822, o imperial, de 1822 a 1889, “marcado pela constitucionalização de índole francesa”, e o republicano, de 1889 aos nosso dias, influenciado diretamente pelo constitucionalismo norte-americano.
No Brasil colônia, as autoridades consideradas como magistrados – o juiz ordinário, o juiz de fora, os corregedores e ouvidores do rei – detinham a chamada jurisdição administrativa (PERLINGEIRO; GRECO: 2009, P. 61). O regime de gestão adotado era o das Ordenações – municipalista, em razão da aplicação da legislação portuguesa.
No Brasil imperial existia a figura do Conselho de Estado, o qual exercia a competência de exercer a jurisdição administrativa. Dilvanir José da Costa (1985, p. 149) aponta que, “Prestando serviço ao Poder Moderador, o Conselho de Estado era um órgão consultivo supremo para pronunciamentos sobre as nomeações de Senadores” (...). “Percebe-se, nessa primeira fase, o Conselho de Estado como órgão eminentemente consultivo, com intervenções para propiciar o equilíbrio nas relações entre os Poderes”. “Na definição determinada pela lei de 1841 foram introduzidas, pela primeira vez, as atribuições próprias do contencioso administrativo. Ao lado das funções consultivas, passa a exercer as de índole jurisdicional”. A Constituição de 1824 , outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25 de março daquele ano, criou quatro poderes. Destaque para o Poder Moderador, com forte caráter político, exercido pelo Imperador e auxiliado por um Conselho de Estado (PAULA: 1979, p. 274). Ensina Dilvanir José da Costa (1985, p. 150) que:
A dualidade de jurisdição (autoridades administrativas e judiciaria) teve no Conselho de Estado do Império, um grande suporte. Como instituição jurisdicional manifesta-se como órgão competente para as decisões entre a administração e os particulares: “Funcionava o Conselho como jurisdição de primeira instância em relação a determinadas matérias – conflitos de atribuição e questões de presas marítimas –, cabendo-lhe, ao mesmo tempo, como última instância, decidir sobre os recursos que lhe eram impostos contra decisões de outras autoridades administrativas – Ministros de Estado, Presidentes de Províncias, autoridades fiscais; contra decisões de jurisdições especiais, com as do Tribunal do Tesouro, dos Tribunais de Comércio, parte administrativa e das Tesourarias Provinciais. Exercia, ainda, o C.E. um controle jurisdicional sobre os atos das autoridades eclesiásticas, a origem legal da famosa questão religiosa de 1872/75 (...).
Pela concisão eficiente de grande número de informações, cita-se trecho do estudo de Edylcéa Nogueira de Paula (1979, p. 274):
Este órgão foi suprimido pelo Ato Adicional de 1834 e, posteriormente, restabelecido em 1841, por D. Pedro II. No ano seguinte, fez-se a sua regulamentação através do Regimento nº 124, de 5-2-1842, concedendo-lhe a função jurisdicional em casos de conflitos negativos entre o juiz ordinário e os presidentes das Províncias, relativos a causas em que fossem apreciados atos administrativos, decidindo pela competência da jurisdição ordinária ou do autocontrole da Administração.
A Constituição de 1891 alterou a realidade da Constituição anterior, de inspiração francesa, e inaugurou o sistema de jurisdição una, estabelecendo competências especiais para uma Justiça Federal, que ficou incumbida de “julgar toas as ações intentadas pelos particulares contra a União e por esta contra os particulares” , essencialmente. Opostamente, os Estados-membros receberam a jurisdição comum e geral, para julgar ações criminais e as de Direito Privado. O juiz federal absorvera, então, o “contencioso administrativo”. Durante a segunda fase (republicana), com a edição da Lei 221, de 20 de novembro de 1894 , surge a hipótese de controle dos atos administrativos por intermédio de ação judicial específica (MOREIRA NETO: 1977, p. 17). Interessante é perceber um resquício autoritário do direito administrativo oitocentista, pois a lei limitava o controle do ato discricionário ao vício de legalidade e ao excesso de poder, claramente influenciado, ainda, pelo direito administrativo do Conselho de Estado francês.
Previu a Constituição, então, o habeas corpus como medida hábil a combater ilegalidade e abuso de poder, não se restringindo à mera defesa da liberdade de locomoção (PAULA: 1979, p. 274; MOREIRA NETO: 1977, p. 18). No entanto, com o advento da reforma constitucional de 1926, o habeas corpus se restringiu à defesa da liberdade de locomoção, eclodindo o anseio por um novo remédio constitucional. Em 1934, outorgou-se nova Constituição, influenciada pela de Weimar, a qual criou o mandado de segurança. Após período do Estado-Novo e do advento da Constituição de 1937, restabeleceu a democracia representativa por intermédio da Constituição de 1946, inserindo o mandado de segurança novamente no ordenamento jurídico, o qual passou a receber regulamentação do Código de Processo Civil de 1939 e pela Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951(MOREIRA NETO: 1977, p. 18-20). Até o advento da Constituição de 1967, alterada pela Emenda Constitucional nº 1/69, nenhuma alteração legislativa relevante para o tema do “contencioso administrativo” foi realizada.
Foi com a promulgação da Emenda Constitucional 7/1977 que o “contencioso administrativo” tomou novo fôlego no cenário nacional. Sob o rótulo de Reforma do Poder Judiciário, esta promoveu as alterações inseridas nos artigos 111; 153, § 4º; 203; 204 e 205, e autorizou a criação, por lei,do contencioso administrativo, garantindo-se a inafastabilidade de controle jurisdicional do ato administrativo impugnado. Diogo de Figueiredo Moreira Neto destaca limitações de três ordens acarretadas pelo texto da EC 1/77: quanto às pessoas, quanto à matéria e quanto à definitividade. No tocante às pessoas, será plena a competência do Contencioso Administrativo somente se o litígio se travar entre a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, ou entre umas e outras, nos termos do art. 205, da Constituição de 1967, alterado pela EC supracitada. Quanto à matéria, o rol é restrito: questões de servidores, fiscais, previdenciárias e relativas a acidentes de trabalho (MOREIRA NETO: 1977, p. 71-72). Por fim, quanto à definitividade, a falha da EC 7/1977 se encontra na timidez da abordagem pelo Constituinte. Percebe-se que não se adotou a vinculação formal o Contencioso Administrativo à teoria da jurisdição una, atribuindo-se ao Poder Judiciário as competências para a jurisdição administrativa ou criando-se órgãos vinculados ao Poder Executivo para, exclusivamente, julgarem os litígios entre a Administração e os particulares. Há flagrante hibridismo: o Contencioso Administrativo era formalmente ligado ao Executivo, exercia materialmente jurisdição, pois julgava conflitos que envolvessem a Administração, mas poderia suprimir (ablação) um grau de jurisdição, substituindo uma instância judiciária (MOREIRA NETO: 1977, p. 80-82).
No entanto, “o contencioso administrativo criado pelo constitucionalismo anterior não deu o passo fundamental no sentido da cisão da jurisdição em comum e especializada e, conseguintemente, manteve a unidade de jurisdição” (MAIOLINO: 2012). Assim, a Constituição da República de 88 revogou o ordenamento jurídico anterior e, atualmente, não mais existe esta previsão que permita a criação de um Contencioso Administrativo no Brasil.
2.5 QUESTÃO CENTRAL DO AGIR ADMINISTRATIVO E OBJETO DO PROVIMENTO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A principal contribuição do direito administrativo francês foi a sujeição do Estado às leis que cria, determinando sua responsabilização por ilegalidade e excesso de poder. Esta fórmula foi repercutida em todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos e a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos se tornou centro de preocupação da teoria do controle dos atos administrativos. Para além da autotutela - o dever de autocontrole da administração pública -, a Administração Pública passou a ser controlada por órgão titulares de jurisdição, responsáveis por realizar controle externo da sua atividade. Na França, em face da dualidade da jurisdição, criaram-se órgãos como o Conselho de Estado e figuras como o juiz administrativo, ambos vinculados ao Poder Executivo mas dotados de deveres-poderes de resolução de litígios que envolvem a Administração Pública, conforme se explicou acima. Por sua vez, no Brasil, vige sistema de jurisdição una, no qual o Supremo Tribunal Federal ocupa o topo da hierarquia do Judiciário.
No Brasil, desenvolveu-se a teoria do controle jurisdicional dos atos administrativos a partir do controle da legalidade e sobre os contornos da teoria do desvio de poder. Considerando que nenhuma ameaça de lesão ou lesão a direito poderão ser excluídas da apreciação do Poder Judiciário (BRASIL: 1988, art. 5º, inc. XXXV, das CR/88), todo e qualquer ato administrativo impugnado poderá ser impugnado por meio de mandado de segurança (BRASIL: 1988, art. 5º, inc. LXIX, da CR/88), ação popular (BRASIL: 1988, art. 5º, inc. LXXII, da CR/88), ou mesmo por meio do exercício do direito de petição (BRASIL: 1988, art. 5º, inc. XXXIV, a, da CR/88) endereçada ao órgão do Poder Judiciário competente.
Considerando-se a exposição precedente, pode-se concluir que não há Contencioso Administrativo (sentido formal) , propriamente dito, no Brasil. Para tanto, seria necessário que o ordenamento jurídico fosse alterado e adequado, criando-se órgão na estrutura do Poder Executivo e atribuindo a si competências para o exercício de jurisdição, constituindo, então, dever do executivo resolver litígios sobre atos administrativos, a partir do texto constitucional às mudanças infraconstitucionais necessárias. O sistema constitucional brasileiro de unidade de jurisdição comporta a criação de tal estrutura, mantendo-se íntegra a separação de poderes operada pela Constituição de 88.
Entretanto, há criação de núcleos de especialização no âmbito do exercício do poder de julgar estatal. Exemplifica-se com a estruturação da Justiça Federal, a qual, por meio de seus juízes, deverá “processar e julgar” “causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”, nos termos do art. 109, inc. I, da Constituição.
A Justiça Federal é especializada nas matérias previstas no art. 109 e incisos, da CR/88. Esta disposição impede que os juízes comuns, vinculados aos poderes judiciários estaduais conheçam de pedidos cujos objetos estão inseridos nesse rol. A especialização do Poder Judiciário se discute desde a Proposta de Emenda Constitucional nº 11/1984, segundo noticia Costa (1985), e se concretizou, em parte, com a estruturação do Poder Judiciário Federal segundo o art. 109.
Não obstante, há jurisdição administrativa conferida aos juízes comuns, vinculados aos poderes judiciais estaduais. Por exemplo, é plenamente possível impugnar-se edital de licitação promovida por um Estado-membro por meio de mandado de segurança endereçado a Juiz de Direito; ou, pode servidor público municipal questionar ato de demissão, praticado pelo Prefeito, ao arrepio do devido processo legal (BRASIL: 1988, art. 5º, inc. LV, da CR/88) ou ilegalmente, diante do seu regime jurídico funcional. O controle jurisdicional, por órgão do Poder Judiciário estadual, nestes casos, é exemplo de competência atinente à jurisdição administrativa.
Deste modo, ao traçar-se um paralelo entre a jurisdição administrativa francesa e a brasileira, pode-se afirmar que o juiz brasileiro tem maior liberdade funcional para realizar controle de atos administrativos do que o juiz administrativo francês. Em França, o juiz administrativo só pode conhecer dos “litígios nascidos da atividade da Administração”, mas nem todos esses litígios competem à jurisdição administrativa (RIVERO: 1981, p. 177). Estão excluídos da competência administrativa os litígios entre particulares, os oriundos de atividade comum de órgãos públicos e os que envolvem autoridades públicas estrangeiras, explica Rivero (1981, p. 178). No Brasil, os juízes deverão conhecer qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, por força constitucional (BRASIL: 1988, art. 5º, inc. XXXV, da CR/88). Inegável afirmar que o juiz brasileiro tem uma gama muito maior de atribuições.
Esse olhar comparado permitiu constatar o aspecto positivo da jurisdição administrativa brasileira, fruto da especialização da atividade jurisdicional, qual seja, a abrangência e a profundidade do controle dos atos administrativos do Poder Executivo. Olhares deverão ser lançados, também, sobre a atividade de controle interno dos atos administrativos em perspectiva de comparação entre Brasil e França.
O modelo de jurisdição administrativa francês permite afirmar, basicamente, que (i) há órgãos com poderes jurisdicionais inseridos na estrutura do Poder Executivo; (ii) as decisões proferidas por tais órgão são definitivas; e (iii) as competências dos juízes administrativos são restritas. A partir destes elementos, afirma-se que há um “contencioso administrativo” na França em razão da dualidade jurisdicional. O sistema foi criado desta forma e assim foi estruturado pela Constituição.
Opostamente, o sistema de unidade jurisdicional brasileiro, influenciado na pureza do princípio da separação dos poderes, não permitiu a criação de órgãos com poderes de jurisdição administrativa. Mas, em razão das fontes formais do direito administrativo permitirem a autotutela (autocontrole, controle interno em sentido amplo), construiu-se um sistema de controle dos atos administrativos em sede de processo administrativo, por meio do qual se produz uma nova decisão sobre a juridicidade do ato questionado. Esta decisão é um novo ato administrativo, o qual poderá rejeitar o ato impugnado, extinguindo-o e editando-se outro em seu lugar, ou reconhecer a juridicidade do mesmo, mantendo-o no mundo jurídico.
Pode-se afirmar que há jurisdição administrativa no âmbito da Administração Pública, diante do entendimento do “procedimento” como legitimador de decisões administrativas. Romeu Felipe Bacellar Filho (2014, p. 367-368), afirma que “Candido Rangel Dinamarco, na esteira de Elio Fazzalari, anota que o procedimento é ‘um sistema de atos interligados numa relação de dependência sucessiva e unificados pela finalidade comum de preparar o ato final de consumação do exercício do poder’”. Adicione-se a cooperação de sujeitos segundo a lógica do contraditório e o procedimento passa a ser um processo. Nesse tocante, considerando que o “final de consumação do exercício” do Poder Executivo (função administrativa) é o ato administrativo, pode-se constatar que o processo administrativo é “modalidade de exteriorização da função administrativa” (BACELLAR FILHO: 2014, p. 369). O exercício desta função administrativa qualifica o agir administrativo processualizado como produto da jurisdição administrativa exercida diretamente por órgãos e entidades da Administração Pública. Essa é uma tendência. Ricardo Perlingeiro (2012, p. 14), reconhece que, em médio prazo, “o aperfeiçoamento das denominadas ‘autoridades administrativas independentes’ é o caminho natural”. O poder de autotutela, de controle interno já existe e é realidade. Faz-se necessário apurar a qualidade do capital humano do Poder Executivo.
Comparando-se com o Poder Judiciário, será necessário selecionar agentes vocacionados e preparados para exercício da jurisdição administrativa dentro do Poder Executivo, desde que isto preceda a uma reestruturação das carreiras, voltando-se atenção à profissionalização da função pública e transferindo as competências decisórias a agentes públicos detentores da técnica jurídica.
CONCLUSÃO
A técnica utilizada neste estudo foi o estudo comparado entre a jurisdição administrativa francesa (Contencioso Administrativo) e a jurisdição administrativa brasileira.
Este estudo permitiu perceber que a dualidade jurisdicional francesa acarreta em inúmeras dificuldades materiais para definição das competências entre os juízes ordinários e os juízes administrativos, tornando-se necessária a atuação do Conselho de Estado para definição e delimitação da competência do juiz administrativo face ao comum. Tal dificuldade não é recorrente na realidade brasileira, pois o Poder Judiciário detém a competência de exercício da jurisdição e todo e qualquer ato que cause lesão direitos ou, ainda, ameace-os de lesão.
No entanto, em face do poder de autotutela, controle interno em sentido amplo, o Poder Executivo exerce jurisdição administrativa quando julga processos de sua competência, com a diferença de que estes atos administrativos (finalidade do exercício da função administrativa) oriundos do procedimento administrativo são controláveis pelo Poder Judiciário, em face da unidade jurisdicional estipulada em nossa Constituição de 88.
Desse modo, percebe-se que a jurisdição administrativa francesa inspirou nossa jurisdição administrativa em alguns momentos históricos. Cotidianamente, não há identidade específica, mas as lições aprendidas com a experiência francesa estão arraigadas na cultura jurídica brasileira e o direito administrativo serve como propagador das teorias pós-modernas de resolução de litígios envolvendo a Administração Pública, visando a conformação do modelo ideal de jurisdição administrativa.
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1 O uso da expressão contencioso administrativo neste texto considera a importante advertência de Romeu Felipe Bacellar Filho (2009, p. 60), escorado em Marcello Caetano (2003, p. 388), quem se preocupa com a conotação absolutista do termo, carregada de conotação histórica: “Propositadamente evitamos, quanto possível, empregar a expressão contencioso-administrativo. É que, como em várias ocasiões temos frisado, pesa sobre ela uma carga emocional influenciada por factores históricos e preocupações políticas determinante de um preconceito existente em muitos países contra o que se julga ser a subtracção autoritária dos actos da Administração ao conhecimento dos juízes ordinários. Ora, é necessário desprender o conceito de contencioso administrativo das suas origens históricas em França e trata-lo à luz dos princípios gerais de Direito sine ira ac studio” (CAETANO: 2003, p. 388).
2 Entendido, aqui, em sentido formal, como “órgão ou conjunto de órgãos competentes para exercer jurisdição, com ou sem definitividade em suas decisões, em hipóteses de ameaça ou lesão de direitos subjetivos pela Administração” (MOREIRA NETO: 1977, p. 70).
3 Apenas como notícia interessante e correlata à história da Constituição de 1824, lembre-se que o Imperador D. Pedro I foi o mesmo Rei Pedro IV, de Portugal, quem outorgou a Constituição portuguesa de 1826. As duas constituições foram promulgadas pela mesma pessoa e são muito semelhantes, inclusive.
4 Tal regramento estava previsto no art. 60, alínea b: “Aos juizes e Tribunaes Federaes: processar e julgar: (...)b) todas as causas propostas contra o Governo da União ou Fazenda Nacional, fundadas em disposições da Constituição, leis e regulamentos do Poder Executivo, ou em contractos celebrados com o mesmo Governo;” (...) (BRASIL: 1891).
5 Vejam-se os dispositivos específicos da Lei 221/1894 pertinentes ao estudo: “Art. 13. Os juizes e tribunaes federaes processarão e julgarão as causas que se fundarem na lesão de direitos individuaes por actos ou decisão das autoridades administrativas da União. (...)§ 9º
Verificando a autoridade judiciaria que o acto ou resolução em questão é illegal, o annullará no todo ou em parte, para o fim de assegurar o direito do autor.a) Consideram-se ilIegaes os actos ou decisões administrativas em razão da não applicação ou indevida applicação do direito vigente. A autoridade judiciaria fundar-se-ha em razões juridicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de actos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniencia ou opportunidade;b) A medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionario sómente será havida por illegal em razão da incompetencia da autoridade respectiva ou do excesso de poder.§ 10. Os juizes e tribunaes apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de applicar aos casos occurrentes as leis manifestamente inconstitucionaes e os regulamentos manifestamente incompativeis com as leis ou com a Constituição.§ 11. As sentenças judiciaes passarão em julgado e obrigarão as partes e a administração em relação ao caso concreto que fez objecto da discussão.§ 12. A violação do julgado por parte da autoridade administrativa induz em responsabilidade civil e criminal. (...)” (BRASIL: 1894).
6 Entendido, aqui, em sentido formal, como “órgão ou conjunto de órgãos competentes para exercer jurisdição, com ou sem definitividade em suas decisões, em hipóteses de ameaça ou lesão de direitos subjetivos pela Administração” (MOREIRA NETO: 1977, p. 70).
REFERÊNCIAS
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BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Procedimento administrativo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (coord.); _____; e MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de direito administrativo. vol. 5. São Paulo: RT, 2014. p. 361-721.
CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. Almedina: Coimbra, 2003.
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MAIOLINO, Eurico Zecchin. Unicidade e dualidade de jurisdição: o contencioso administrativo. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 10, n. 39, out./dez. 2012. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=83824>. Acesso em: 19 mai. 2016.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Contencioso administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
PAULA, Edylcéa Nogueira de. Contencioso administrativo. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 16, n. 62, abr/jun. 1979, p. 271-280.
PERLINGEIRO, Ricardo; GRECO, Leonardo. A jurisdição administrativa no Brasil. In: PERLINGEIRO, Ricardo; BLANKE, Hermann-Josef; SOMMERMANN, Karl-Peter. Código de jurisdição administrativa (o modelo alemão). Rio de Janeiro: 2009, p. 61-72.
PERLINGEIRO, Ricardo. A justiça administrativa brasileira comparada. Revista CEJ, Brasília, ano XVI, n. 57, maio/ago. 212, p. 6-18.
RIVERO, Jean. Direito administrativo. Almedina: Coimbra, 1981.
WEIL, Prosper. O direito administrativo. Almedina: Coimbra, 1977.
Por Eduardo Ramos Caron Tesserolli - 06/02/2017
Resumo: O presente estudo identifica e analisa o ordenamento jurídico brasileiro para o fim de identificar quais são os exemplos marcantes de mecanismos de consensualidade presentes nas relações de administração, nos termos do marco teórico constitucional caracterizador do agir administrativo consensual como regra.
Palavras-chave: consensualidade; Constituição Federal; Fomento; Acordo Substitutivo de Sanção; Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI)
Abstract: This study identifies and analyzes the Brazilian legal system to identify what are the striking examples of consensual mechanisms present in management relations under the constitutional theoretical framework characterizing the consensual act as administrative rule.
Keywords: consensual act; constitution; leniency agreement; request for information (RFI)
1 INTRODUÇÃO
O tema da contratação pública merece ser analisado à luz dos efeitos da consensualidade constitucional, inaugurada em 1988 no Brasil. Segundo a Constituição da República de 88, importante marco teórico da consensualidade constitucional brasileira, a atuação autoritária, verticalizada, do Poder Público se encaminha para um processo de extinção, pois a concretização dos direito fundamentais exige uma administração pública flexível, dialógica e parceira do particular.
Sobre essa premissa, o estudo se desenvolve.
Este trabalho pretende identificar e analisar o ordenamento jurídico brasileiro para o fim de identificar quais são os exemplos marcantes de consensualidade das relações de administração matizadas pelo dever de concretização de direitos fundamentais.
Encontrou-se três marcantes temas diretamente influenciados pela consensualidade constitucional: o fomento, o acordo substitutivo de sanção administrativa e o procedimento de manifestação de interesse (PMI).
Portanto, iniciar-se-á pela analise da consensualidade constitucional e suas características. Em seguida, abordar-se-ão os exemplos de mecanismos de consensualidade. Por fim, serão expostas as considerações finais, a título de conclusão deste estudo.
2 A CONSENSUALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
O Direito Administrativo passou a ser estudado sob o enfoque da transformação das finalidades da Administração Pública, nos últimos vinte anos.
Tradicionalmente, ensinava-se que o atendimento do interesse público pelo Estado era seu fim último; que razões de Estado poderiam ser motivação de qualquer decisão administrativa, ausente qualquer outro fundamento. Com a virada olímpica da constitucionalização do Direito, passou-se a estudar o Direito Administrativo à luz da Constituição. Tornou-se fim da Administração Pública a realização de direitos fundamentais, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, entre outros.
A Constituição de 88 eleva o cidadão à categoria de detentor do poder e partícipe das decisões estatais. Com isso, deve-se reconhecer que a relação de administração se tornou dialógica, exigindo a participação da população como diretriz para organização da atividade (saúde e assistência social são exemplos); surgiu o direito constitucional de participação popular. Ouvir e atender aos anseios da sociedade é dever do Estado e da Administração Pública e, ao mesmo tempo, marca de uma postura dialógica, oposta ao autoritarismo patrimonialista superado (em tese) no Brasil. Desse modo, a Administração passa a ser conhecida por um caráter consensualista, preocupado em atuar horizontalmente para realizar os direitos ao pleno emprego, à saúde, à educação, à família etc.
Há que se aprofundar a investigação sobre a influência da mudança paradigmática promovida pelos mecanismos de autocomposição de conflitos sobre as relações especiais de sujeição, os quais, analisados segundo o movimento consensualista da Administração Pública promovida pela Constituição de 88, poderão definir nova face ao exercício do dever-poder de planejamento da contratação pública em colaboração como particular, a partir da ordem econômica constitucional.
A ordem econômica está prevista nos artigos 170 e seguintes da Constituição e da leitura do referido capítulo se percebe que o Estado pode intervir direta ou indiretamente. A exploração de serviço público (art. 175) ou atividade econômica em sentido estrito (art. 173) representa intervenção direta. A adoção pelo Estado de mecanismos de Direito Privado, como as sociedades de economia mista, desfez o critério formal de serviço público, além de se aproximar da teoria da “Fuga para o Direito Privado” de Maria João Estorninho.
Segundo a autora, “a especificidade deste Direito Privado Administrativo está no facto de a entidade administrativa não gozar plenamente da autonomia privada negocial, estando antes sujeita a algumas vinculações jurídico-públicas”. A teoria de Estorninho cuida de analisar a vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais, pois “o risco de serem lesados os direitos fundamentais, por parte da Administração Pública, é especialmente grande e é, sem dúvida, maior do que por parte do Parlamento ou da Jurisprudência”. E explica o substrato desta afirmação: “A razão para este facto não estará no facto de a Administração ser ‘menos fiel’ à Constituição, mas no maior número de decisões a tomar e em menor espaço de tempo”.
Claramente, tanto em Portugal quanto no Brasil, o agigantamento do aparato estatal para atender aos interesses públicos não é solução aceitável, sequer possível, a ser adotada. A horizontalização das relações de administração é comportamento que se coaduna com o interesse dos particulares. Estaafirmação parte de uma “mudança de paradigmas” proposta por Gustavo Binenbojm.
3 OS EXEMPLOS DE CONSENSUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA: FOMENTO, ACORDO SUBSTITUTIVO DE SANÇÃO ADMINISTRATIVAE PROCEDIMENTO DE MANIFESTAÇÃO DE INTERESSE (PMI)
A Administração Pública enfrentou importantes mudanças de paradigmas. O binômio legalidade-legitimidade recebe luzes advindas de outros prismas cuja orientação juspolítica se origina da vinculação da atividade administrativa aos direitos fundamentais.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma que:
(...) é a presumida concordância geral de que um determinado comportamento, seja individual ou coletivo, uma vez considerado socialmente necessário ou simplesmente útil, deve ser imitado e reiterado em escala social, que a torna indutora da lenta sedimentação de instituições, um fato que, desde logo, aponta o relevante papel de coesão social desempenhado pelo consenso, tanto na origem do poder coletivamente considerado, como na própria natureza da organização social, que essa qualidade aglutinante propicia.
A sociedade poderá se organizar em dois modelos: o contratual e o convencional. Analisando-se histórica e jusfilosoficamente se pode remontar à Antiguidade (nos ensinamentos das religiões primeiras), passando-se ao Renascimento, pelas ideias de consenso social e legitimidade das instituições.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto leciona que:
O conceito consensual convencional, distintamente do conceito consensual contratual, parte, assim, da ideia de que a segurança obtida convencionalmente resulta da presunção de que todos se comportarão de acordo com a expectativa de que pelo menos uma expressiva maioria adotará esse mesmo previsível comportamento. É sob essa presunção que pode germinar no meio social a confiança, essa virtuosa situação que a doutrina contemporânea precisamente caracteriza como uma “expectativa de reciprocidade”.
A consensualidade presume o agir previsível, confiável. Assim:
Em suma, a consensualidade, posta como alternativa preferível à imperatividade, sempre que possível, ou em outros termos, sempre que não seja necessário aplicar o poder coercitivo, o que se vai tornando válido até mesmo nas atividades delegadas, em que a coerção não é mais que uma fase eventual ou excepecional do emprego do poder (ex.: o poder de polícia).
A partir desses dados, pode-se definir uma caracterização da consensualidade subsumida às funções precípuas do Estado: consensualidade na produção normativa (“regulática”); uso de meios alternativos consensuais “de coordenação de ações, por cooperação e por colaboração”; e a consensualidade na resolução de conflitos. Destaque para a consensualidade na resolução de conflitos por meio de meios para composição.
A aprovação e sanção da Lei nº 12.846/2013, alcunhada “lei anticorrupção”, traz em seu bojo a possibilidade de se celebrar “acordo de leniência” entre Administração Pública e pessoas jurídicas responsáveis por atos previstos no mesmo diploma (art. 16 e 17 da referida lei), desde que preenchidos alguns requisitos estipulados naquele diploma. Esse acordo pretende substituir as sanções administrativas correlatas aos atos típicos de corrupção determinados pela Lei Anticorrupção.
Nestes tempos em que atos de corrupção são investigados pela “Operação Lava Jato”, deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, muito se leu e ouviu sobre a participação ativa de gigantes da construção civil brasileiras nos desvios praticados no âmbito das contratações pela Petrobrás.
Este acontecimento traz oportunidade de se estudar o tema – mecanismosconsensuais – sob a perspectiva da dogmática, tradicional e crítica, do Direito Administrativo, pois se extraiu da leitura de alguns artigos científicos e de livros sobre a temática a importância do aprofundamento científico sobre a consensualidade do agir administrativo.
Tradicionalmente, a doutrina tradicional de Direito Administrativo (como Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Romeu Felipe Bacellar Filho, Regis Fernandes de Oliveira, Daniel Ferreira, Rafael Munhoz de Mello) sustenta que o regime jurídico administrativo se sustenta sobre duas pilastras: o princípio da supremacia de interesse público sobre o privado e o princípio da indisponibilidade do interesse público; desse modo, e considerando o dever-poder de investigar a ocorrência e a prática de ilícito administrativo, a sanção não poderá ser substituída caso se constate, empiricamente, a autoria da infração e sua materialidade; por isso mesmo, a participação do particular no planejamento da contratação pública pode destoar do arcabouço jurídico nacional.
No entanto, há estudos dissonantes da corrente administrativista tradicional, a qual analisa os institutos sob a perspectiva da consensualidade estatal. Seu substrato confere à Administração Pública a oportunidade de uma atuação dialógica, horizontalizada em relação ao particular; oposta e preferível à imperatividade como se verá adiante.
Nesse sentido, a consensualidade, a qual tem em sua base a confiança legítima, pode servir como fundamento ao fomento, ao acordo de leniênciae ao procedimento de manifestação de interesse como instrumentos legítimos de manifestação republicana para o reconhecimento da importância da participação da iniciativa privada nas escolhas públicas.
Para sistematizar a abordagem da consensualidade, serão expostos três exemplos da realidade jurídica brasileira.
O fomento é intervenção do Estado no domínio econômico de maneira direta, imediata e concreta, servindo como estímulo às “atividades privadas de interesse público”. As relações de administração surgidas em decorrência da “técnica promocional” são ordenadas a partir da “adesão” dos particulares à composição dos vínculos, “teleologicamente orientados à satisfação indireta de interesses públicos específicos”.
Esta dimensão dota o fomento de singularidade, em face da atividade ordenadora e da prestacional. Assim, a distinção não está no elemento finalístico comum a toda função administrativa, mas no modus operandi, ou seja, na técnica jurídica operativa de estruturação ou criação do vínculo jurídico-administrativo entre particular fomentado e Administração fomentadora, em vista do interesse público colimado pela lei.
Reitere-se: a atividade de fomento representa intervenção direta na ordem econômica em razão da atividade de estimulação aos particulares para exercerem atividades privadas de interesse público; mas tal atividade, como é própria de sua natureza, acarreta em satisfação indireta dos interesses públicos envolvidos, pois a atividade material é realizada pelo particular.
O fomento é “atividade estatal incentivadora, positiva e persuasiva”, no exercício da qual o Estado passa a assumir uma “postura dirigente”. O Estado, notadamente o brasileiro, têm o condão de interferir positivamente na concretização dos ideais sociais programados na Constituição Federal de 1988 e, para tanto, deve contar com a “colaboração dos particulares” para criar e executar políticas públicas. Desse modo, o fomento passa a ser compreendido como “poderoso mecanismo de apoio, promoção e auxílio das iniciativas socialmente significantes, voltadas ao desenvolvimento socioeconômico”.
Na Argentina, o fomento pode ser utilizado para incentivar atividades exercidas por particulares ou por outros entes públicos. Roberto Dromi incluiu tal possibilidade no conceito: “El fomento es actividad administrativa, que puede ejercer se concurrentemente por la Nación y las províncias”.
O fomento estatal é um exemplo de que a consensualidade permeia o agir administrativo. Para Vasco Pereira da Silva:
Inversão radical das funções normalmente atribuídas ao acto administrativo é a que se verifica quando este – de instrumento ‘autoritário’ de aplicação do direito ao caso concreto, que se dizia ser – se transforma num mecanismo de concertação com os particulares, destinado a obter a sua aceitação e colaboração para o desempenho das tarefas administrativas.
Segundo o mesmo autor, a concertação da Administração com as particulares “é consequência da condenação ao fracasso da tentativa de utilização de meios autoritários nos domínios da Administração prestadora e conformadora ou infra-estrutural”. Jean Rivero afirmou, em 1975, que “é evidente em todos os domínios de acção do poder a necessidade de fórmulas menos autoritárias, que façam apelos à cooperação dos particulares e não ao constrangimento”.
Trata-se da concretização do devido processo legal como instrumento de concretização da democracia, proporcionando ao particular a participação na decisão. A partir da experiência espanhola, Tomás Font y Llovet relata que:
El procedimento participado ha sido, precisamente, el caminho a través del qual se ha ido abriendo passo la figura dela curdo entre la Administración y los particulares en el ejercicio de potestades administrativas. De la simple participación en el procedimento se ha evoluionado hacía la Administración convencional, a la sustitución de la decisión administrativa unilateral, expresieon dela sola voluntad de la Administración, por el acuerdo entre las partes.
Afirma o mesmo autor que o exercício contemporizado das potestades administrativas garante a realização da finalidade pública e a realização “del princípio de eficácia” (o qual se aproxima do nosso princípio da eficiência). Ainda, promove uma maior aceitação da decisão pelas partes e deixa de gerar conflitividade. Ainda, o autor aponta que, na Espanha, há previsão legal de celebração de acordos para o fim de encerrar “recursos de alzada”, novamente um momento para substituir o ato produzido em razão da potestade pública por outro “paccionado”, acordado entre as partes.
Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara informam que, no Brasil, “há competência para a Anatel firmar acordos substitutivos com as prestadoras”, como “a assunção do compromisso de realizar investimentos que beneficiem os serviços e os interesses de âmbito coletivo que estejam envolvidos em cada caso”. Representa a escolha por uma “solução conciliatória” em face de discussão acerca da prática, ou não de conduta tipificada como infração administrativa e “do modo correto de aplicar dada norma ou cumprir dada obrigação”.
Ricardo Villas BôasCueva informa sobre a possibilidade de ser firmado “termo de compromisso” em processo administrativo sancionador do Banco Central. Aquele instrumento está previsto na Lei Federal nº 7.347/85 após alteração trazida pelo Código de Defesa do Consumidor. O autor conceitua o compromisso de ajustamento de conduta como “um ato administrativo negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete”. Reúne todas as características de uma transação (negócio jurídico bilateral), mas é dotado de coercitividade para que se tenha eficácia pretendida pela medida.
Na Lei nº 8884/94, bem como na novel lei que a revogou – Lei nº 12.529/2011 –, foi criado o Compromisso de Cessação de prática lesiva à concorrência. O art. 85, da Nova Lei do CADE (nº 12.529/2011) dispõe que o compromisso de cessação poderá ser oferecido nos processos previstos nos inc. I, II e III, do art. 48. Para fins deste estudo destaca-se o inciso III, do art. 48 (“processo administrativo para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica”).
Segundo esse dispositivo, poderá o Conselho Administrativo de Defesa da Economia oferecer o compromisso àquele que pratique infração administrativa punível pela autarquia, o qual visa por fim ao processo antes da aplicação da sanção correlata à conduta e cominada legalmente. Prática evidentemente consensual.
Por outro lado, não há instrumento transação ao BACEN. Os comumente utilizados são a carta de interpelação e o termo de comparecimento, ambos com força coercitiva. Por isso, não são ferramentas consensuais.
Ricardo Villas BôasCueva aponta algumas vantagens dos instrumentos:
Primeiramente, a experiência tem provado que uma instituição financeira recebendo uma comunicação do Banco Central do Brasil raramente não satisfaz o exigido. Em segundo lugar, em havendo descumprimento do solicitado, dando origem, pois, a um Processo Administrativo, não se poderá alegar em defesa desconhecimento da proibição. E, em terceiro lugar, ainda na hipótese de instauração de processo administrativo, especialmente em se tratando de Termo de Comparecimento, desde logo poder-se-á definir quais os administradores responsáveis pela conduta delituosa.
Os instrumentos supracitados, os quais estão à disposição do BACEN para tentar evitar a instauração de processo administrativo, não são ferramentas consensuais. Os que se caracterizam substancialmente como tais são o compromisso de ajustamento de conduta e o compromisso de cessação já tratados, pois nestes há bilateralidade e estipulação de condições pelo Estado e assunção de obrigações pelo particular. Os dois configuram títulos executivos extrajudiciais e poderão ter seu cumprimento exigido judicialmente, inclusive no tocante à multa eventualmente fixada em caso de descumprimento.
Daniel Ferreira afirma que a Administração tem o dever de instaurar a investigação do ilícito, “salvo se a lei permitir ou determinar em contrário”. Isso em atenção ao dever-poder conferido pela lei ao agente público competente de assim proceder. Trata-se de um dever funcional e seu descumprimento por ensejar responsabilização ao agente omisso.
É dizer: não há escolha entre processar ou não processar, entre sancionar ou não sancionar, salvo quando a lei dispuser em contrário, mesmo porque é desnecessário frisar tal obviedade – a de que ato de hierarquia inferior não pode liberalizar o que o estado de legalidade obriga.
A crítica recai sobre os projetos de lei que pretendem inserir nos regimes disciplinares, por exemplo, a possibilidade de suspensão do processo disciplinar – SUSPAD, como criado pela Lei Municipal nº 9310/2006, do Município de Belo Horizonte. O SUSPAD não visa substituir a sanção.
Por isso, funciona como um instrumento da consensualidade.
Neste sentido, Alexandre Santos Aragão afirmou:
Sustentando a possibilidade de Agência reguladora de serviço público, em acordo com a concessionária, substituir a aplicação de sanção pecuniária determinada pela lei pelo estabelecimento de novas obrigações de investimento no serviço, medida que seria mais consentânea com as finalidades legais de universalização do serviço público, FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO afirma: "a unilateralidade e a exorbitância tradicionais no exercício da autoridade pública (poder extroverso) têm que dar lugar à interlocução, à mediação e à ponderação entre interesses divergentes, sem descurar, por óbvio, da proteção da coletividade contra abusos dos agentes econômicos. De outro lado, a atividade regulatória estatal, neste novo contexto, tem que se pautar pelos interesses que lhe cumpre tutelar. (...) A finalidade da atividade regulatória estatal não é a aplicação de sanções e sim a obtenção das metas, pautas e finalidades que o Legislador elegeu como relevantes alcançar. Para atingimento destas finalidades primaciais pode lançar mão, dentre outros instrumentos, do poder de sancionar”.
Estes atos de concertação administrativa tem caráter negocial. Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Rafael Véras de Freitas afirmam que:
Trata-se de acordo substitutivo: atos administrativos complexos, por meio dos quais a Administração Pública, pautada pelo princípio da consensualidade, flexibiliza sua conduta imperativa e celebra com o administrado um acordo, que tem por objeto substituir, em determinada relação administrativa, uma conduta, primariamente exigível, por outra secundariamente negociável.
A leitura dos autores supracitados destaca que o tema não é pacífico e há a possibilidade de se sustentar a juridicidade e a antijuridicidade do acordo de leniência. Entretanto, parece tranquilo afirmar que a consensualidade tem assento constitucional; portanto, sobreleva incorreção a afirmação de que a adoção de mecanismo de consensualidade depende da criação legislativa, mas, tão somente, necessita de regulamentação, pois é norma de eficácia limitada. Nesse sentido, importante o escólio de Egon Bockmann Moreira e de Andreia Cristina Bagatin:
A questão que se coloca, então, é a de se saber até que ponto a Administração Pública pode negociar o exercício do “poder de polícia” (i.e., a competência administrativa de fiscalização e aplicação de sanções). Em outras palavras, quais são os limites da (in)disponibilidade no Direito Administrativo Ordenador.
Portanto, ainda que se fale em consensualidade em matéria de acordo substitutivo de sanção administrativa, da sua importante contribuição para a dinamização da ação pública, não se podem perder de vista as limitações impostas à atividade de administração pública pelo regime jurídico administrativo.
O exemplo do acordo de leniência, previsto nos art. 16 e 17 da Lei Anticorrupção, é marcante para a demonstração de que os acordos substitutivos de sanção administrativas servem como instrumentos de defesa dos princípios da administração pública, como: legalidade, legitimidade, probidade, dever de honestidade do gestor. Ainda, e não menos importante, serve como mecanismo de combate consensual à corrupção, e exerce controle dialógico-repressivo de atos ilícitos. Dialógico porque advém da consensualidade; repressivo por demonstrar ao infrator que novos ilícitos não serão tolerados, novos acordos estarão proibidos (num dado período) e que todos os incidentes em ilícitos saberão que aquele comportamento reprovável será punido, mais cedo ou mais tarde, numa clara postura ostensiva de combate aos desvios privados.
O terceiro exemplo a ser abordado é o da relação entre consensualidade e concorrência, com recorte especial para o PMI (Procedimento de Manifestação de Interesse), face à instauração legislativa do diálogo entre Poder Público e particular durante o planejamento da licitação.
A Constituição da República de 1988 dispõe, expressamente, sobre o princípio da concorrência em seu art. 37, inc. XXI: “serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”. Por ser uma norma imediatamente finalística, determina a “realização de um fim juridicamente relevante” , qual seja, a isonomia entre interessados em contratar com o Poder Público.
Desse modo, e de maneira simples, deve-se ter bastante claro que a licitação, procedimento prévio à (e legitimador da) contratação pública adotado pela Constituição, estrutura-se “ao influxo da finalidade cogente” constitucional regulamentada, por sua vez, pela LGL (Lei Geral de Licitações - Lei 8.666/93).
A supracitada LGL foi elaborada com o intuito de regulamentar o inc. XXI, do art. 37, da CR/88 e concretizar um arcabouço de normas gerais em matéria de contratação pública por meio de regras anticoncorrenciais , do “dirigismo pela licitação”.
Carlos Ari Sundfeld precisa três movimentos presentes no processo evolutivo da concorrência no Brasil, a qual, durante o tramitar da evolução dos processos de contratação pública, foi relegada ao estado de bola de pingue pongue, recebendo raquetadas multidirecionais por parte dos agentes econômicos interessados em contratar com o Poder Público; são estes: o “movimento de modernização pela licitação”, o “movimento do dirigismo pela licitação” e a “era das licitações eficientes”.
O movimento de modernização pela licitação se instaurou em 1960 durante a unificação da legislação nacional em matéria de licitação, e reforçada em 1980 “com o surgimento da nova lei nacional [Decreto-lei 2300/86] e a inclusão do tema na própria Constituição”. No seio deste movimento, ocorreu o robustecimento dos órgãos de controle do Poder Público (Poder Judiciário, Ministérios Públicos, Tribunais de Contas e Controladorias). O movimento do dirigismo pela licitação se caracterizou pela edição de nova lei geral nacional elaborada com a colaboração do lobby das “empreiteiras emergentes de obras públicas”. Com a finalidade de controlar os ímpetos corruptivos dos agentes econômicos, os órgão de controle restringiram demasiadamente móvel do administrador público e, consequentemente, reduziram o espaço decisório e a capacidade de resolver os problemas da coletividade. Problemas para celebrar e gerir contratos surgiram em demasia. Por fim, a era das licitações eficientes se iniciou no século XXI, com a edição da Lei do Pregão (Lei 10.520/02), com a Lei do Regime Diferenciado de Contratações (Lei 12.462/2011), entre outras. Essencial conhecer esses três movimentos para sesaberque o Brasil está em transição do segundo ao terceiro – a era das licitações eficientes.
O mercado de contratações públicas demanda a substancialização da concorrência; pensar e elaborar os critérios objetivos que servirão à contratação da proposta mais vantajosa para a administração pública sob a luz da regra constitucional pró-concorrência, propiciando uma saudável disputa de preços entre os concorrentes.
Para tanto, as licitações precisam ser eficientes e, consequentemente, necessitam de planejamento para atingir esse objetivo; planejar é princípio fundamental da Administração Federal, previsto no art. 6º, inc. I, do Decreto-lei 200/67.
Antes da divulgação do edital ao público, existe uma fase preparatória prevista na licitação. Nesta, o Poder Público planeja a execução da licitação e do contrato. Segundo Mário Saadi, “Em suma, a licitação não se inicia com a divulgação do edital e tampouco o ato convocatório surge do nada. É na etapa interna que ela é estruturada. É nela em que ocorre, em verdade, o planejamento da licitação”.
Fica claro que uma licitação eficiente concretizará o princípio da concorrência; quer dizer, o planejamento do certame realizado na fase interna da licitação, principalmente, oportunizará um maior número de concorrentes, quiçá a totalidade dos interessados.
As dificuldades enfrentadas cotidianamente pelo Poder Público brasileiro, principalmente em âmbito municipal, para preparar as licitações com vistas à contratação mais vantajosa para a administração pública conduziram os estudiosos e o legislador a pensar em instrumentos, mecanismos, que propiciem a colaboração do particular detentor de conhecimento técnico especializado, em clara postura estatal dialógica, horizontalizada.
Segundo Guilherme F. Dias Reisdorfer,
A necessidade administrativa de obter subsídios mais amplos tem propiciado o surgimento de práticas pelas quais se promove, antes mesmo da concepção final do empreendimento, um diálogo prévio com o mercado sobre aspectos relacionados à futura contratação. Nesse sentido, pode-se mencionar desde a figura do road show, que envolve a divulgação e discussão de soluções concebidas pelo Poder Público previamente à licitação, até as técnicas que admitem e fomentam a manifestação de interesse de particulares em conceber e apresentar projetos de interesse público.
O PMI é uma criação legislativa e os autores afirmam que sua existência se extrai de interpretação do art. 21, da Lei 8.987/95, e 31, da Lei 9.074/95, ou seja, utilizável para as contratações ou permissões de serviços públicos. Desse modo, sua adoção se restringe a algumas hipóteses, mas serve como um bom exemplo da consensualidade presente no planejamento da contratação pública.
O Estado do Paraná objetivou oportunizar à iniciativa privada a prerrogativa de instaurar um procedimento administrativo para se analisar “projetos, estudos, levantamentos ou investigações que subsidiem modelagem de parceiras público-privadas, solicitando a sua inclusão no Programa Paraná Parcerias”, nos termos da Lei Estadual 17.046/2012. O Decreto Estadual 6.823/2012, regulamentador da lei supracitada, conceitua o PMI provocado como “aquele iniciado a partir de provocação do particular interessado, iniciado mediante protocolo (...)”, em seu § ún., do art. 2º.
Segundo Guilherme F. Dias Reisdrofer, não existe qualquer impedimento à iniciativa privada apresentar projetos de interesses públicos. “Ao contrário, vivemos em um contexto que revela um “Estado ativador”, que, a partir de certas técnicas e procedimentos, busca incentivar o envolvimento da iniciativa privada com projetos de interesse público”. Com maior dedicação ao planejamento, Mário Saadi destaca que:
Há verdadeiro processo de tomada de decisão administrativa para a outorga da concessão. É nesta etapa interna da licitação que a Administração Pública realiza o seuplanejamento. Existe, portanto, uma sequência de decisões administrativas, logicamente encadeadas entre si que vão desde a realização de todos os estudos que embasam a outorga, passando pelo lançamento do edital e, finalmente, pela adjudicação do objeto para que a concessão seja realizada.
Os estudos que embasam a concessão podem ser elaborados diretamente pelo Poder Público, por meio de seu próprio quadro de servidores, ou por meio da contratação de consultores para o desenvolvimento dos estudos que embasarão a futura licitação da concessão. Assim, o Poder Público necessita alocar recursos escassospara levar a cabo tanto a identificação de uma necessidade pública a ser satisfeita e a forma de sua efetiva execução.
Em qualquer das hipóteses acima, a Administração pode se ver em meio a uma série de entraves, os quais podem dificultar a realização das necessárias licitações. Apenas a título de exemplo, há que se identificar pessoal técnico especializado apto para desenvolver, diretamente, tais estudos ou, no segundo caso, será necessário existir empenhos orçamentários para a contratação de empresas ou entes especializados para carrear os projetos.
Com o objetivo de contornar essas dificuldades ou, pelo menos, minimizar os seus impactos, um instituto tem sido utilizado pelos diversos órgãos e entes públicos a fim de obter as informações relativas à viabilidade da concessão dos mais diversos empreendimentos públicos, especialmente de PPPs: o PMI.
Bernardo Strobel Guimarães também percebe a mudança paradigmática que o PMI acarreta às contratações pública ao reconhecer que:
Visando a superar esse contexto é que a legislação relativa a projetos de concessão criou regras distintas das previstas para as contratações públicas ordinárias que permitem a instituição de PMIs. Começa-se a perceber a necessidade de criar mecanismos institucionais em que haja o diálogo entre Administração e mercado.
Há necessidade de se combater o bom combate em defesa de políticas estatais pró-concorrenciais e, portanto, opostas ao dirigismo pela licitação. No Brasil, há claras manifestações, legislativas e doutrinarias, favoráveis a ampliação do diálogo público-privado, pois tal é exigência da consensualidade constitucional. Inaceitável e reprovável o agir administrativo autoritário, aquele que quer impor ao particular todos os ônus acarretados pelas más escolhas públicas; o mesmo deve ocorrer com o vaidoso administrador público que não admite necessitar do auxílio do mercado especializado no escopo da futura contratação e, com isso, impõe igualmente os ônus de seu fracasso sobre os particulares.
CONCLUSÃO
O desenvolvimento foca na pessoa humana, nos valores que informam a ordem econômica e social das constituições. O Estado regulador, que substituiu o Provedor/Interventor, precisa do particular para bem atender aos interesses públicos.
Surge o consenso como base do paradigma “legitimidade”.
Analisando-se o arcabouço jurídico brasileiro, constatou-se que a consensualidade é uma marca notória comportamental do Poder Público, verdadeira regra de conduta, da qual jamais poderá se distanciar o gestor.
Encontrou-se três marcantes exemplos de mecanismos de atuação consensual neste arcabouço: o fomento, o acordo substitutivo de sanção administrativa e o PMI (procedimento de manifestação de interesse).
Todos os três demonstram que o agir estatal brasileiro está marcado pela consensualidade e, da mesma forma, está preocupado em concretizar, substancialmente, os direitos e garantias fundamentais envolvidos nas atividades de fomento e nas contratações públicas, e no combate à corrupção e defesa da probidade, honestidade, legalidade, legitimidade e eficiência administrativa.
Curitiba, 21 de dezembro de 2015.
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1 Mestrando em Direito pela UNINTER. Integrante do Grupo de Pesquisa “Processo e Efetividade da Tutela Juridsicional” vinculado ao Mestrado da UNINTER Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Graduado em Direito pela UNICURITIBA, onde é professor convidado na Pós-Graduação. Professor convidado na Pós-Graduação da UNIBRASIL. Vice-Presidente da Associação Paranaense de Direito e Economia – ADEPAR.
2 Alexandre Santos Aragão afirma que “o Estado, para explorar, não só atividades econômicas stricto sensu, como também serviços públicos que passaram a necessitar de uma infraestrutura industrial complexa e em rede (telecomunicações, energia, gás canalizado, etc. – serviços públicos industriais ou comerciais), passou a adotar mecanismos de Direito Privado (sociedades de economia mista e empresas públicas), excluindo as referidas atividades o máximo possível do regime de Direito Público, quebrando, definitivamente, o critério formal pelo qual serviço público seria apenas a atividade regida pelo Direito Público. ARAGÃO, Alexandre Santos. O serviço público e suas crises. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, n. 46, ano 9, nov./dez. de 2007.
Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=51132, Acesso em: 14 de agosto de 2014.
3 ESTORNINHO, Maria João. Fuga para o Direito Privado – contributo para o estudo da atividade de Direito Privado da Administração Pública. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2009. p. 122.
4 ESTORNINHO, Maria João. Fuga para o Direito Privado – contributo para o estudo da atividade de Direito Privado da Administração Pública. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2009. p. 224.
5 Fernando Paulo da Silva Maciel Filho e Daniel Ferreira afirmaram: “E se estamos a falar de ‘vontade estatal’, é absolutamente certo que todas as medidas dela decorrentes somente podem estar atreladas à efetivação do bem comum e a concretização de interesses públicos, os quais não podem se esquivar do grande ideal de promover uma sociedade mais justa, fraterna, solidária e feliz”. FERREIRA, Daniel ; MACIEL FILHO, Fernando. P. S. . O trabalho dos discriminados estimulado pelas licitações e pelos contratos administrativos. REVISTA JURÍDICA, v. 1, p. 314-315, 2013.
6 Ao criticar a centralidade do princípio da supremacia do interesse público na concepção de regime de direito público, o autor afirma que: “uma norma de prevalência apriorística não esclarece a questão mais importante da dicotomia público/privado ou coletivo/individual: qual a justa medida da cedência recíproca que deve existir entre interesses individuais e interesses coletivos em um Estado democrático de direito?O reconhecimento do sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição e a estrutura pluralista e maleável dos princípios constitucionais inviabiliza a determinação a priori de uma regra de supremacia absoluta dos interesses coletivos sobre os interesses individuais ou dos interesses públicos sobre privados. A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público, aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais (e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade), impõe à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 31.
7 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 36.
8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2008.p. 38
9 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: 2007.p. 41. Em sentido contrário, sustentando a peculiaridade da natureza contratual do ato administrativo consensual, Alexandre Santos Aragão sustenta: “LUCIANO PAREJO ALFONSO, em brilhante estudo fundamental na matéria, observa que a peculiaridade do ato administrativo consensual está em ser um exercício da atividade administrativa com relevância jurídica imediata da qual participam terceiros. O objeto do ato é a própria atividade administrativa, tal como configurada constitucionalmente, ou seja, consiste justamente na execução da lei e, portanto, na determinação do que seja o Direito no caso. (...) A conseqüência disto é a essencial aplicabilidade aqui do regime da atividade unilateral, com as modulações que impõe a referida natureza contratual do ato administrativo consensual”. ARAGÃO, Alexandre Santos. O marco regulatório dos serviços públicos. Revista dos Tribunais, vol. 843, p. 38, jan/2006, São Paulo: RT, 2006.
10 Os atos ilícitos praticados por essas empresas poderão ser objeto de acordo de leniência, como já manifestaram suas opiniões o ex-Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, e o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/levy-e-lula-apoiam-proposta-de-acordo-com-empresas-da-lava-jato. Acesso em 05 out. 2015.
11 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: 2007. p. 45. Visionário, o autor vaticina: “É inegável que o fomento público, conduzido com liberdade de opção, tem elevado alcance pedagógico e integrador, podendo ser considerado, para um futuro ainda longínquo, a atividade mais importante e mais nobre do Estado”. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: 2007.p. 45.
12 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 516.
13 MELLO, Celia Cunha. O fomento da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 36.
14 Aline Koladicz acrescenta que o particular é livre para aderir mas, após isso, “obriga-se a atender todas as condições impostas, ficando inteiramente vinculado aos fins públicos prentendidos”.KOLADICZ, Aline Cristina. A atividade empresarial socioambientalmente responsável e sustentável pela via do fomento estatal. (Dissertação). Centro Universitário Unicuritiba: 2009. p. 99.
15 DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 12. ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2009.p. 977.
16 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: 2007.p. 43.
17 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da.Em busca do acto administrativo perdido. 1. reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p. 466.
18 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da.Em busca do acto administrativo perdido. 1. reimp. Coimbra: Almedina, 2003.p. 466.
19 RIVERO, Jean. Direito administrativo. trad. por Doutor Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1982. p. 34. Tradução do original em francês publicado em 1975.
20 FONT Y LLOVET, Tomás. Desarrolloreciente de los instrumentos de laadministración consensual enEspaña. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 365.
21 FONT Y LLOVET, Tomás. Desarrolloreciente de los instrumentos de laadministración consensual enEspaña. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 365-366.
22 FONT Y LLOVET, Tomás. Desarrolloreciente de los instrumentos de laadministración consensual enEspaña. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 379.
23 SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Acordos substitutivos nas sanções regulatórias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 9, n. 34, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=73323>. Acesso em: 2 dez. 2014.
24 CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Termo de compromisso no processo administrativo sancionador do Banco Central: possibilidades e limites. In: MEDINA OSÓRIO, Fábio (Coord). Direito sancionador: sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 283-284.
25 CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Termo de compromisso no processo administrativo sancionador do Banco Central: possibilidades e limites. In: MEDINA OSÓRIO, Fábio (Coord). Direito sancionador: sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 283-284.
26 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 333.
27 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988.Belo Horizonte: Fórum, 2009.p. 336-338.
28 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988.Belo Horizonte: Fórum, 2009.p. 336-338.
29 ARAGÃO, Alexandre Santos. O marco regulatório dos serviços públicos. Revista dos Tribunais, vol. 843, p. 38, jan/2006, São Paulo: RT, 2006.
30 . MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A Juridicidade da Lei Anticorrupção – reflexões e interpretações prospectivas.Fórum Administrativo, v. 156, p. 9-20, 2014.
31 . MOREIRA, EgonBockmann; BAGATIN, Andreia Cristina. Lei Anticorrupção e quarto de seus principais temas: responsabilidade objetiva, desconsideração societária, acordos de leniência e regulamentos administrativos. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 55-84, jul./set. 2014.
32 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 71.
33 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: RT, 1987.
34 SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o princípio da concorrência. In: _____ (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: SBPD/Malheiros, 2013. p. 16.
35 SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o princípio da concorrência. In: _____ (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: SBPD/Malheiros, 2013. p. 29.
36 SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o princípio da concorrência. In: _____ (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: SBPD/Malheiros, 2013. p. 28-29.
37 SUNDFELD, Carlos Ari. Contratações públicas e o princípio da concorrência. In: _____ (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: SBPD/Malheiros, 2013. p. 28-30.
38 SAADI, Mário. O planejamento da concessão e o procedimento de manifestação de interesse: fundamentos legais, aplicação e desdobramentos. Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, jan./jun. 2014.
Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=113188>. Acesso em: 21 dez. 2015.
39 REISDORFER, Guilherme F. Dias. Soluções contratuais público-privadas: os procedimentos de manifestação de interesse (PMI) e as propostas não solicitadas (PNS). In: JUSTEN FILHO, Marçal; SCHWIND, Rafael Wallbach. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da lei 11.079/2004. São Paulo: RT, 2015. p. 187.
40 REISDORFER, Guilherme F. Dias. Soluções contratuais público-privadas: os procedimentos de manifestação de interesse (PMI) e as propostas não solicitadas (PNS). In: JUSTEN FILHO, Marçal; SCHWIND, Rafael Wallbach. Parcerias público-privadas: reflexões sobre os 10 anos da lei 11.079/2004. São Paulo: RT, 2015. p. 189-190.
41 SAADI, Mário. O planejamento da concessão e o procedimento de manifestação de interesse: fundamentos legais, aplicação e desdobramentos. Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, jan./jun. 2014.
Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=113188>. Acesso em: 21 dez. 2015.
42 GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Proposta de Manifestação de Interesse (PMI) – Riscos públicos e riscos privados. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 4, n. 6, set. 2014/fev. 2015.
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Por Phillip Gil França - 26/02/2017
25/03/2014 SEGUNDA TURMA A G .REG. NO RECURSO ORD. E M MANDADO DE SEGURANÇA 28.517 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO:
E M E N T A: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (INCISOS II E III DO ART. 88 DA LEI Nº 8.666/1993) – ATO DO MINISTRO DE ESTADO DO CONTROLE E DA TRANSPARÊNCIA – PROCEDIMENTO DE CARÁTER ADMINISTRATIVO INSTAURADO PERANTE A CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO – SITUAÇÃO DE CONFLITUOSIDADE EXISTENTE ENTRE OS INTERESSES DO ESTADO E OS DO PARTICULAR – NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELO PODER PÚBLICO, DA FÓRMULA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW” – PRERROGATIVAS QUE COMPÕEM A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO – O DIREITO À PROVA COMO UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DESSA GARANTIA CONSTITUCIONAL – PRECEDENTES – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO . - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o “due process of law”, nele reconhecendo uma insuprimível garantia , que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes.
- RMS 28517 A GR / DF - Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do “due process of law” (CF, art. 5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado –, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV). - Abrangência da cláusula constitucional do “due process of law”, que compreende, dentre as diversas prerrogativas de ordem jurídica que a compõem, o direito à prova . - O fato de o Poder Público considerar suficientes os elementos de informação produzidos no procedimento administrativo não legitima nem autoriza a adoção, pelo órgão estatal competente, de medidas que, tomadas em detrimento daquele que sofre a persecução administrativa, culminem por frustrar a possibilidade de o próprio interessado produzir as provas que repute indispensáveis à demonstração de suas alegações e que entenda essenciais à condução de sua defesa. - Mostra-se claramente lesiva à cláusula constitucional do “due process” a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova, que, por compor o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, deve ter o seu exercício plenamente respeitado pelas autoridades e agentes administrativos, que não podem impedir que o administrado produza os elementos de informação por ele considerados imprescindíveis e que sejam eventualmente capazes, até mesmo, de infirmar a pretensão punitiva da Pública Administração . Doutrina. Jurisprudência .
A decisão do STF em exame trata sobre primordiais temas do Direito Administrativo, quais sejam: ato administrativo, controle, transparência administrativa, supremacia (preponderância) do interesse público sobre o privado e devido processo legal administrativo.
Pretende-se, então, analisar cada tema aplicado ao julgado destacado para, ao final, traçar algumas considerações críticas acerca do conteúdo e da perspectiva consequencialista do respectivo acordão.
Primeiramente, o referido julgado destaca o ´ato do ministro de Estado do controle da transparência administrativa´. Sobre o controle da Administração Pública é relevante destacar o que segue.
Controle da Administração Pública é a força aplicada ao maquinário administrativo estatal com o objetivo de impedir sua atuação fora dos limites do sistema legal institucionalizado, contrariando os valores que conformam o direito. É, basicamente, a atividade que determina como a Administração deve se portar para cumprir sua missão constitucional.
O controle da Administração Pública, por meio da aplicação do due process of law no processo administrativo, é efetivo meio de proteção do cidadão frente ao Estado, considerando que esse titular (cidadão) do poder propulsor da máquina pública – gerenciado por aquele detentor desse poder (Estado) – estará na condição de hipossuficiência perante a ordem estatal, justificando, assim, o vasto rol de instrumentos garantidores do seu desenvolvimento individual e intersubjetivo. Assim, imperioso se faz a manutenção da constante busca dos fatores de eficiência, transparência, desburocratização e democratização da estrutura estatal e da atividade pública que exerce.
Vale destacar que a Administração Pública deve funcionar de forma diáfana e, para tanto, é essencial a existência de sistemas de controle dos processos administrativos legitimamente constituídos que atuem harmonicamente de maneira a vigiar, guiar e corrigir as condutas do Poder Público.
Essencialmente, todos os entes administrativos estão adstritos a regras estreitamente dirigidas e, para seu estrito cumprimento, encontra-se imprescindível o estabelecimento de meios procedimentais viáveis de verificação e revisão de sua atuação.
Assim definido, a partir da referência acerca do ato administrativo no julgado questão, mister se faz o estabelecimento de algumas premissas sobre o tema.
Ato administrativo é a atuação jurídica (comissiva ou omissa), unilateral e concreta, exteriorizada pela Administração Pública, ou por aqueles legalmente legitimados para tanto, advinda do seu exercício de função administrativa do Estado. Trata-se de manifestação do maquinário público para que se façam valer, para que se justifiquem, para que se sustentem a escolha e a confiança da sociedade em um regime estabelecido com vistas a melhorar sua vida incessantemente.
A premissa aqui adotada de ato administrativo é indivorciável da ampla capacidade de seu controle pelo Estado-juiz. Ato administrativo é ato viabilizador dos valores concebidos no art. 3.º da Constituição, inclusive quando consubstanciam o processo administrativo. Apresenta-se como promotor fundamental dos objetivos da República compreendidos na ideia de desenvolvimento e bem comum. Isto é, ato administrativo invoca o Estado como ente legitimamente escolhido para proporcionar, permanentemente, um amanhã melhor para os titulares do poder originário que o criou.
Acerca da transparência administrativa, com destaque àquela vinculada ao processo administrativo, importa sublinhar que, diretamente ligada à noção de publicidade, a atuação transparente da Administração Pública deve ser preocupação primordial de seus gestores e daqueles que exercem o controle (interno e externo) sobre eles – tal como evidenciado no julgado do STJ em epígrafe.
De igual maneira, a Administração precisa conceder elementos para a efetivação de seu obrigatório – e constitucional – controle por entes externos por meio de promoção da maior transparência possível de suas atividades. Ideia essa importante para conceder previsibilidade, estabilidade, segurança e eficiência do atuar administrativo – pontos relevantes para promoção do esperado responsável desenvolvimento estatal.
Torna-se relevante, neste momento, a referência à pertinente expressão do STJ sobre a matéria em destaque: “A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, dentre outros, a soberania e a cidadania, cujo poder, emanado do povo, é por ele exercido de forma direta ou indireta (representação). A consagração da soberania popular ocorre, primordialmente, por meio do controle sobre os atos da Administração Pública (...). O acesso a documentos e informações de interesse particular, coletivo ou geral, salvo aqueles cujo sigilo seja necessário à segurança da sociedade e do Estado, é permitido constitucionalmente a todos (art. 5.º, XXXIII, da CF/1988), em observância aos Princípios da Publicidade, da Legalidade e da Moralidade, que norteiam a Administração Pública” (RMS 32.740/RJ, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1.ª T., j. 01.03.2011, DJe 17.03.2011).
Na mesma toada, assim assenta o STF sobre o tema: “O princípio da publicidade administrativa, encampado no art. 37, caput, da CF, significaria o dever estatal de divulgação de atos públicos. A gestão da coisa pública deve ser realizada com o máximo de transparência, excetuadas hipóteses constitucionalmente previstas, cujo sigilo fosse imprescindível à segurança do Estado e da sociedade (CF, art. 5.º, XXXIII). Frisa-se que todos têm o direito a receber, dos órgãos públicos, informações de interesse particular ou geral, tendo em vista a efetivação da cidadania, no que lhes competiria acompanhar criticamente os atos de poder. O modo público de gerir a máquina estatal seria elemento conceitual da República” (SS 3.902-AgR-segundo, rel. Min. Ayres Britto, j. 09.06.2011, Informativo 630).
Diante do exposto, não há como se imaginar o agir público sem a possibilidade de controle correspondente proveniente do adequado atendimento do princípio constitucional da publicidade da Administração Pública. Demonstrar o que fez, como fez e para que se fez é dever básico de um transparente sistema próprio de responsabilização sobre tudo o que é feito em nome de um dever constitucional comum de engrenar a estrutura estatal em nome do desenvolvimento do cidadão.
A ampla transparência nos processos administrativos é imprescindível para a manutenção de um regime jurídico de participação e viabilização do cidadão no Estado voltado ao atendimento dos envolvidos em sua realização como ser humano digno. Logo, a regra da transparência jamais pode servir como exceção da proteção de interesses individuais de restrição da informação.
Já sobre a ´situação de conflituosidade existente entre os interesses do Estado e os do particular´ também indicada no referido acordão, vale lembrar que para bem atender aos seus deveres constitucionais, à Administração Pública é conferida determinadas prerrogativas legais que a deixa em posição diferenciada diante dos particulares.
Isso ocorre de maneira a estabelecer condições para que o Poder Público materialize os valores fundamentais que conformam a ideia de ser humano digno, devidamente estabelecido em um sinérgico sistema de direitos e deveres com a finalidade maior de desenvolvimento intersubjetivo dos envolvidos no pacto constitucional constituído em 1988.
Tais prerrogativas legais determinam a posição de supremacia do interesse público – sob a dimensão de obrigatória realização pelo Estado – sobre o interesse particular, manifestada por meio dos poderes administrativos. Em outras palavras, compreende-se que o interesse público, em regra, deve preponderar ante o interesse particular, quando assim confrontado, por representar aquele o resultado dos interesses envolvidos em determinada atividade. Para tanto, deve conferir legitimidade ao caminho escolhido como o melhor, mediante representação racional de uma interpretação da atuação administrativa conforme os valores constitucionais vigentes.
Obviamente, o exercício de tais poderes administrativos ocorre mediante alguns critérios, inclusive, de proporcionalidade administrativa. Em outras palavras, a intromissão estatal na realidade de seus administrados apenas representará a legítima vontade do Estado caso a concretização dos poderes característicos da Administração Pública não se apresente de forma excessiva ou insuficiente. Isto porque, o excesso, ou a insuficiência, podem inviabilizar o esperado desenvolvimento intersubjetivo almejado por meio da realização do interesse público concretizável, decorrente da adequada atuação administrativa estatal, correspondente à escolha pública efetuada.
Nesse contexto, interesse público pode ser compreendido como produto das forças de uma dada sociedade (jurídicas, políticas, econômicas, religiosas, dentre outras) concretizadas em um determinado momento e espaço que exprime o melhor valor de desenvolvimento de um maior número possível de pessoas dessa mesma sociedade. Então, alcançar esse produto, tendo em vista as forças de determinada sociedade, é o dever primordial do Estado, conforme o art. 3.º da Constituição Federal.
Vale frisar que o interesse público não é necessariamente o que o Estado diz por si, tampouco a representação dos ´interesses do Estado´. Na verdade, aproxima-se de uma noção mais concreta de interesse público o produto que se extrai do inter-relacionamento das diversas forças que conformam a vida da pessoa humana em dado tempo e lugar. Ou seja, para a compreensão de interesse público, faz-se importante a definição do momento e do espaço que se está a analisar o interesse a ser rotulado.
Isto porque o produto das relações vinculadas ao ser humano que busca definir o interesse comum que precisa ser protegido perante o interesse individual (quando este prejudica o desenvolvimento qualitativo da sociedade que se está a analisar) jamais será o mesmo em momentos e espaços diversos, pois depende das demandas expressadas nessas duas variantes das atividades humanas.
Ou seja, o que o indivíduo precisa neste momento e lugar certamente já não será o mesmo que necessitará amanhã, ou em lugar diverso, fato que abre a moldura determinista de tentativas de conceituação estanque de interesse público e torna este elemento jurídico algo a ser estabelecido como princípio – consubstanciado no dever estatal de concretização do interesse público. E assim é realizado por meio de sua força como dever estatal, pois se apresenta como tarefa obrigatória de efetiva atuação do Estado voltada ao desenvolvimento quantitativo e qualitativo de uma sociedade em determinado momento e lugar.
O interesse público, então, define a priorização dos anseios e das necessidades de uma sociedade a partir de critérios temporais e espaciais, para que as escolhas públicas possam ser tomadas para a concretização de um interesse público determinado, ou determinável, mediante um constitucional procedimento administrativo estabelecido para o alcance deste específico desiderato.
Assim, controlar a determinação de um interesse público, principalmente em um processo administrativo, a partir das escolhas públicas feitas para promover a sua realização, é tarefa primordial do Estado. Para tanto, sublinha-se a importância de uma adequada instrumentalização da atuação jurisdicional estatal para realizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, mediante o alcance da concretização do interesse público e da efetiva contribuição decorrente dessa tarefa no cotidiano dos administrados.
Finalmente, em relação à alegada ´observância, pelo Poder Público, da fórmula constitucional do ´due process of law´, como ´prerrogativas que compõem a garantia constitucional do devido processo´ e do ´direito à prova como uma das projeções concretizadoras dessa garantia constitucional´, vale ressaltar o que se segue.
Logicamente, a determinação constitucional estampada no art. 5º, LIV, da Constituição Federal não é adstrita apenas aos processos judiciais. O processo administrativo também possui o dever de obedecer ao devido processo legal (´due process of law´), pois para se tornar legítimo e válido precisa apontar a ocorrência de contraditório e ampla defesa dos envolvidos no processo no âmbito administrativo.
Entende-se como contraditório a possibilidade de, efetivamente, considerar e questionar os apontamentos realizados contra os interesses dos envolvidos do processo por quem indicado como participe desse processo, pois tal conteúdo deve ser obrigatoriamente considerado na respectiva conclusão do processo administrativo. Contraditar apontamentos contrários aos interesses das partes de um processo administrativo concede a este o selo constitucional de legitimidade necessário para sua racional consonância com os valores do direito.
Para contraditar fatos, eventualmente, contrários aos interesses dos participantes de um processo administrativo, faz-se essencial a possibilidade de se concretizar todos os meios de defesa possíveis. Logicamente, a possibilidade de apresentar prova, e que tal prova seja efetivamente considerada na decisão final, é fato determinante para estabelecer a legitimidade constitucional de qualquer processo administrativo.
Isto é, são requisitos básicos da compreensão de um processo administrativo em conformidade com o valor constitucional estampado no art. 5º LIV, que estabelece o obrigatório atendimento ao due process of law, o pleno exercício de contraditório e ampla defesa. Logicamente, a possibilidade de apresentação, processamento e consideração de prova pela autoridade pública representa atendimento aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e, consequentemente, do devido processo legal.
Destarte, com acerto é indicada a ilegalidade no acordão em destaque. Nesse contexto, chancela-se a expressão do julgado de que ´a declaração de inidoneidade para contratar com a Administração Pública (incs. II e III do art. 88 da lei nº 8.666/1993) só vale se for resultado de um processo legítimo que alcance a conclusão de que o particular não pode mais contratar com a Administração´. Legítimo processo pressupõe oportunidade de ouvir e ser ouvido, considerar documentos e ter documentos considerados como prova apta a defender o direito que entende ser o adequado ao sistema constitucional estabelecido.
O devido processo legal é produto de um sistema vinculado aos valores republicanos democráticos de direito que se apresentam como sólida fundação do Estado Constitucional estabelecido na Carta de 1988. Ou seja, é base de um responsável e responsabilizável sistema jurídico que impõe atos legítimos do Poder Público, principalmente, quando voltados às restrições legais de direitos de partícipes de processo administrativo.
Nesse viés, em conclusão, exalta-se a lúcida afirmação do respectivo acórdão: ´O fato de o Poder Público considerar suficientes os elementos de informação produzidos no procedimento administrativo não legitima nem autoriza a adoção, pelo órgão estatal competente, de medidas que, tomadas em detrimento daquele que sofre a persecução administrativa, culminem por frustrar a possibilidade de o próprio interessado produzir as provas que repute indispensáveis à demonstração de suas alegações e que entenda essenciais à condução de sua defesa´.
De igual forma, ´mostra-se claramente lesiva à cláusula constitucional do “due process” a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova, que, por compor o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, deve ter o seu exercício plenamente respeitado pelas autoridades e agentes administrativos, que não podem impedir que o administrado produza os elementos de informação por ele considerados imprescindíveis e que sejam eventualmente capazes, até mesmo, de infirmar a pretensão punitiva da Pública Administração´.
Por José Laurindo de Souza Netto- 26/02/2017
Quero saudar os amigos e dar as boas-vindas aos alunos do XXXV Curso de Pós-Graduação lato senso em Direito aplicado e XXXV Curso de Preparação à Magistratura da Escola da Magistratura do Paraná, turmas manhã e noite, desejando a todos um profícuo aproveitamento do ano letivo de 2017.
Tenho muito prazer e muita honra de estar aqui. Foi-me atribuído o honroso encargo de falar nesta solenidade de abertura sobre “Os desafios da formação de magistrados na contemporaneidade”.
Eu prefiro falar em pé, porque considero que este é um direito subjetivo da plateia, mas também porque, pelo cansaço das pernas o orador sabe melhor a hora de terminar. Com isto, já adianto que serei breve. Aprendi nas minhas andanças acadêmicas que o discurso em solenidades dever ser curto e bom e ser for curto não precisa nem ser tão bom assim.
Procurei sintetizar minha exposição em seis tópicos. No primeiro vou falar sobre a Escola da Magistratura do Paraná e seu projeto pedagógico. No segundo vou falar sobre a necessária reforma dos poderes de Estado. No terceiro tópico será analisado o novo papel do juiz no mundo contemporâneo. No quarto, os modelos de seleção de magistrados no mundo. No quinto, a formação de magistrados no mundo. No sexto, a formação de magistrados na contemporaneidade e no ultimo vou falar sobre a escola que queremos.
I - A ESCOLA DA MAGISTRATURA
A Escola da Magistratura do Paraná - EMAP foi criada em 17 de junho de 1983, pela Resolução nº 03/83, do Tribunal de Justiça do Paraná, e mediante convênio celebrado em 02 de agosto de 1983 vem sendo administrada em conjunto com a Associação dos Magistrados do Paraná – AMAPAR.
Fundada com o propósito maior de atualização, aperfeiçoamento e especialização de magistrados, objetiva também a preparação de bacharéis em direito para o exercício da magistratura. Promove, ainda, cursos diversos de atualização de servidores da justiça e abre espaço para estudos e debates sobre temas importantes do direito, tudo em prol da melhoria da prestação jurisdicional.
A partir da iniciativa do Des. Alceu Conceição Machado, os responsáveis pela criação e implantação da Escola foram os eminentes juízes (hoje Desembargadores aposentados) Vicente Troiano Neto, Roberto Pacheco Rocha, Accácio Cambi, Newton Álvaro da Luz e outros, como os Desembargadores Ildefonso Marques e Jayme Munhoz Gonçalves, seu primeiro Diretor e João Cid de Macedo Portugal, seu primeiro Supervisor Pedagógico.
Mais tarde, foram Diretores da Escola o Des. Ruy Fernando de Oliveira (1988/1991), o Des. Francisco José Ferreira Muniz e Juiz Edson Ribas Malachini (1992), o Juiz Clayton Reis (1993/1995), o Des. Newton Álvaro da Luz (1996/1999), o Des. Noeval de Quadros (2000/2001), o Juiz Gilberto Ferreira (2002/2003), o Des. Noeval de Quadros (2004/2005), o Des. Accácio Cambi (2006/2007), o Juiz Roberto Portugal Bacellar (2008/2009), o Juiz Fernando Antonio Prazeres (2010/2011), Juiz Joscelito Giovani Cé (2012), Luciano Canto de Albuquerque (2013) e Francisco Cardoso de Oliveira (2014/2015).
A Escola da Magistratura do Paraná foi credenciada como Instituição Superior vinculada ao Sistema Estadual de Ensino, de acordo com o Parecer nº. 296/2001, do Conselho Estadual de Educação e nos termos da Resolução nº. 27/2001, da Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, autorizada a promover cursos de pós-graduação lato sensu em Direito.
A partir de 2008, os Cursos de Formação Inicial e Continuada para Magistrados, para efeito de promoção funcional por merecimento, passaram a ser obrigatoriamente, credenciados junto à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados ENFAM, seguindo as diretrizes inicialmente dispostas pelas Resoluções da ENFAM, que estabeleceram a carga horária, os conteúdos mínimos e a sistemática de avaliação.
Em 2010 recebeu o prêmio “Selo ENFAM de Qualidade de Ensino”. Nestes mais de 30 anos de atividade a Escola da Magistratura adquiriu renome nacional, serviu de modelo para vários Estados e prestou auxílio inestimável para a preparação e aperfeiçoamentos dos magistrados paranaenses. Foi também um lugar de debate e reflexão dos graves problemas do judiciário.
Chegou a este prestígio de que goza, graças a dedicação de seus diretores, professores e servidores. Rendo, pois, minhas homenagens nesta ocasião a todos que fizeram parte desse processo, em nome do ex-diretor aqui presente.
- A METODOLOGIA
Questão de grande relevância e importância na Escola da Magistratura é a metodologia adotada e o projeto pedagógico.
A metodologia consiste no desenvolvimento de atividades teórico-práticas através de aulas, nas quais se estimula o concurso intelectual do aluno, na análise de casos e nos debates, para a aplicação dos seus conhecimentos teóricos.
O projeto pedagógico está centrado na prática judicial, sendo que o objetivo é aproximar o saber jurídico “à realidade social” para desse modo viver a teoria num contexto prospectivo.
Busca-se assim uma formação profissionalizante e institucionalizada através de ações educacionais voltadas para a prática, mediante um planejamento que incorpora e reflete as grandes políticas educacionais de ensino.
A Escola da Magistratura adota em seu projeto de ensino a alternância das técnicas pedagógicas, evitando-se o máximo possível o método expositivo-passivo que possui baixo índice de aprendizado, privilegiando-se assim o método participativo ativo, demonstrativo, interrogativo e experimental (Learning by doing).
No processo de compreensão retemos a média de 10% do que lemos, 20% do que ouvimos e 90% do que fazemos pensando ativamente. Como disse Couture, “Não basta estudar, o Direito se aprende pensando”. É por isso que utilizamos preferencialmente os métodos pedagógicos ativos.
II - A INADEQUAÇÃO DOS PODERES DE ESTADO E A NECESSÁRIA REFORMA
Os três poderes que compõem o aparato governamental do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário estão inadequados para a realidade social e política de nosso tempo.
Foram concebidos no século XVIII para uma realidade diferente, quando se imagina o Estado mínimo, pouco solicitado, mesmo porque só uma pequena parte da população tinha a garantia de seus direitos.
Esse início de novo século, reivindica novas perspectivas sociais e novo parâmetro de convivência humana.
No Brasil essa inadequação tem ficado cada vez mais evidente, tendo em vista as estruturas sociais injustas, a corrupção e a violência cada vez mais galopante, sendo emblemático o alto índice de assassinatos ocorridos nos últimos anos, superando inclusive o número de mortes na Guerra da Síria. É a verdadeira banalização do respeito à vida, num quadro de barbárie institucionalizada.
O modelo napoleônico burocrático do Estado faliu porque não soube atender as necessidades fundamentais do indivíduo e da coletividade. A reforma do Estado tem sido muitas vezes mencionada, mas apenas como expressão retórica.
No poder judiciário as mudanças foram mínimas, com a preocupação apenas com questões processuais, e ainda de modo prejudicial à independência de juízes e tribunais.
A organização, o modo de executar tarefas, a solenidade dos ritos e a mentalidade permanecem as mesmas.
Os tribunais de modo geral, dão excessiva atenção as questões processuais, alongam-se frequentemente no debate de teses acadêmicas sobre o processo, mesmo quando isso é evidentemente desnecessário para a solução das dúvidas e divergências dos direitos que levaram as partes a pedir a intervenção do judiciário.
Essa distorção, que se pode chamar de “Processualismo” é um vício que afeta gravemente a mentalidade jurídica brasileira.
Eugenio Raul Zaffaroni jurista e magistrado argentino, ex-ministro da Suprema Corte Argentina e juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no livro “Dimensión Política de um poder judiciário democrático”, a propósito diz que: “A ciência jurídica latino-americana profunda temas de direito processual a níveis que igualam e superam as dos países centrais (europeus), mas se omitem de modo quase absoluto quanto à estrutura institucional do poder que tem por função precisamente, a aplicação desses conhecimentos”.
Basta ver as editoras jurídicas brasileira editam muito mais livros de processo do que de teoria política.
A crise do Estado e do poder judiciário possuem três dimensões. A primeira é a dimensão procedimental da crise, quando se busca a simplificação, as soluções alternativas de conflitos e a diminuição de prazos. A segunda dimensão da crise é aquela estrutural, quando se busca condições materiais e tecnológicas por exemplo. E a terceira dimensão da crise é aquela institucional / humana, aquela de maior relevância e complexidade, pois busca uma melhor qualificação dos juízes e servidores para que possam dirimir os conflitos sociais de forma eficiente e adequada.
Outro ponto fundamental que deve ser objeto de reforma é a democratização do poder judiciário, há uma estreita ligação entre democracia e judiciário. Isso implica em duas exigências fundamentais: A mudança de atitude do poder judiciário em relação às interpelações postas pela sociedade e a mudança interna do poder judiciário em sua organização e seus métodos.
É indispensável essa reforma de mentalidade para que o sistema judiciário não seja como denunciou Marcel Camus “uma forma legal de promover injustiças”.
III - O NOVO PAPEL DO JUIZ NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Se no Estado liberal nós tínhamos a proeminência do poder legislativo, e no Estado Social a proeminência do poder executivo, no Estado constitucional de Direito a proeminência é do poder Judiciário.
A atuação do poder jurisdicional tem assumido relevância nunca antes vista, sendo que as características do tempo que vivemos vêm modificando substancialmente o papel do direito, sobretudo na perspectiva da sua aplicação judiciária.
Nos últimos cinquenta anos ocorreu uma intensa evolução e profunda transformação no poder jurisdicional. É um fenômeno onipresente, sem fronteiras e nacionalidade, provavelmente conexo à evolução das relações entre o estado e a sociedade.
A importância crescente da justiça, com a explosão dos pedidos, faz com que ela se transforme numa parte cotidiana do processo político. Nunca se fez tanto apelo à justiça e nunca o acesso esteve tão aberto, não parando de se alargar as funções que a democracia confia à justiça, parecendo ser ilimitadas.
À medida que o Poder Público se torna mais intenso, a justiça descobre, sob a pressão de uma demanda crescente, novos domínios. Não há hoje nenhuma intervenção pública que possa ser subtraída da apreciação do juiz. Onde existe uma lei também existirá um juiz para interpretar e precisar os seus efeitos.
O aumento da litigiosidade e a explosão de pedidos, tem chegado a um patamar elevadíssimo, temos um processo para cada pessoa, são cem milhões de processo, levando em consideração autor e réu. De acordo com dados apurados, para cada cem mil habitantes, o Brasil tem 311 advogados, 10 juízes, 7 promotores e 3 defensores.
O Brasil tem mais faculdades de Direito do que todos os países no mundo juntos. Existem 1.240 cursos para a formação de advogados em território nacional, enquanto no resto do planeta a soma chega a 1.100 universidades.
Hodiernamente, o juiz tende assim a se tornar uma espécie de maestro de orquestra, onde sua função consiste não só em resolver os litígios, mas também encontrar soluções aos problemas que as outras instituições não puderam resolver. Resolver não só a lide, mas também o conflito sociológico subjacente.
Além de uma função técnica científica, aos juízes se exige uma função axiológica, com a valoração das ideias que iluminam o direito. A sociedade espera da justiça o dever de defender a liberdade, aplacar as tensões sociais, combater a corrupção, a violência, de tutelar o meio ambiente, conter as tendências incoercíveis ao abuso do poder, de impor penas, de atenuar as diferenças entre os indivíduos, devendo ainda cumprir os objetivos da república estabelecidos no Art. 3° da Constituição Federal: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
As responsabilidades do juiz revelam-se cada vez mais acrescidas, desencadeando o fenômeno da jurisdicionalização e a crescente influência da justiça na vida cotidiana.
Concomitantemente à essa forte evolução, a concepção clássica do juiz, executor da vontade do legislador vem sendo abandonada. Percebe-se claramente nessa trajetória que a estrutura burocrática da magistratura começa a apresentar fissuras cada vez mais profundas. O papel de mero aplicador da lei vem sendo desmantelado paulatinamente pelo realismo jurídico, que ilumina a aproximação criativa do juiz à elaboração do direito.
O julgamento é uma verdadeira norma jurídica, ainda que limitada às partes que estão obrigadas a cumprir. Nesse sentido a função judiciária revela sempre uma versão política. Por isso que o controle da sociedade sobre as razões que fundamentam a decisão judiciária é cada vez mais amplo, colocando em xeque o preparo do juiz.
O aumento de poder do juiz, traz automaticamente o aumento das expectativas e das exigências da sociedade. E também o aumento de responsabilidade, transparência e independência.
O alargamento das atribuições dos juízes tem sido apontado como sinal de “crise da jurisdição”, nascendo a indagação se a magistratura está preparada para as novas responsabilidades que começam a pesar sobre ela.
Por isso a urgência da formação institucionalizada, com novos paradigmas de aquisição de conhecimentos, direcionados a ampliação da capacidade de pensar numa visão integrada e transdisciplinar.
IV - OS MODELOS DE SELEÇÃO DE MAGISTRADOS
Os modelos de seleção de magistrados na história e no mundo possuem peculiaridades ligadas a tradição jurídica da sociedade, do país no seu tempo. Existem no mundo vários métodos de seleção de juízes, a história demonstra isto no decorrer dos tempos.
Os métodos para seleção de juízes têm variado muito na história, e ainda hoje se pode verificar que existe uma grande diversidade.
A história da magistratura revela diferentes concepções. A partir da Grécia passando por Roma, foram plantando ideias. Tomando-se como ponto de partida a cidade grega, verifica que o título de “magistrado” era dado a um cidadão que exercesse o poder de comando, no interesse público.
Conforme registra Aristóteles, o magistrado “arké” poderia ser escolhido por eleição ou por sorteio. O cargo poderia ser exercido em caráter temporário ou vitalício. Não era uma profissão.
Na Roma antiga a magistratura foi ganhando maior complexidade, sofrendo influência da expansão territorial. A palavra “magistratus” derivou de magister, significando chefe. Designava a pessoa física que recebia um mandato do povo e agia como seu representante. O processo de escolha era a eleição, pelo prazo de um ano.
No império Romano a magistratura ira sofrer profunda alteração, não se fazendo mais a escolha por eleição. Os magistrados que na República eram representantes do povo, no império, tornaram-se funcionários do imperador.
Na idade média a partir do séc. IX, com o desenvolvimento das corporações e o poder político das ordens religiosas aparecem os tribunais corporativos e eclesiásticos.
No Estado absolutista do séc. XVII, os governantes absolutos utilizaram os serviços dos juízes para a arbitrariedade. As escolhas dos juízes eram feitas diretamente por quem detinha o comando político. Tornando a magistratura poderoso e arbitrária.
O ofício de juiz era considerado um direito de propriedade. Em tal situação a magistratura poderia ser comprada, vendida, transferida por herança ou mesmo alugada. Em 1719, Montesquieu herdou de um tio o cargo de juiz de direito, ficou no cargo por 10 anos, quando finalmente o vendeu por necessitar de dinheiro e por gostar mais de filosofia política.
No Estado Moderno, a magistratura é ainda produto dos tipos de sociedade que existiam no séc. XVIII. A grande polêmica que tem sido travada acerca do processo de seleção é entre indicação por autoridade superior ou a eleição.
Num artigo denominado “procedimentos de selection de magistrados judiciales”, Cézar Azabaqui apresenta uma relação que inclui 32 modelos de seleção de juízes. Na verdade, muitas delas são pequenas variações em torno de um número pequeno de opções.
Os principais tipos de seleção ainda hoje existentes podem ser elencados em seis tipos: eleição popular, livre nomeação pelo executivo, livre nomeação pelo judiciário, nomeação pelo executivo condicionada à proposta de outro poder, nomeação pelo executivo condicionada à aprovação pelo judiciário e concurso público.
Pelos resultados colhidos da experiência, não há dúvida de que na sociedade moderna, o melhor modo de seleção de juízes é o concurso público aberto, e em igualdade de condições a todos os candidatos que preencham os requisitos. O sistema de seleção e recrutamento é tema fundamental no debate sobre qualidade e eficiência dos juízes.
Na maioria dos países de tradição do civil law, o recrutamento por concurso é realizado nas próprias escolas judiciais.
Na França, Portugal e Alemanha nenhum magistrado começa a trabalhar sem que tenha passado por um período de 2 anos na escola judicial.
A França possui a escola judicial considerada a número um do mundo, com uma estrutura gigantesca. Existem três concursos de entrada. O primeiro reservado aos estudantes (230 vagas por ano), o segundo reservado a funcionário públicos (40 vagas) e o terceiro para pessoas com experiência jurídica de 8 anos (15 vagas).
No Brasil o processo de seleção está regrado pela resolução 75/2009 do CNJ, que regulamenta os concursos públicos para ingresso na magistratura e dispõe sobre os aspectos detalhados do recrutamento estabelecendo padronização de critérios para a seleção e procedimentos dos concursos.
Do candidato não se exige mais do que dois requisitos: graduação em direito, com 3 anos de atividade jurídica e aprovação em concurso público, com ênfase apenas na dogmática jurídica e no exercício mnemônico dos dispositivos legais.
Desnecessário dizer que estes requisitos estão muito aquém para que o magistrado possa enfrentar as demandas concretas da profissão.
Pesquisas sobre o perfil do magistrado que ingressa na carreira demonstra a tendência de se recrutar os mais jovens, configurando o fenômeno da juvenilização causada pela democracia de acesso
V - A FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS NA CONTENPORANEIDADE
Um dos maiores desafios que se propõe, hoje, para o Poder Judiciário é selecionar e formar bons magistrados, aptos a solucionar não só a lide processual, aquela que se revela no processo, mas o conflito sociológico, muito mais amplo e nem sempre possível de ser resolvido com a mera aplicação da lei.
A construção e solidificação do Estado Democrático do Direito depende em grande parte da qualificação do juiz. Neste contexto, perfila-se claramente a exigência de um profissionalismo forte, a partir da institucionalização sistemática da seleção, formação e promoção, do magistrado, fundadas em estruturas abertas de espírito não corporativo completamente vinculados aos termos do legislador constitucional.
A legitimidade do poder decorre em boa parte da seleção dos melhores e da capacidade da magistratura para decidir em tempo real e de forma adequada, reclamando profunda consciência ética, competência, segurança, cultura e elevado sentido de alta responsabilidade.
A construção de uma identidade profissional sólida, com a formação profissionalizante institucionalizada que busque uma progressiva maturidade profissional, torna-se imperiosa.
Esse desafio se faz muito mais relevante no momento em que a Constituição Federal, em face da Emenda Constitucional nº 45, atribui ao Poder Judiciário a integral responsabilidade pela seleção, preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados.
A Reforma do Judiciário descreveu de maneira expressa as qualidades do juiz, como aquele capaz de assegurar a todos a razoável duração do processo e de implementar os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (inciso LXXVIII do art. 5º da CF, acrescentado pela Emenda nº 45/2004).
Além disso, elencou os atributos do juiz, como o desempenho, a produtividade, a presteza no exercício da jurisdição, além da frequência e aproveitamento em cursos de aperfeiçoamento (alínea “c” do inciso II do art. 93 da CF, com a nova redação da Emenda nº 45/2004).
Pela primeira vez, a escola da magistratura foi inserida no texto constitucional, denominando-a de Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (art. 105, parágrafo único, inciso I da CF).
A missão vai mais além do que reforçar os mecanismos imparciais de seleção e promoção, sendo a sua principal incumbência a adoção do sistema de formação profissional institucionalizada, com a elaboração de uma teoria de formação de magistrados.
A formação continuada não deve ser vista como uma obrigação, mais do que o aprofundamento das técnicas próprias à função, a confrontação dos elementos teóricos com a realidade das práticas judiciais, deve-se buscar a construção de um magistrado servidor de um direito que se origine na dignidade inviolável do ser humano, da supremacia da ética e dos direitos fundamentais.
O desafio é o de modificar o modelo dogmático da ciência jurídica, buscando um pensamento crítico de direito útil para a reflexão judicial, tentando descobrir quais as possibilidades e quais as formas que a função jurisdicional pode adotar a crítica jurídica para enfrentar os desafios contemporâneos.
Por isso a urgência da formação institucionalizada, com novos paradigmas de aquisição de conhecimentos, direcionados a ampliação da capacidade de pensar numa visão integrada e transdisciplinar.
A implantação de um sistema de formação de magistrados é indispensável para que sejam viáveis as transformações que hoje se reclamam do sistema judiciário.
A criação de um projeto institucional indicando que tipo de juiz se postula para a sociedade irá traduzir os objetivos, os métodos, os cronogramas e os recursos das diferentes ações pedagógicas.
A formação do magistrado constitui-se hoje um dever que ultrapassa a responsabilidade de cada magistrado, para ser também do Poder Judiciário, configurando-se numa exigência ética, num poder-dever indeclinável, face à extrema complexidade das interpelações que a sociedade dos nossos dias lhe coloca.
Não obstante os esforços, o magistrado é ainda um autodidata, formado na experiência, um soltado sem munição, quase um religioso ateu. Não podemos esquecer que a experiência por si só, como diz Pedro Navas “é um farol voltado para trás que clareia e ilumina o passado, mas não projeta o futuro”.
VI - A ESCOLA QUE QUEREMOS
Agora, é tempo de avançar. Temos que consolidar a autonomia financeira das escolas judiciais. Agora, é tempo de um passo à frente. Temos que cumprir os termos da Resolução nº 126 do CNJ e promover o curso preparatório como fase do concurso, conforme facultado pela Resolução nº 75 do CNJ.
Devemos aperfeiçoar o processo de seleção para uma qualidade maior. Se o que se pretende é incluir o curso de formação como uma etapa de concurso na seleção de juízes, assim como já ocorre em outros lugares, os cursistas deverão se submeter a provas de conhecimento para ingresso, como fase de avaliação do candidato.
Este é o melhor caminho, porque permite a avaliação da aptidão para desempenho da função. O concurso público não afere os requisitos concretos para a judicatura. A investidura formal do cargo não significa a detenção de competências necessárias para o exercício da função.
O concurso público não afere os requisitos concretos para a judicatura. A investidura formal do cargo não significa a detenção de competências profissionais necessárias para o exercício da função.
Demandam-se no exercício da função, saberes que não são fornecidos na universidade. É necessário saber relacionar-se intersubjetivamente com as partes, advogados e sociedade. É necessária uma formação humanística, porque só conhecendo os valores culturais da sociedade para qual serve terá legitimidade para atuar.
Ser juiz é muito mais do que a soma das duas condições formais, ser bacharel com 3 anos de atividade jurídica e passar no certame.
É necessário saber, saber fazer e saber ser. Sendo que o saber envolve todo o conhecimento da teoria “dogmática e crítica” do Direito. O saber fazer as práticas profissionais, o conteúdo ocupacional do magistrado nas suas tarefas cotidianas. E o saber ser, diz respeito ao conhecimento das regras deontológicas, pois o juiz da contemporaneidade é sobretudo ético.
Não basta a ciência pura, o saber técnico. É necessário sensibilidade e inteligência emocional. Pois estas são as exigências da sociedade moderna.
A profissão de magistrado é uma profissão de comunicação. A justiça é pouco conhecida e é preciso se comunicar com a mídia, com a sociedade, com as partes, com os advogados.
Por isso, a importância da meta cognição, como falar em público, como administrar emoções, como se comportar diante de uma câmera de emissora de TV, como zelar pela linguagem.
Além disso, é necessário que os juízes participem do debate legislativo, discutindo inicialmente os projetos de lei, estudando as consequências, entrevendo o alcance. Dessa forma os juízes fazem a lei ter eficácia plena. Impedindo aquele velho chavão de que a lei não pegou.
É preciso qualificar os juízes. Aperfeiçoando o homem, melhoramos a instituição. Formando bons juízes teremos um bom judiciário.
Para finalizar gostaria de lembrar a máxima do conhecimento: “Conhece-te a ti mesmo, torna-te consciente de tua ignorância e será sábio”. Sócrates.
Muito obrigado!
Por Sérgio Cruz Arenhart- 25/11/2016
1. AS DECISÕES VINCULANTES NO NOVO CÓDIGO
Um dos mais importantes marcos do novo código de processo civil é, sem dúvida, a imposição de observância de certas decisões judiciais. O instituto, que vem sendo chamado de “precedente vinculante” pela doutrina nacional – apelando à prática corrente do direito anglo-americano – impõe que o Judiciário respeite (a dizer, obedeça) algumas decisões tomadas sob certas circunstâncias, porque elas representariam a orientação “definitiva” do Poder Judiciário sobre determinadas questões, sobretudo de direito.
Assim é que o art. 926, do CPC, estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. A seu turno, o art. 927 impõe ao Judiciário nacional a observância de uma série de decisões tomadas em processos, recursos ou incidentes específicos ou ainda com certo quorum especial.
A lógica dessa observância compulsória inclui uma tentativa de oferecer maior segurança jurídica e maior previsibilidade às decisões judiciais. Indiretamente, essas figuras ainda estão atreladas a uma tentativa de acelerar o julgamento de questões repetitivas, dando solução única para elas. Essa intenção é declarada na exposição de motivos do código, que faz desse objetivo um dos pilares centrais da nova lei.
Poder-se-ia questionar a viabilidade desse prognóstico – afinal, as circunstâncias da vida são ricas e diversas, e dificilmente se consegue uma uniformidade de aplicação do direito diante dessas vicissitudes pontuais – e mesmo a opção por privilegiar a segurança jurídica em detrimento de outros valores também fundamentais, a exemplo da justiça do caso concreto. Seria também possível duvidar da aproximação das figuras criadas pelo código ao modelo anglo-americano de precedentes. Porém, não há dúvida a respeito da nítida opção feita pelo código no sentido de tornar obrigatórias certas decisões, restringindo dos magistrados a possibilidade de escolher a interpretação do texto legal que seja mais correta ao caso concreto.
Não é, porém, intenção deste texto fazer a análise detida da “teoria brasileira dos precedentes”, nem criticar a opção do legislador. Pretende-se algo muito mais singelo: discutir o interesse de intervir – e, em particular, o interesse recursal – à luz dessas novas figuras e desses novos mecanismos vinculantes, criados pela lei brasileira.
Alguém dirá que, para o processo do trabalho o tema é de menor relevância, na medida em que o modelo seguido nesse campo é distinto. De fato, sabe-se que a Lei n. 13.015/14 instituiu um sistema próprio de unificação da jurisprudência no campo dos Tribunais do Trabalho, que é bastante diverso daquele posto pelo código de processo civil. Todavia, é de se notar que o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Instrução Normativa n. 39/2016, expressamente consignou a recepção do modelo de formação e estabilização das decisões criado pelo código de processo civil (arts. 3º, XXIII e XXV, 7º, 8º e 15, I). Assim, em que pese a existência de algumas peculiaridades do processo laboral, é fato que também aqui o problema a ser discutido neste texto tem relevância.
Notada essa importância, é preciso também perceber que os ditos “precedentes brasileiros” (melhor seria chamá-los de decisões vinculantes) são, em sua quase totalidade, substancialmente mecanismos tendentes a aglutinar a solução de questões de direito, de modo a tornar a decisão do tribunal obrigatória para todos os magistrados a ele submetidos. Por outras palavras, o que se faz com esses instrumentos é ampliar os efeitos de uma decisão judicial, de modo que atinja a esfera jurídica de terceiros – não intervenientes no processo – tolhendo, ao menos por vezes, o direito destes a apresentarem suas razões (rectius, terem essas suas razões examinadas efetivamente pelo Poder Judiciário) em eventual demanda presente ou futura de que possam participar.
Se esse é o objetivo dessas medidas – o de afetar causas que envolvam terceiros, ou seja, sujeitos não participantes da relação jurídica em que dada a decisão – então é certo que há grave risco de que essas técnicas possam mostrar-se inconstitucionais, por clara violação ao contraditório.
Para evitar esse vício, é necessário tomar diversas cautelas na atuação desses institutos. De início, é necessário que se incluam – nos sujeitos que efetivamente podem participar da formação da decisão que se tornará obrigatória – pessoas capazes de representar os interesses dos ausentes, de modo que esses interesses possam efetivamente ser tutelados naquele processo.
Porém, também parece imprescindível que se repense o conceito de “interesse jurídico” – necessário para a intervenção de terceiro – e sobretudo do interesse recursal, condição necessária para que alguém possa opor-se a essa decisão. Isso se mostra necessário, quando menos, para se evitar que esses terceiros – que sofrerão os efeitos vinculantes da decisão judicial – sejam apanhados por tais decisões sem que tenham tido, ao menos, a oportunidade de apresentar seus argumentos e suas versões a respeito daquela controvérsia.
Interessa para a presente análise, em especial, a apreciação do interesse que legitima a assistência (e, de modo mais amplo, todas as formas de verdadeira intervenção de terceiros). Considerando que esta é a via clássica pela qual o terceiro auxilia a parte a vencer a demanda (por isso chamada de Nebenintervention no direito alemão), para que, com isso, obtenha para si um benefício para interesse jurídico próprio, parece claro que esta é a via que mais se aproxima àquilo que aqui se pretende, ou seja, a permitir aos terceiros a participação em processo de que possa resultar mecanismo vinculante para seus próprios interesses.
Na verdade, diante das modificações apontadas, o processo individual tem, paulatinamente, buscado aproximação com o processo coletivo, na medida em que, cada vez mais, tem-se a ampliação dos limites da decisão para além da órbita exclusiva das partes. Impõe-se, talvez, portanto, autorizar – usando como paradigma o processo coletivo – a participação plena dos atingidos no preparo da decisão judicial que os afetará. Realmente, se o processo individual, agora, é capaz de gerar decisão que atinge (direta ou indiretamente) todos aqueles que sejam titulares de um mesmo tipo de interesse, ou cujo interesse se lastreia em uma única questão de direito, parece ser razoável admitir que seu tratamento (porque feito de forma única) admita a participação de todos aqueles que se sujeitarão aos efeitos daquela decisão.
Por outro lado, sabe-se que essa participação plena é muitas vezes impossível, gerando um processo tumultuário e praticamente infinito. Daí a necessidade de se buscar um equilíbrio, capaz de permitir repensar a participação (ou representação) dos sujeitos afetados, sem que isso retire as vantagens da aglutinação buscada.
2. OS EFEITOS DAS DECISÕES JUDICIAIS EM FACE DE TERCEIROS
Afirma-se que os “precedentes brasileiros” não devem ser confundidos com uma ampliação da coisa julgada para terceiros. De fato, se esses precedentes atingem o fundamento da decisão, parece correto não confundir os institutos. Por isso, alguém poderá sustentar que não há razão para a ampliação do conceito de interesse jurídico de intervenção ou de interesse recursal, já que estes terceiros não sofreriam a imutabilidade da coisa julgada, de onde se concluiria que sempre poderão, em processo posterior em que sejam partes, discutir a decisão tomada no primeiro feito.
De fato, esta faculdade está na essência de toda intervenção de terceiro. Trata-se, aliás, da condição básica para que alguém possa ser considerado como terceiro interessado e, assim, estar sujeito aos chamados efeitos reflexos da sentença: poder “refletir” os efeitos sofridos pela sentença, opondo-se a ela ou pela intervenção de terceiros, ou pela propositura de demanda própria, tendente a afastar de sua esfera jurídica tais efeitos.
A fim de melhor apreciar esta afirmação, cumpre retomar os conceitos de efeitos da sentença, precisando esta idéia. Conforme já lembrado em outro lugar, o terceiro, ainda que ostente esta condição em face do processo, não está, por isso só, imune a este ou a seus efeitos. A afirmação pode soar estranha, mormente diante da máxima segundo a qual res inter alios iudicata aliis non praeiudicare (D. 42.1.63; 44.2.1). Realmente, é corrente dizer-se que a decisão judicial, formada em processo entre as partes, não pode prejudicar terceiros. Todavia, é preciso interpretar adequadamente o brocardo, a fim de evitar a confusão acima indicada, e que, aliás, contraria a própria realidade.
Inúmeras situações podem ser apanhadas do ordenamento nacional para demonstrar esta situação. Com efeito, a distinção, proposta há muito por Carnelutti, entre parte em sentido material e parte em sentido formal, deixa bem transparecer a possibilidade dessa extensão a terceiros dos efeitos de certa decisão judicial. Ainda que no processo se apresentem apenas as partes em sentido formal, é evidente que seus efeitos hão de afetar as relações das partes em sentido material, mesmo porque a estas pertence o conflito deduzido no processo. Exemplo disso se tem na expressa referência do art. 109, § 3º do CPC – que, ao tratar da alienação da coisa litigiosa no curso do processo, determina que “estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou ao cessionário” – bem como na menção da responsabilidade do espólio pelas dívidas do falecido (imposição esta antes de direito material, mas expressamente recepcionada no art. 778, § 1º, II, do CPC).
Os exemplos acima citados não devem fazer crer que a extensão dos efeitos de certa decisão judicial a terceiros depende de expressa previsão legal. A rigor, essa repercussão tem muito mais clara ligação com a natureza das coisas do que com previsões legais específicas. Pense-se, por exemplo, na situação decorrente do cumprimento de ordem judicial que determina a reintegração de alguém em seu posto de trabalho; certamente isto poderá importar remanejamento dos outros empregados e alteração das funções dadas a cada um; ainda assim, não parece razoável cogitar de convocar todos os empregados envolvidos para o processo (em eventual condição de litisconsortes) para autorizar que estes terceiros sofram tais efeitos da sentença.
Pode-se ir adiante na demonstração de situações em que terceiros são abarcados pelos efeitos de decisões judiciais. Costuma-se aludir à chamada eficácia erga omnes da sentença constitutiva, para designar o fato de que as alterações produzidas na realidade jurídica por esta modalidade de provimento judicial são sentidas por todos, independentemente do fato de estarem ou não posicionados como parte no processo do qual a decisão se origina. Deveras, não se pode deixar de reconhecer que a sentença de divórcio, prolatada entre os cônjuges, espraia seus efeitos para todos, indistintamente, de modo que ninguém poderá deixar de reconhecer o novo status jurídico daquelas partes; do mesmo modo, aquele que, agora, pretender contratar com um desses sujeitos, haverá de considerar esta nova situação jurídica e o novo regime de bens do primitivo casal, mesmo não tendo sido parte no processo. Tudo isso mostra que os efeitos daquela decisão não se limitam apenas às partes, mas abrangem, indistintamente, todos que se relacionem ou possam relacionar-se com elas.
Mais que isso, essa abrangência a terceiros da sentença não se limita apenas às sentenças constitutivas, sendo natural a toda modalidade de decisão judicial (rectius, a todos os efeitos de qualquer decisão judicial). Chiovenda há muito percebera tal fenômeno, estatuindo que todos estão obrigados a reconhecer a sentença entre as partes, não podendo, porém, ser prejudicados (juridicamente) por ela. Talvez seja mais apropriado dizer, no atual estágio das coisas, que todos devem reconhecer qualquer sentença – ainda quando proferida inter alios – podendo eventualmente ser prejudicados por ela, desde que lhes seja dada possibilidade de reação em face de tais efeitos. Utilizando os exemplos invocados por Chiovenda, vale lembrar que o credor não pode evitar sofrer os efeitos de sentença que condena seu devedor em outras dívidas – ainda que isso possa importar em prejuízo para si, e ainda não participando desse novo processo; o mesmo se pode dizer do herdeiro que se vê prejudicado por sentenças obtidas contra o espólio. Em certos casos, mesmo prejuízos jurídicos a terceiros são admitidos pela legislação nacional, como ocorre com as situações, já mencionadas, do adquirente da coisa litigiosa (CPC, art. 109, § 3o) ou da rescisão das sublocações em decorrência do desfazimento da locação (Lei n. 8.245/91, art. 15).
De fato, o processo jamais consegue limitar ou medir a extensão dos efeitos de determinada decisão judicial. Estes efeitos – diretamente decorrentes da decisão judicial, ou agregados a ela por algum elemento externo (a lei ou o ato jurídico) – acabam induzindo a formação de outras conseqüências, impossíveis de previsão a priori. Nesse passo, clara é a lição de Liebman, que ponderava que “na realidade, o círculo de relações e de pessoas em que operará o comando contido numa sentença não pode ser e não é preventivamente determinado em abstrato, mas dependerá do uso que em concreto fizerem as partes da sentença, e da qualidade e do número das controvérsias que poderão surgir no futuro, e terá por condição certo modo de ser das relações jurídicas, o nexo e o grau de ligação entre elas existentes”.
A dificuldade em aceitar naturalmente essa “ampliação” dos efeitos dos provimentos judiciais decorre, ao que parece, da assimilação comum entre extensão dos efeitos da sentença e extensão da coisa julgada. Realmente, seria difícil admitir que aquele que não participou do processo – e, portanto, não pode influir na decisão judicial – venha a ser prejudicado pela decisão aí tomada, sem que possa a esta se opor, o que tornaria a decisão indiscutível para este que, resignado, apenas deveria cumprir o comando judicial.
O equívoco, porém, está nessa assimilação incorreta, e não na admissão da eficácia ultra partes das sentenças. Como indica Ovídio Baptista da Silva, “não há de especial, no que respeita ao efeito constitutivo das sentenças que o faça diferente das demais eficácias internas (diretas) de quaisquer outras sentenças. Não é só a eficácia constitutiva que opera erga omnes, mas todos os efeitos da sentença alcançam os terceiros, sob forma de efficacia naturale, na terminologia de Liebman. O fenômeno jurídico-processual que nunca atinge os terceiros é a imutabilidade do que foi declarado pelo juiz, no sentido de que nem as partes podem, validamente, dispor de modo diverso transacionando sobre o sentido da declaração contida na sentença, e nem os juízes dos futuros processos poderão modificar ou, sequer, reapreciar essa declaração. A isso se dá o nome de coisa julgada material”.
Em síntese, não se deve estranhar o fato de efeitos da decisão judicial atingirem terceiros. O que, como é evidente, não se tolera é que tais efeitos possam atingir essas pessoas sem que se dê a elas possibilidade de esboçarem reação a tanto, ou que possam opor-se a esse comando. Enfim, o que não pode ocorrer é que esses efeitos atinjam aquele que não foi parte – nem foi chamado para participar do processo – de modo irreversível ou indiscutível (com estabilidade de coisa julgada). Pode-se até ir além, e afirmar mais propriamente que essa possibilidade de reação para terceiros circunscreve-se, apenas, àqueles chamados de terceiros juridicamente interessados, ou seja, terceiros que mantêm com uma das partes relações jurídicas dependentes ou conexas com as que constituem o objeto do processo. Para os demais terceiros (juridicamente indiferentes, porque destituídos dessa relação jurídica especial) os efeitos da decisão serão sentidos de forma imutável e indiscutível, não por conta da coisa julgada, mas apenas pela falta de legitimidade para questionarem tais efeitos judicialmente. /
Desse modo, resta claro que a condição de terceiro interessado é pressuposto para que se possa discutir os efeitos que eventual sentença acarrete para a sua específica esfera jurídica. É, portanto, evidente que, em se tratando de terceiro interessado, terá ele condições de discutir os efeitos da sentença, já que a imutabilidade da coisa julgada não se sobrepôs a ele. Ainda que tenha sofrito efeitos da sentença, essas não lhe atingiram de forma imutável.
A chave da questão, portanto, parece sempre residir nessa definição de interesse de intervenção (ou interesse recursal, para a modalidade de intervenção qualificada como recurso de terceiro prejudicado). É necessário, portanto, revisitar esse conceito, a fim de examinar com mais detalhes suas peculiaridades.
3. O INTERESSE DE INTERVENÇÃO
É noção elementar que a intervenção de terceiros não se dá pela simples vontade deste em participar de um processo. Há condições legais para tanto, normalmente traduzidas pela idéia do chamado interesse jurídico de intervenção. Nesse sentido, leciona Goldschmidt que todo terceiro, que tenha interesse jurídico em que uma das partes de um processo em curso vença, pode ingressar neste feito com o intuito de ajudá-la. A intervenção (especificamente aquela de que aqui se trata, chamada de intervenção ad coadiuvandum) se dá e se molda de maneira a permitir que o terceiro auxilie a parte a ter solução favorável ao interesse desta no processo. Este auxílio se legitima, como visto, porque o resultado da causa pode afetar, reflexamente, o interesse jurídico do terceiro, que não é objeto da demanda. Por isso, o interesse jurídico é a cláusula de controle que permite admitir ou não a intervenção do terceiro. Não basta, pois, que o terceiro tenha interesse qualquer na solução do litígio; é necessário que demonstre interesse jurídico naquela decisão.
Para o mesmo Goldschmidt, este interesse jurídico está presente em certas circunstâncias específicas, agrupadas por ele em quatro categorias. A primeira se relaciona às hipóteses em que a força da coisa julgada da sentença deve estender-se ao terceiro. A segunda ordem se liga aos casos em que a execução da sentença deva fazer-se contra o terceiro. No terceiro grupo, apresenta o autor os casos em que a sentença deve produzir efeitos acessórios frente ao terceiro. Por fim, na última categoria, estariam os casos em que a sentença deve produzir efeitos probatórios na relação existente entre o terceiro e o adversário da parte assistida.
Sob a ótica do direito brasileiro, parece que os casos em que se apresenta o interesse jurídico para intervenção – como reconhecidamente aceito pela doutrina – não devem seguir os padrões exatos dos gêneros sugeridos por Goldschmidt. Antes, interessa para aferir a presença do interesse de intervenção a existência de uma relação jurídica, mantida pelo terceiro com uma das partes do processo, conexa ou dependente da relação jurídica que constitui objeto do processo. Nas palavras de Liebman, a intervenção do terceiro (na condição de assistente) depende de que este terceiro seja titular de relação jurídica conexa com aquela deduzida em juízo, ou dela dependente, “di modo che la sentenza che sarà pronunciata potrà riflettere un effetto favorevole o sfavorevole sulla sua posizione giuridica”.
Esta é a opinião adotada expressamente pelo texto legal brasileiro, quando afirma que a assistência pode ocorrer sempre que alguém qualificar-se como “terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma delas (das partes)” (CPC, art. 119). Embora a lei não defina precisamente em que consiste este “interesse jurídico” exigido, entende-se ser possível extrair tal idéia do contido no art. 996, parágrafo único, do código, que impõe ao terceiro, para a interposição de recurso, a demonstração da “possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que posa discutir em juízo como substituto processual”.
De forma semelhante, mas deixando claro que este interesse resulta da existência de relação jurídica (mantida pelo terceiro) capaz de ser afetada pela decisão da causa, esclarece o art. 335º, n. 2, do Código de Processo Civil português que “para que haja interesse jurídico, capaz de legitimar a intervenção, basta que o assistente seja titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido”.
Segundo a doutrina, não se exige, para a assistência, que este interesse jurídico seja sobre o objeto do processo. Basta, para admitir a intervenção, que a decisão da causa possa afetar interesse juridicamente protegido do terceiro.
Seja como for, olhando para essa estrutura da qualificação do interesse jurídico – e, na mesma linha, do interesse recursal – nota-se a dificuldade de harmonizar esse desenho com as técnicas inseridas pelo novo código. Em razão dos mecanismos vinculantes instituídos pela nova lei, parece claro que, embora esse terceiro dificilmente possa qualificar-se como “interessado” para participar do processo onde surgirá decisão com possível efeito vinculante, certamente sua participação aí seria fundamental para legitimar a força que esse “precedente” terá sobre sua sua situação jurídica.
4. INDISCUTIBILIDADE DA SENTENÇA PARA TERCEIROS E DIREITO À PARTICIPAÇÃO
Conquanto se possa aceitar a clássica idéia de “interesse de intervenção” para limitar o acesso ao processo àqueles terceiros que efetivamente possam sofrer prejuízo jurídico com a decisão da causa, é certo que essa exigência se torna demasiada frente às novas técnicas de solução aglutinada de questões jurídicas (os ditos “precedentes brasileiros”) instituídos pelo CPC de 2015.
De fato, estando evidenciada a tendência do direito processual civil em criar mecanismos vinculantes, tornando impositivas as decisões judiciais (em certas circunstâncias, pelo menos) e havendo clara repercussão dessa imposição sobre a esfera jurídica de terceiros – que seriam, segundo os critérios tradicionais, indiferentes ou desinteressados e, portanto, proibidos de intervir no processo inter alios – é preciso repensar o requisito que se exige para admitir a participação destes no feito.
Não há dúvida de que, a rigor, aqueles que não são partes nos processos em que pode ser proferida decisão com caráter vinculante, nos termos do art. 927, do CPC, também não podem ser qualificados como terceiros interessados apenas porque a decisão judicial será necessariamente observada em outros processos. A vinculatividade se impõe para o Poder Judiciário e não para o jurisdicionado. Por isso, não se confunde com outros institutos que poderiam afetar diretamente a situação jurídica de terceiros. Logo, esses terceiros são, genuinamente, terceiros não interessados. Eles não possuem nenhuma relação jurídica conexa ou dependente daquela julgada, nem é possível afirmar que a decisão tomada nessas técnicas de vinculação atingirá direito de que esses terceiros se afirmem titulares ou que pudessem discutir em juízo como substitutos processuais (art. 996, parágrafo único, do CPC).
Logo, perante o código de processo civil, esses terceiros são qualificados como terceiros indiferentes e não teriam, ao menos sob a ótica da lei, o direito de intervir no processo e, muito menos, de recorrer de alguma decisão ali tomada. Embora o julgamento proferido dentro desses mecanismos impacte diretamente a forma como será apreciado o seu litígio, não seriam esses terceiros qualificados como “juridicamente interessados”.
Imagine-se, por exemplo, a questão da súmula vinculante. Como resulta do texto expresso da Constituição da República, a súmula editada pelo Supremo Tribunal Federal será vinculante para todo o Poder Judiciário e ainda para toda a Administração Pública (em seus diversos níveis). Assim, poderá ocorrer que uma decisão tomada em causa que diga respeito, por hipótese, à União, acabe repercutindo em interesses de um específico município, de autarquias federais, ou de Estados da federação. Esta repercussão, sublinhe-se, poderá ocorrer – tornando a conclusão do Supremo Tribunal Federal indiscutível para este outro sujeito – sem que ele tenha tido condição de sustentar suas razões perante aquele tribunal e, portanto, sem que tenha sido ouvido a respeito do assunto.
De modo idêntico, pense-se no incidente de assunção de competência, sobretudo naquele disciplinado pelo art. 947, § 4º, do CPC. Um tribunal, com o intuito de compor ou prevenir divergência na interpretação de questão de direito, afeta um caso específico a certo órgão representativo da Corte e, tomada a decisão sobre a “correta” interpretação do Direito naquele caso, tornará indiscutível essa solução para todos os outros processos em que a mesma questão se ponha (art. 927, III, do CPC). Vale dizer, todos os outros sujeitos, que sequer participaram da discussão daquela primeira causa, estarão sujeitos ao entendimento firmado pelo Tribunal, de modo que seus argumentos jamais serão examinados ou debatidos.
Parece certo que há, nesses mecanismos, uma grande dose de exclusão, com risco evidente à garantia do contraditório. Todos esses sujeitos, embora não possam participar da formação da decisão judicial, serão afetados por ela, de forma indireta, já que a interpretação dada à questão de direito que também informa seus litígios será aplicada para seus casos, sem possibilidade de questionamento.
Por isso, a fim de salvaguardar seus interesses, parece adequado pensar em mecanismos de representação de seus interesses – à semelhança de figuras típicas da tutela coletiva – de modo que haja alguém no processo em que se formará a decisão obrigatória responsável por tutelar os direitos desses terceiros.
Por outro lado, parece também razoável repensar o conceito de “interesse de intervenção” e de “interesse recursal”, de forma a harmonizá-los com esses mecanismos vinculantes criados pelo código.
Nesse passo, havendo nítida inspiração no direito anglo-americano para a atribuição de efeito vinculante às decisões judiciais, pode-se eventualmente colher a experiência daqueles países para imaginar como deva comportar-se a intervenção de terceiros, na sua modalidade clássica (a assistência). O direito norte-americano admite figura semelhante à assistência (intervention) , desde que preenchidos os requisitos da regra 24, das Federal Rules of Civil Procedure. Segundo este preceito, a intervention é autorizada nos casos previstos expressamente em lei ou quando o interessado afirma a existência de um interesse relacionado à propriedade ou transação que constitui o objeto da demanda e ele está situado em condição tal que a disposição da ação pode restringir ou impedir sua habilidade em proteger o seu interesse, ressalvada a hipótese em que seu interesse esteja sendo adequadamente representado pelas partes existentes na causa.
Das exigências postas na regra 24(a), acima descritas, vê-se que não há, para a intervenção em tela a exigência de relação jurídica conexa ou subordinada àquela deduzida no feito. Basta, para justificar a intervenção, que a proteção do interesse do terceiro possa vir a ser restringida ou tolhida em razão da decisão eventualmente adotada no processo em curso. Isto, obviamente, é algo bem mais amplo que a exigência posta no sistema brasileiro, e certamente apanha os casos em que a decisão possa vir a refletir suas conclusões jurídicas na situação do terceiro. Especialmente, insta lembrar que o direito anglo-americano adota o sistema de precedentes vinculantes, de forma que uma decisão a respeito de certa questão pode importar a inviabilidade completa de proteção ulterior de outros direitos semelhantes.
Com efeito, a literatura norte-americana relata a existência de um caso em que a intervenção (de que aqui se trata) foi admitida justamente por conta dos possíveis efeitos do stare decisis que eventual decisão poderia gerar sobre outras situações. Trata-se do caso Atlantis Development Corp. v. U.S. (379 F.2d 818 (5th Cir. 1967)), em que, em um feito envolvendo determinada empresa que explorava conjunto de recifes sem a autorização do governo federal, foi por este processada, sob o argumento de que tal área pertencia aos Estados Unidos da América. A empresa Atlantis Development Corp. requereu sua intervenção no feito, alegando que havia adquirido os direitos sobre a área de recifes do seu descobridor e sustentando que eventual decisão daquela causa (que entendesse que o local seria patrimônio federal) poderia, por conta do stare decisis, importar na aniquilação do direito de propriedade alegado pela empresa Atlantis. Por conta disso, entendeu-se por cabível a intervenção.
A solução preconizada pelo direito norte-americano, fundado exatamente na tentativa do interessado em evitar uma decisão desfavorável a demanda futura da qual faça parte, pode talvez ser transposta para o Brasil. Com a nova sistemática dos mecanismos vinculantes, certamente o mesmo problema enfrentado naquele país ocorrerá aqui, parecendo bastante razoável a adoção de conclusão semelhante àquela lá acolhida.
Essa solução foi, ao menos parcialmente, acolhida recentemente pelo direito brasileiro, pela Lei n. 11.417/06, que trata da edição, revisão e cancelamento de súmulas vinculantes. Como se prevê em seu art. 3o, § 2o, pode o relator admitir a manifestação de qualquer terceiro no procedimento que examina a edição, o cancelamento ou a revisão de súmula vinculante. A alusão a “terceiros”, obviamente, implica concluir que não são só os terceiros interessados (em sua acepção clássica) que poderão intervir. Quaisquer terceiros, independentemente da demonstração de interesse jurídico na questão (desde que atendidos os pressupostos fixados no Regimento Interno do Tribunal), podem ser admitidos a manifestar-se nesses procedimentos. Merece esta solução ser ampliada para atender a todos os feitos dos quais possa resultar decisão vinculante.
5. A NECESSIDADE DE REVISÃO DO CONCEITO DE INTERESSE DE INTERVENÇÃO E DE INTERESSE RECURSAL
Poderá alguém imaginar que a ampliação do conceito de interesse de intervenção não merece ser aceita, já que desnaturaria o instituto da assistência (e daS formas de intervenção de terceiros como um todo), ampliando demasiadamente a participação de terceiros no processo.
Quanto à primeira objeção, parece ser ela incabível. O direito brasileiro, há muito, convive com hipóteses de intervenção de terceiros em que as exigências postas são muito mais simples que aquela que autoriza a assistência. Recorde-se, por exemplo, a figura da intervenção anômala, disciplinada pela Lei n. 9.469/97. Ainda que se possa cogitar de sua inconstitucionalidade, o fato é que esta figura tem sido admitida pelos tribunais e amplamente praticada no cotidiano forense. Seu perfil, como se vê claramente das disposições legais pertinentes, dispensa, para a intervenção, a demonstração de qualquer interesse jurídico, bastando a simples alegação de prejuízo econômico (ainda que indireto).
Ao lado dessa figura, há ainda o já mencionado instituto criado pela lei n. 11.417/06, em seu art. 3º, § 2º. Como visto, no procedimento de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante é admissível a participação de terceiros, independentemente da demonstração de qualquer “interesse jurídico”. Evidentemente, trata-se de medida “discricionária” do relator, que sequer comporta recurso. Porém, também aí se tem instrumento que permite a terceiros sem “interesse jurídico” específico participar de um dos procedimentos mais importantes – porque impacta diretamente todo cenário jurídico nacional – de criação de decisões vinculantes.
Pode-se também apontar para a disseminação, no direito brasileiro, do instituto do amicus curiae, atualmente tratado pelo art. 138, do CPC. Esses sujeitos, admitidos por sua “representatividade adequada”, certamente não se confundem com terceiros juridicamente interessados, em sua acepção clássica, embora possam intervir em processos de relevância. Segundo a lei, esses amici curiae têm até mesmo o direito de recorrer de pelo menos um dos mecanismos de formação de decisão vinculante, a saber, do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138, § 3º, do CPC), a demonstrar que o próprio código admite que um terceiro que não se amolda com exatidão à figura do “terceiro interessado” possa recorrer de uma decisão vinculante.
A presença de tais figuras já incorporadas à tradição nacional torna, ao que parece, facilmente superável a objeção levantada. O sistema processual nacional já está acostumado em aceitar intervenções que dispensam a demonstração de interesse jurídico, de modo que não deve assustar a ninguém a simples ampliação da admissibilidade de terceiros no processo, para atender ao atual perfil do direito processual civil.
Quanto à outra objeção – de que isto poderia tumultuar o feito, permitindo que muitas pessoas interviessem no processo – também não merece ela ser aceita.
É certo que a ampliação desavisada do conceito de “interesse de intervenção” pode tornar inviável a solução da lide, ou da questão jurídica, diante de uma multidão de terceiros no processo formado. Todavia, é preciso pensar também no outro lado do problema: a não admissão desta intervenção ampliada acarretará a violação clara dos direitos de ampla defesa e contraditório de todos estes “terceiros”, que sofrerão (praticamente de forma imutável) os efeitos de uma decisão judicial, sem jamais ter condições de, efetivamente, opor-se a ela. De fato, não se pode admitir que o primeiro processo instaurado a respeito de certa controvérsia acabe por resultar em decisão que será indistintamente aplicada para todos os demais casos, sem que os titulares destes outros direitos tenham, de fato e de maneira concreta, a possibilidade de apresentar seus argumentos e interferir na decisão judicial. A garantia do contraditório, em sua versão moderna, tem sido vista como não apenas o direito de se manifestar, mas de influir efetivamente na decisão judicial. Não há dúvida de que este direito é violado se a decisão judicial já está pronta, mesmo antes de iniciada a ação em que o interessado pretende apontar seus argumentos.
Em razão disso, em que pese a preocupante abertura exagerada do processo para a participação de terceiros, a solução oposta também traz semelhante problema: a violação clara ao contraditório e à ampla defesa, o que tornaria inconstitucional todo o processo. É, portanto, preciso compatibilizar estas duas necessidades processuais, encontrando ponto de harmonia entre elas.
Parece que a sintonia entre tais imposições não pode ser encontrada de forma abstrata, não sendo, pois, aconselhável a determinação legal de novo conceito de “interesse de intervenção”. De fato, apenas a avaliação ponderada do caso concreto, feita pelo juiz, pode ser capaz de localizar o ponto de equilíbrio entre a exagerada participação no processo e a proteção dos interesses dos terceiros em face dos mecanismos vinculantes previstos no sistema processual atual.
É fundamental perceber, tal como faz Owen Fiss, que não é necessariamente a pessoa que deve ter o direito de ser ouvida pelo Tribunal. O que, sim, deve ser sempre preservado é o direito de o interesse ser adequadamente aportado à análise da Corte. O fundamental é que o interesse desses terceiros (e os argumentos que poderiam oferecer) esteja adequadamente representado no processo, sendo indiferente que a defesa desse ponto de vista se dê pessoalmente pela “parte” ou por “terceiro”. Por outras palavras, o conceito de parte, terceiro interessado ou terceiro indiferente, para os fins aqui examinados, acabam mostrando-se irrelevantes. O fundamental é que os diversos interesses e os vários pontos de vista que podem incidir sobre a decisão da questão de direito que se tornará vinculante tenham sido adequadamente demonstrados, debatidos e examinados.
Com essa postura, confere-se adequada proteção aos vários interesses incidentes, evitando que uma multidão de sujeitos ingresse no processo.
Para tanto, deve-se dar crédito ao magistrado para apreciar em que medida a intervenção do terceiro é necessária, quem será admitido a intervir e, aos moldes do que ocorre no direito norte-americano, se a tutela do interesse destes é (ou pode ser) adequadamente feita pela parte do processo ou por outro sujeito que já represente aquele ponto de vista no mecanismo vinculante. Também é de se outorgar ao magistrado poderes de limitar a extensão desta intervenção, permitindo a alguns terceiros que atuem em certas fases do processo (mas não em outras) ou que, aos que intervêm, sejam oferecidos apenas alguns poderes processuais. Normalmente, por exemplo, não será o caso de permitir que o terceiro produza provas, já que sua intenção, ao participar do processo, é defender certa interpretação ou aplicação do direito e não proteger seu específico interesse.
Realmente, quando se nota que os vários mecanismos definidos no art. 927, do CPC, referem-se em sua ampla maioria à fixação de certa interpretação para questões exclusivamente de direito, nota-se que não deve haver espaço par que a participação do terceiro se estenda à demonstração de fatos.
De todo modo, não há dúvida de que esta intervenção deve – embora limitadamente – ser autorizada, já que é a única maneira de preservar os interesses daqueles que não têm seu direito discutido no processo, mas o terão, sem dúvida, atingido pela sentença ou pelo acórdão lá proferido.
Logicamente, seria desejável a previsão legal desta intervenção – com o delineamento de sua estrutura básica. Na ausência desta, todavia, não se pode aceitar sua proibição, sob o argumento simplista de que não há previsão legal para tanto, ou de que esses terceiros não se amoldam à clássica definição de interesse de intervenção ou de interesse recursal.
Assim, no modelo instituído pelo código de processo civil de 2015, parece certo que das decisões tomadas em incidentes de assunção de competência, em incidentes de resolução de demandas repetitivas ou em outros instrumentos dos quais possam resultar decisões vinculantes deve poder participar – e, evidentemente, quando cabível, também recorrer – não apenas as partes e os terceiros interessados, mas também esses terceiros que eventualmente sofrerão as consequências da tese jurídica fixada.
É certo que essa participação não necessariamente será feita de forma pessoal, autorizando que cada um dos sujeitos que possa ser atingido pela tese jurídica deva intervir no feito ou, ao menos, ser convocado para tanto. Porque isso seria impossível – sobretudo diante da eficácia prospectiva da decisão vinculante – deve-se criar mecanismos que sejam capazes de avaliar se os diversos pontos de vista, os inúmeros argumentos e os vários interesses envolvidos sejam efetiva e adequadamente apresentados, discutidos e examinados.
Com isso, parece ser possívle equilibrar a exigência de participação – necessária à preservação do contraditório – e os objetivos de aglutinação da decisão de questão de direito uniforme.
Por Rafael Knorr Lippmann - 02/11/2016
1. PROVA COMO MEIO À CONSECUÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
Prova é o instrumento retórico destinado à formação do convencimento do magistrado sobre as proposições de fato articuladas no processo . Este é um conceito de prova construído a partir de perspectivas jusfilosóficas modernas , que descartam a frieza da verdade formal, ao tempo em que reconhecem a intangibilidade da propugnada verdade real .
Ao formular pedido, o autor precisa alicerçá-lo em fatos (art. 319, III, CPC); ao resistir, o réu tem o ônus de negá-los e/ou de lançar mão de fatos (processualmente) novos capazes de afastar a eficácia jurídica que o autor pretende fazer incidir sobre os fatos e narrou (art. 336, CPC). Neste último caso, caberá ao autor impugnar os fatos trazidos ao debate pelo réu (art. 351, CPC), instaurando-se, sempre que deduzida a alegação de fato por uma parte e a negação de fato por outra, a controvérsia.
Trata-se, pois, a prova, do instituto processual concebido com a missão de aproximar o julgador da verdade possível a respeito dos fatos articulados e debatidos pelos sujeitos do processo para, a partir de seu delineamento, tornar-se viável a prestação de tutela jurisdicional.
Destas premissas, vislumbra-se que a prova é classicamente concebida como meio (convicção do magistrado sobre os fatos controvertidos) para que o processo atinja seu fim (aplicação do ordenamento jurídico sobre os fatos para definição do conflito levado a juízo).
Tanto assim que, no CPC/1973, os dispositivos atinentes à disciplina legal da prova estavam localizados no Capítulo VI do Título VIII do Livro I (arts. 332 a 443) que moldavam a fase instrutória do procedimento comum (ordinário): os fatos relevantes articulados para obter o acolhimento/rejeição de um pedido na fase postulatória, quando configurada a controvérsia a seu respeito (identificada a partir da definição dos pontos controvertidos na decisão saneadora - fase ordinatória), precisariam ser esclarecidos na fase intsrutória para que, então, fossem reunidos os elementos necessários à prolação da sentença de mérito (fase decisória).
Contemplou ainda o CPC revogado a hipótese em que determinada prova, por risco de perecimento ou inviabilização definitiva de sua produção, não poderia aguardar o início da fase instrutória (ou sequer o ajuizamento da demanda) para ser produzida, dedicando a ela os procedimentos cautelares típicos a exibição (arts. 844 e 845) e a produção antecipada de provas (arts. 846 a 851).
O exemplo tradicionalmente lembrado é o do acidente de trânsito no qual uma das partes envolvidas tenciona realizar rapidamente o reparo em seu veículo para inviabilizar um futuro exame pericial capaz de comprovar que o automóvel foi batido. Aguardar a propositura e o desenvolvimento da ação de reparação de danos até o advento da fase instrutória para somente então dar início à perícia significaria tornar impossível a realização da única prova capaz de demonstrar o fato constitutivo do direito à indenização pretendido pelo autor e, consequentemente, redundaria numa prestação jurisdicional ineficiente.
Justamente por isso, previu o CPC/1973 que em situações como tal se poderia lançar mão da medida cautelar preparatória de produção antecipada de provas (art. 796) para assegurar a realização da perícia e, com a prova produzida, restaria conservada a efetividade da tutela jurisdicional que viria a ser futuramente prestada quando do ajuizamento da pretensão indenizatória.
O Código anterior também previa a possibilidade de, quando durante o trâmite da demanda de conhecimento , para fazer prova dos fatos articulados uma parte necessitasse da exibição de documento ou coisa que se encontrasse em poder da outra ou mesmo de terceiro, pleitear-se a exibição nos próprios autos. Tratava-se de procedimento incidental, disciplinado nos arts. 355 a 363, destinado à obtenção do documento ou coisa, viabilizando a produção da prova em juízo.
O destaque, para os fins deste ensaio, é o traço marcante comum às técnicas processuais relacionadas à prova encartadas no CPC/1973: tanto nas cautelares típicas quanto na exibição incidental, a preocupação do legislador foi a criação de instrumentos capazes de assegurar a produção da prova enquanto meio (formação do convencimento do magistrado) destinado a consecução de um fim diverso (acolhimento/rejeição do pedido). No exemplo anteriormente citado: o autor busca a realização da prova pericial (meio) com o intento de obter a procedência do pedido de condenação do réu ao pagamento de indenização pelos danos causados (fim).
Aparentemente, o CPC/2015 manteve a estrutura legal do seu antecessor em matéria probatória: manteve a possibilidade de se pleitear, a título de tutela provisória de urgência cautelar antecedente a produção de uma prova necessária a comprovação de fato a ser articulado em demanda futura quando houver risco de perecimento da prova ou impossibilidade de sua produção no futuro ; bem como de postular a exibição incidental de documento ou coisa que esteja em poder da parte contrária ou de terceiro (arts. 396 a 404).
Um exame detido, porém, revela que o novo Código deu um passo além, tipificando em seu texto, para além do direito instrumental à prova, o direito material à prova como um direito "próprio" e que, como tal, pode constituir o objeto de uma demanda, cujo pedido (único) consistirá na realização da prova, pura e simplesmente.
2. PROVA COMO DIREITO MATERIAL "PURO"
Muito antes de se iniciarem os debates sobre a elaboração de um novo Código de Processo Civil, a doutrina já se debruçava sobre o estudo do direito à prova não apenas como um direito instrumental, destinado à “abertura de caminho” para a comprovação de um outro direito, objeto da lide, mas como um direito material e autônomo que, nesta qualidade, pode ser ele próprio o objeto do próprio pedido de prestação de tutela jurisdicional .
Na casuística, o exemplo mais simples é o que ao mesmo tempo revela com toda a clareza a perspectiva do acesso à prova como direito material: X e Y celebram contrato escrito em via única, mantida sob a posse de Y. Independentemente de pretender cobrar dívida, rever ou anular cláusula, etc., os contratantes possuem direito material de acesso ao contrato e, portanto, caso Y lhe negue acesso, X poderá buscar a tutela jurisdicional para a satisfação de seu direito.
O próprio CPC/1973, ao disciplinar o procedimento “cautelar” de justificação, trazia um embrião (já que limitado exclusivamente à produção de prova testemunhal, como previa seu art. 863) da ideia de que alguém poderia postular em juízo com o objetivo único de obter prova, independentemente de risco de seu perecimento e, mais ainda, independentemente de sua utilização, ou não, num processo judicial futuro .
Ainda no âmbito legislativo, mais recentemente a L. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), previu em seu art. 22 o cabimento de ação para “formar conjunto probatório (...), em caráter incidental ou autônomo”, quando o interessado necessitar de informações de “registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet”.
Trata-se de importante passo em direção ao reconhecimento legal do direito autônomo de acesso a prova, pois do dispositivo legal extrai-se a concepção de que o interessado, independentemente de qualquer outra pretensão que possa vir (ou não) a ter, é titular do direito de acesso aos seus registros mantidos em determinada aplicação de internet. Se, por qualquer motivo, o responsável pela guarda de tais informações negar acesso a elas, poderá o interessado em ação autônoma, proposta exclusivamente com este fim, “requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento” de ditas informações.
3. A TUTELA PROCESSUAL DO DIREITO AUTÔNOMO À PROVA MEDIANTE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA NO CPC/2015
Inobstante sua relevância, nenhuma das previsões legislativas acima mencionadas dispôs tão claramente sobre o direito autônomo de acesso à prova quanto o fez o CPC/2015 ao inserir na Seção II, Cap. XII, Tít. I, Livro I da Parte Especial (arts. 381 a 383) o procedimento intitulado “Da produção antecipada da prova”.
Note-se que o instituto tem natureza jurídica de ação, ou seja, decorre do direito constitucional subjetivo de demandar prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF) para um fim pontual e específico: obter acesso à prova, como direito material de cunho satisfativo.
Mais do que isso, embora a nomenclatura utilizada possa levar à ideia de que se trata de uma ação acessória (já que, se a produção da prova é antecipada, ocorre antes de algo, sendo que este “algo” – leia-se: um processo judicial – deveria inexoravelmente acontecer depois, no futuro, ou mesmo durante, no presente), os arts. 381 a 383 do CPC/2015 trazem em seu bojo uma ação autônoma, que tem origem no “puro” direito material de acesso à prova, cujo objetivo único consistirá na realização da prova, seja ela qual for , não dependendo o seu acolhimento da demonstração de risco do perecimento da prova, tampouco da necessidade de sua utilização em ação futura.
A leitura isolada do art. 381, inciso I, poderia levar à conclusão diversa, no sentido de que tal procedimento nada mais seria do que uma “releitura” da extinta ação cautelar de produção antecipada de provas, já que exige a demonstração do “fundado receito de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação”, demarcando não só a necessidade de demonstração da urgência na obtenção da prova, como também revelando a acessoriedade, a instrumentalidade e a preventividade da medida, características estas historicamente ligadas à tutela cautelar .
Tal hipótese, de fato, amolda-se quase que literalmente àquela que autorizava o ajuizamento da cautelar de produção antecipada de provas prevista no art. 849, do CPC/1973 . Entretanto, a leitura integral do dispositivo revela que não só a antiga justificação foi incorporada à ação de produção antecipada de prova (art. 831, §5º), mas especialmente que a sua propositura não depende do perigo na demora de uma demanda futura atingir a fase instrutória (rectius: do risco de perecimento da prova).
Os incisos II e III, do art. 381, revelam claramente que o direito à prova pode ser postulado em juízo sempre que: i) a prova seja suscetível de viabilizar autocomposição ou (qualquer) outro meio de solução de conflito (inciso II); ou ii) o simples conhecimento de determinados fatos (extraídos da prova) possa “justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.
Nestes casos, muito ao revés de configurar uma demanda preparatória (ou antecedente, como prefere o NCPC), a produção “antecipada” de prova terá o condão diametralmente oposto: evitar o ajuizamento de qualquer outra demanda futura em decorrência, justamente, da convicção formada a partir da prova produzida.
É dizer: o CPC/2015 consolidou, legalmente, a premissa de que o direito à prova pode assumir não só natureza instrumental, mas também se afigura como um direito material, tutelável de per si, através de ação autônoma que segue o procedimento especial previsto nos arts. 381 a 383.
Bem identificada sua natureza, acredita-se que o instituto ficaria melhor situado se tivesse sido encartado no rol de procedimentos especiais constante do Título III, do Livro I da Parte Especial do Código. Mais do que isso, ao invés do nome “produção antecipada de prova”, melhor seria tê-lo batizado com a alcunha já adotada na doutrina e que, acreditamos, corresponde com maior fidelidade tanto à natureza como ao objetivo do instituto: ação autônoma de produção de prova.
_____________________________
1 Doutorando e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro Fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual. Professor de Processo Civil em cursos de graduação e pós-graduação. Advogado.
2 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: RT, 2001. p. 170.
3Ver, por todos: HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia, entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. V. 1.
4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção. 3. ed. São Paulo: RT, 2015. p. 29-74.
5 Tanto assim que, embora as demandas cautelares em geral pudessem ser tanto preparatórias como incidentais ao processo principal (art. 796, CPC/1973), nos termos do art. 844, a cautelar típica de exibição tinha cabimento somente na forma preparatória, já que, uma vez proposta a ação principal, o mesmo resultado poderia ser obtido dentro dela própria, sem a necessidade do manejo da medida cautelar (processualmente) autônoma, valendo-se a parte do procedimento da exibição incidental disciplinado nos arts. 355 e ss., do CPC/1973.
6
“(...) o pedido cautelar poderá ser antecedente, nos termos dos arts. 305 e seguintes do CPC/2015. Nada impede a antecipação do meio de prova, como tutela provisória de urgência cautelar, antes do ajuizamento do pedido principal”. (MARINS, Graciela. Comentários ao art. 381, CPC/2015. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; et al. (Coords.). Código de Processo Civil anotado. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016. p. 541.)
7
Ovídio Baptista há longa data afirmava que “a exibição pode constituir-se em simples expediente probatório, sem que a parte exerça pretensão à segurança e pode derivar de direito autônomo à exibição que não é também cautelar e muito menos expediente probatório” (destacamos). SILVA, Ovídio A. Baptista da. As ações cautelares e o novo processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 144). Ao tratar da produção antecipada de provas Piero Calamandrei refletiu sobre sua natureza cautelar, admitindo-aquando a finalidade fosse a de antever e de reservar para acontecimentos futuros, como materiais brutos destinados a uma construção ainda em projeto, elementos que servem para a formação de um processo de conhecimento futuro (...) na falta do que, esses procedimentos cautelares ficariam inutilizados, como todas as precauções tomadas em vista de um perigo que depois não acompanha o evento temido”. (destacamos). CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Tradução: Carta Roberta Andreasi Bassi. Campinas: Servanda, 2000. p. 57-58.
8
Na dicção literal do art. 861, a justificação tinha cabimento quando alguém pretendesse “justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para simples documento e sem caráter contencioso”. Desta forma, como lecionava Ovídio Baptista, não obstante situada topograficamente no Livro III, do CPC/1973, a ação de justificação “não é cautelar, bastando-lhe o simples interesse na constituição da prova de algum fato ou relação jurídica, sem que o requerente alegue sequer urgência para a coleta da prova”. (SILVA, Ovídio A. Baptista. Do processo cautelar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 471).
9
Como explica Flávio Luiz Yarshell, “o CPC de 2015 positivou o que se pode qualificar como direito autônomo à prova. (...) A medida probatória autônoma encontra fundamento no poder ou direito de ação (CF, art. 5º, XXXV), que tem amplitude suficiente para autorizar o interessado, sem propriamente invocar a declaração do direito material em dado caso concreto, a postular atuação estatal dirigida à busca, obtenção e produção de providências de instrução. O direito à prova – com tal concepção – se afeiçoa não apenas ao escopo jurídico da jurisdição, mas especialmente ao escopo social, de pacificação pela superação da controvérsia” (grifamos). YARSHELL, Flávio Luiz. Comentários ao art.381, CPC/2015. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; et al. (Coords.). Breves comentários ao novo CPC. 3. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 1150.
10 “É, pois, ação que busca o reconhecimento do direito autônomo à prova (...) que se esgota na produção da prova – tão somente”. (DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. Vol. 2. 11. ed. Salvador: Juspodium, 2016. p. 141.). Consigna-se que, para os autores, quando o objeto da demanda recair sobre a prova documental, a ação cabível será a ação de exibição. (Idem. p. 142). Em que pese o destaque quanto ao nomen iuris, ao tratar especificamente da referida ação de exibição, invocam expressamente os arts. 381 a 383: “a exibição de coisa ou documento contra a parte adversária poderá ocorrer por ação autônoma. Seria uma ação probatória autônoma, nos termos em que autorizada pelos arts. 381-383, CPC” (Idem. p. 235).
11 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar. 23. ed. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2006. p. 51-56.
12 MARINS, Graciela. Comentários ao art. 381, CPC/2015. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; et al. (Coords.). Código de Processo Civil anotado. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016. p. 540.
13 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 660.
Por André Luiz Bäumi Tesser - 31/10/2016
A tutela cautelar e a antecipação de tutela estão tratadas no novo Código de Processo Civil brasileiro especialmente nos artigos 294 a 310, topograficamente inseridos no Livro V, da Parte Geral, denominado “Tutela Provisória”. Nesse particular, portanto, veja-se quer o novo Código dá novo tratamento à temática dos chamados “provimentos de urgência”, topograficamente situando a tutela cautelar e a antecipação de tutela em um mesmo Livro. Tal posicionamento é bem diverso daquele que a legislação codificada de 1973 adota, mesmo após suas reformas. Isso porque, no CPC/1973, a tutela cautelar é vista como tertium genius de atividade jurisdicional, e, por isso é disciplinada em Livro próprio (Livro III – Do Processo Cautelar), enquanto a antecipação de tutela, enquanto técnica genérica, é disciplinada no Livro I, do Código (Processo de Conhecimento), especialmente nos artigos 273 e 461, § 3º.
Em verdade, a nova legislação aponta que a “tutela provisória” pode ser fundada com base na urgência ou na evidência. Insere ainda as medidas urgentes ora mencionadas como espécies do gênero tutelas provisórias de urgência. É o que se depreende do seu artigo 294, que determina que: “A tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência. Parágrafo único. A tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental”. Mais especificamente, aliás, no Título I, do citado Livro, denominada “Tutela de Urgência”.
A partir de uma leitura sistemática, é possível dizer que a nova legislação adota sob o signo tutela de urgência, a tutela provisória que tem por fundamento a existência de um perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. Tal definição parece emergir de uma leitura a contrario sensu do artigo 311, do novo Código, que, ao estabelecer a chamada Tutela da Evidência, a diferenciou da tutela de urgência justamente porque independe da demonstração das citadas situações de perigo.
Portanto, tutela cautelar e antecipação de tutela, para o novo Código de Processo Civil brasileiro, podem ser definidas como tutelas provisórias de urgência. Ou seja, tutelas jurisdicionais que não têm o condão de serem definitivas e que são concedidas com fundamento (e em razão de) um perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo.
Sobre a temática objeto desse ensaio, naturalmente há várias questões a serem discutidas. Todavia, opta-se por abordar duas perspectivas gerais importantes.
A primeira diz respeito à inexistência de distinção quanto aos requisitos gerais positivos para a concessão das medidas. O caput do artigo 300 do novo Código de Processo Civil especialmente dispõe que: “A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.
Assim, depreende-se de uma leitura simples do citado dispositivo legal que os pressupostos que precisam estar presentes para a concessão da tutela de urgência, seja ela de natureza antecipada ou cautelar, são os mesmos, quais sejam: a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo .
A outra perspectiva é a adoção de procedimentos diversos para cada uma daquelas espécies de tutela de urgência apontadas no novo Código de Processo Civil, especialmente quando forem requeridas de forma antecedente, ou seja, na dimensão da nova legislação, antes de ajuizada ação que busca a tutela jurisdicional definitiva.
O pedido de tutela antecipada antecedente impõe ao autor, quando a medida for concedida, o ônus de aditar a petição inicial, com a complementação da sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em quinze dias, ou em outro prazo maior que o juiz fixar (artigo 303, § 1º, inciso I), sendo que, o não antendimento a essa regra implica a extinção do processo sem resoluçao do mérito (artigo 303, § 3º).
Ainda, a tutela antecipada requerida em caráter antecedente pode tornar-se estável, se da decisão que a concede não for interposto o respectivo recurso (artigo 304, caput), salientando-se que o recurso cabível contra tal decisão é o agravo de instrumento, na forma do artigo 1.015, inciso I, da nova legislação.
Assim, e porque o artigo 304, § 1º, determina que, no caso de estabilização da tutela antecipada, o processo será extinto, caso não haja a interposição de recurso contra a decisão que conceder a tutela antecipada em caráter antecedente, o autor não precisará aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, na forma do artigo 303, § 1º, inciso I.
No caso da tutela antecipada antecedente, e após o aditamento do pedido inicial, com a dedução do pedido de tutela final, o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação na forma do art. 334, sendo que, se não houver autocomposição, o prazo para contestação será contado na forma do art. 335, como estabelece o artigo 303, § 1º, inciso II.
Por outro lado, no caso de pedido de tutela cautelar antecedente, a efetivação da medida concedida imporá ao autor o ônus de formular o pedido inicial no prazo de 30 (trinta) dias, que será apresentado nos próprios autos da medida cautelar, independentemente de adiantamento de novas custas processuais (artigo 305, caput). Caso o autor não formule o pedido principal no prazo assinalado, a medida cautelar perderá sua eficácia, na forma do artigo 309, inciso I .
De se destacar, portanto que, o novo Código de Processo Civil não previu a estabilização da tutela cautelar concedida em caráter antecedente, como fez com a tutela antecipada de igual natureza temporal.
No procedimento da tutela cautelar antecedente, a nova legislação prevê que o réu será citado para, no prazo de cinco dias, contestar o pedido e indicar as provas que pretende produzir (artigo 306).
Dessa simples análise, parece que a nova legislação padece do mal da bipolaridade. Ao mesmo tempo em que indica não haver necessidade de estabelecimento da diferença entre a tutela cautelar e a tutela antecipada, no que tange aos seus requisitos positivos de concessão, ressalta ser muito importante a distinção entre aquilo que considerou espécies do gênero tutela provisória de urgência, especialmente a partir da possibilidade ou não de estabilização dos efeitos da medida concedida e, também, com a adoção de procedimentos diferenciados.
A título conclusivo, e a partir da análise da distinção entre tutela cautelar e tutela antecipada no novo Código de Processo Civil, é possível apontar as seguintes considerações: (i) a nova legislação reafirma a ideia mais antiga e clássica de que a distinção entre as medidas se dá a partir do resultado com ela obtido para o direito material, posto que a tutela cautelar conservará o direito material somente, ao passo que a tutela antecipada o realizará plenamente; (ii) em razão disso, a tutela cautelar e a tutela antecipada são apresentadas como espécies do gênero tutela provisória de urgência; (iii) tal concepção levou à ausência de distinção de requisitos positivos para a concessão de cada uma das medidas, sem a criteriosa diferenciação, inclusive, das diversas situações de perigo possíveis de condicionar medidas urgentes.
Assim, a nova sistemática dos provimentos de urgência deverá ser tratada com cuidado, especialmente pelos magistrados quando de sua eventual concessão, uma vez que a definição da natureza da medida a ser concedida repercutirá de forma inegável tanto no plano material (com a possibilidade ou não de sua estabilização) quanto no plano processual (com a adoção de procedimentos diferentes).
__________________
1 Advogado, professor universitário de Graduação e de Pós-Graduação, Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Doutorando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
2 Isso porque é possível apontar, no plano legislativo, ao menos uma distinção quanto a um requisito negativo para concessão das medidas. O novo Código de Processo Civil, no § 3º, do artigo 300, determina que “A tutela de urgência, de natureza antecipada, não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão”. Assim, é de se dizer que o perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão é requisito negativo para a concessão da tutela de urgência de natureza antecipada, permitindo uma interpretação a contrario sensu de que tal pressuposto não se aplica à tutela de urgência de natureza cautelar. A ausência da distinção no que tange aos requisitos positivos para concessão da tutela cautelar e da antecipação de tutela é reforçada novo Código de Processo Civil em seus artigos 303 (que trata da tutela antecipada requerida em caráter antecedente) e 305 (que trata da tutela cautelar requerida em caráter antecedente).
3 Também são razões para a cessação da eficácia da tutela cautelar concedida em caráter antecedente a não efetivação da medida em 30 (trinta) dias (artigo 309, inciso II) e o julgamento de improcedência do pedido principal formulado ou a extinção do processo sem resolução de mérito (artigo 309, inciso III). Em todos os casos de cessação da eficácia da tutela cautelar tratados no artigo 309, da nova legislação, fica vedada a propositura a renovação do pedido, salvo por novo fundamento (artigo 307, Parágrafo Único).
Por Fernanda Pederneiras- 01/11/2016
No último dia 31 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou julgamento sobre a validade do tratamento diferenciado da sucessão do companheiro, em razão das disposições dos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil. A questão foi levada a julgamento pelo Min. Luís Roberto Barroso, relator do Recurso Extraordinário nº 878694/MG, após o reconhecimento da repercussão geral do tema em abril de 2015.
O recurso foi interposto pela companheira do falecido, que não deixou nem ascendentes nem descendentes, mas apenas três irmãos. O Tribunal de origem (TJMG), aplicando o disposto no art. 1.790, III, do CC/02, concedeu à companheira sobrevivente direito à herança sobre um terço dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, destinando aos irmãos a parte restante, que incluía também bens particulares. Se casada com o falecido, a companheira receberia a totalidade dos bens por ele deixados.
Em fundamentado voto, Luís Roberto Barroso salientou que, estando o direito sucessório vinculado ao conceito de família, de continuidade patrimonial como fator de proteção, mostra-se inadmissível qualquer distinção entre os modelos de família equiparados pela Constituição Federal de 1988, sob pena de afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. O Min. ressaltou, ainda, que o regime sucessório estabelecido atualmente pela lei civil às uniões estáveis viola os princípios da proporcionalidade como vedação à proteção estatal insuficiente e da vedação ao retrocesso, na medida em que até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, cônjuges e companheiros ocupavam a mesma posição na ordem de vocação hereditária e tinham direito tanto ao usufruto como ao direito real de habitação (leis 8.971/94 e 9.278/96).
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) participou do julgamento como amicus curiae para defender a inconstitucionalidade do tratamento sucessório conferido aos companheiros pelo art. 1.790 do CC/02. Em sustentação oral da Profª Ana Luíza Nevares, o IBDFAM requereu o reconhecimento jurídico da equiparação entre cônjuge e companheiro no âmbito sucessório, pugnando pela aplicação dos mesmos dispositivos legais previstos para a sucessão das famílias provenientes do casamento.
O voto do Relator, acompanhando pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luis Fux, Celso de Mello e Carmen Lucia, pugnou pela exclusão do art. 1.790 do Código Civil e aplicação do mesmo regime sucessório aos cônjuges e companheiros, nos termos do art. 1.829. Em observância à segurança jurídica, Barroso propôs a modulação dos efeitos da decisão, para atingir apenas os processos judiciais em que não tenha havido o trânsito em julgado da sentença de partilha e os inventários extrajudiciais nos quais não tenha sido lavrada a escritura pública. O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do Min. Dias Toffoli e ainda não tem previsão de pauta.
Por Phillip Gil França- 03/02/2017
Legalidade é, basicamente, saber lidar com seus limites frente ao mundo, bem como, saber lidar com os limites do mundo frente a você. O sentido e as fronteiras de eficácia da norma constitucional da legalidade (caput do art. 37) são definidos no momento da aplicação desse sentido de legalidade à concreta realidade a que se destina.
Logo, apenas quando se determina a sujeição da Administração à legalidade, em situações reais e determinadas – ao regular o aspecto geral e abstrato da lei – pode se observar a abrangência e o objeto a que se destina o pilar da atuação administrativa estatal, qual seja: agir conforme o princípio da legalidade sob uma perspectiva substancial.
Nesse prisma, o princípio da legalidade, como delineador da atividade administrativa estatal, é efetivado com a concreta realização do direito na realidade a qual é submetido. Significa, então, que enquanto não ocorre a conclusão da filtragem axiológica jurídica do ato administrativo aplicado, acompanhado de motivação proporciona ao seu impacto no mundo real, o princípio da legalidade não presta para delimitar a Administração Pública, conforme determina a Constituição.
A mera retórica de agir nos limites da lei, como dicção do caput do art. 37 da CF/88 não adequa as tarefas administrativas do Estado aos objetivos fundamentais da República estabelecidos no art. 3º da Constituição.
Agir conforme a legalidade é agir conforme o sistema jurídico estabelecido para proteger, promover e realizar o Estado necessário e proporcional para todos, isonomicamente.
Nesse sentir, princípio da legalidade é instrumento limitador da Administração Pública para que, quando aplicado em situações individualizadas, viabilizem o constante desenvolvimento intersubjetivo dos partícipes do Estado, indistintamente. E porque limita e, muitas vezes, restringe, mister é a apresentação de uma correspondente motivação robusta para se estabelecer o nexo causal entre a produção do ato administrativo e o interesse público concreto a ser promovido por tal atuação estatal.
Logo, além da mera legalidade estrita, além da juridicidade que vincula o agir administrativo conforme a lei e o direito, o princípio da legalidade fundamenta, estrutura e estabelece interligações desenvolvimentistas de todo o sistema estatal.
Assim, pensar em legalidade é idealizar a aplicação da lei como sistema promotor de desenvolvimento objetivo e subjetivo dos envolvidos, direta e indiretamente, quando da atividade administrativa do Estado.
Nesse universo da legalidade administrativa substancial, deixa-se uma questão: qual justiça queremos? A da legalidade real.
Entretanto, vale lembrar que justiça nas mãos de poucos é, quase sempre, injustiça. Isso porque, "justiça" depende de uma concreta interatividade social entre indivíduos que se identificam e se reconhecem em standards culturais mínimos de como alcançar o desenvolvimento pessoal e de seus pares em um determinado tempo e espaço.
É necessário o diálogo das fontes, das causas, dos resultados e das consequências para o afastamento da aflição da injustiça em casa indivíduo, em cada grupo, em cada nicho social, em cada ente representativo de Estado e em cada manifestação de tutela do cidadão em nome de um desenvolvimento comum, a partir de renúncias recíprocas e proporcionais, que apenas o tal "senso de justiça" pode indicar a direção.
Torna-se essencial, então, para os indivíduos sedentos de desenvolvimento a sistematização intersubjetiva desses standards culturais mínimos, para se estabelecer, objetivamente, caminhos bem asfaltados de como agir e reagir em um determinado grupo que almeja evoluir para melhor aproveitar o tempo que dispõe, sempre idêntico para todos, mas que pode, constantemente, também, ser melhor gerenciado.
Logo, a noção do agir corretamente e do reprovar o equivocado torna-se luz nos escuros túneis do império da autotutela social, bem como, da imposição da unilateral vontade do mais forte.
Nesse sentir, a densificação dos valores em princípios e, após, em regras, conformam sistemas que determinam o legal, em conformidade com o correto, estabelecido de forma objetiva e isonômica para todos, em razão de todos, bem como, indica a ideia de reprovação do errado e dos instrumentos de reconstituição das consequências reais e jurídicas das agressões ao sistema de legalidade estabelecido.
Destarte, passamos a seguir e a cobrar que sigam passos de legalidade nos caminhos constitucionalmente ladrilhados de busca de um melhor futuro permanentemente renovado - a partir da "legalidade", como valor que limita o meu agir conforme critérios de fazer o correto, mediante standards objetivamente estabelecidos e, nesta mesma lógica, de afastar o errado, limitando a minha e as demais liberdades, em nome de uma proteção pessoal frente aos outros e de uma proteção dos outros frente a mim.
Para tanto, o agir administrativo precisa estar voltado para uma Justiça e uma Legalidade estatal a partir de suas consequências no mundo real.
No sentir-se justiçado, em um ambiente regulatório estatal, faz-se necessário a sensação de atendimento do que precisa para si, a partir da realização do que é necessário para se realizar como um ser humano digno de limites de suas ações, conforme a limitação das ações dos demais frente a si próprio.
O justo é o que não extrapola o que se deve fazer e o que devem fazer em face de todo aquele titular de direitos que lhe trazem a sensação de justiça, reciproca, proporcional e sustentável para que o homem justo – e promotor de justiça – possa viabilizar um renovado mundo de liberdades limitadas por justiças intersubjetivas contrapostas.
Ou seja, depende-se, ainda e muito, das rotinas de legalidades estabelecidas pelo Estado para que os humanos entendam que a justiça que procuram estão atreladas à justiça que promovem.
Nesse sentir, roteiros estabelecidos de ações e repercussões, conforme critérios substanciais de legalidade, ainda são importantes e precisam ser considerados sob a perspectiva das consequências no mundo real.
A justiça está aqui, não apenas em um processo.
Por Ingo W. Sarlet e Jayme W. Neto - 03/02/2017
RESUMO: O presente artigo discute, em perspectiva jurídico-constitucional, a realização do interrogatório no início ou no final da instrução em processo penal, avaliando o problema à vista das exigências da ampla defesa e do devido processo legal e da assim designada dimensão objetiva dos direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais; processo penal; interrogatório do réu.
SUMÁRIO: 1 Introdução: apresentando e delimitando o problema; 2 As razões em causa e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal; 3 A fundamentação constitucional: máxima eficácia das normas de direitos fundamentais e a sua respectiva dimensão objetiva; Conclusão.
1 INTRODUÇÃO: APRESENTANDO E DELIMITANDO O PROBLEMA
Diferentemente do que prevê o art. 400 do Código de Processo
Penal brasileiro (doravante apenas CPP), de acordo com o qual
o interrogatório do denunciado deverá ser realizado ao final da
fase instrutória, após a inquirição das testemunhas, são diversos os diplomas
legislativos (com destaque para o art. 57 da Lei de Drogas e para a legislação penal
eleitoral) que preveem que seja tal ato realizado – como, de resto, correspondia
à regra antes da alteração do CPP – na fase inicial do processo, ou seja, antes da
coleta da prova testemunhal.
Muito embora a ressalva estabelecida no próprio art. 400 do CPP, no
sentido de que exigência do interrogatório ao final da instrução não é aplicável
a procedimentos que obedecem a rito previsto em lei especial, sobreveio
relativamente acirrada discussão sobre a legitimidade constitucional de tal
previsão, já que a realização do ato depois da inquirição das testemunhas teria o
condão justamente de assegurar ao denunciado a possibilidade de se manifestar
– em homenagem ao direito de ampla defesa – por último. Contudo, importa
ter em conta que em causa não está somente a garantia (direito fundamental)
da ampla defesa, mas também aspectos de segurança jurídica e mesmo questões
relevantes em matéria de interpretação constitucional e compreensão dos
critérios de solução de antinomias jurídicas.
Por outro lado, verifica-se que a jurisprudência segue dividida e não fornece
referenciais seguros, havendo tanto Magistrados que acabaram superando o
critério da especialidade e passaram a realizar o interrogatório ao final quanto
os que seguem, especialmente em se tratando da legislação de drogas, colhendo
a versão do réu na fase inaugural da instrução.
As razões esgrimidas em prol da manutenção do interrogatório no
início do processo são diversas e merecem toda a consideração, razão, aliás, da
própria existência deste texto. Ademais, não se cuida apenas de estabelecer o
momento constitucionalmente correto para a coleta do interrogatório, mas sim
de identificar as consequências jurídicas advindas de sua desconsideração.
Assim, por exemplo, é possível invocar o argumento de que o interrogatório no
início, de modo suficiente e eficaz, assegura o contraditório e a ampla defesa.
Além disso, por razões de segurança jurídica, assume relevo a circunstância
de que, embora aplicando não apenas a lei especial, mas também cumprindo a
própria ressalva do art. 400 do CPP, a declaração de nulidade do ato realizado
no início da instrução estaria a consagrar uma espécie de inconstitucionalidade
superveniente por força de alteração de lei ordinária geral, sem prejuízo da
instabilidade daí resultante3.
Assim, esboçada a questão, o que se pretende é avaliar as razões favoráveis
e contrárias, especialmente tal como esgrimidas na esfera jurisprudencial, ao
interrogatório no final da instrução, mesmo no caso de previsão diversa em lei
especial, quanto à sua consistência constitucional, designadamente à vista da
dimensão organizatória e procedimental dos direitos fundamentais (vinculada
ao que se convencionou designar de sua dimensão objetiva), com destaque para
o direito-garantia da ampla defesa e a correta aplicação dos princípios diretivos
da interpretação constitucional. Além disso, convém frisar, há que dialogar com
as exigências nucleares da segurança jurídica, incluindo o respeito a precedentes
dos Tribunais Superiores, especialmente no que diz respeito ao problema das
consequências advindas da violação de eventual direito de matriz constitucional
e da prática decisória do Supremo Tribunal Federal (STF).
2 AS RAZÕES EM CAUSA E O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como já sinalizado, a realização – em todos os procedimentos criminais
(mesmo os previstos em legislação especial) – do interrogatório ao final da
instrução tem sido amplamente discutida nos diversos segmentos do Poder
Judiciário nacional4, tendo, ademais, aportado nos Tribunais Superiores,
designadamente, para o efeito de nossa análise, dada a relevância constitucional
da matéria, o STF. Nas instâncias ordinárias, igualmente segue controversa
a questão, como dá conta, em caráter meramente ilustrativo, o caso da
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde se verifica
dissídio sobre a matéria5. Todavia, antes de apresentar e comentar a orientação
do STF e encaminhar a nossa posição sobre o tema, convém esboçar de forma
mais precisa o problema e suas principais dimensões.
Conforme alteração trazida pela Lei nº 11.719/2008, o art. 400 do Código
de Processo Penal passou a ter a seguinte redação:
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a
ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias,
proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido,
à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação
e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no
art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos
dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas
e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
O procedimento ordinário, ao qual se refere o texto do mencionado
art. 400, tem aplicação quando inexistente previsão em ordem de legislação
especial ou outra disposição em sentido contrário, na hipótese de sanção
máxima cominada igual ou superior a 4 (quatro) anos de privação de liberdade
(art. 394, § 1º, inciso I). Portanto, haveria óbice a arrostar já na partida, pois o
procedimento ordinário é uma das modalidades do procedimento comum
(art. 394, § 1º, do CPP) e cederia diante de lei especial, nos termos da própria
Lei nº 11.719/2008, que incluiu o § 2º no art. 394. Mais ainda: quando a nova
legislação (Lei nº 11.719/2008) pretendeu aplicação geral, sem ressalva de
lei especial, explicitamente o comandou (precisamente no § 4º do art. 394 em
comento), caso das disposições dos arts. 395 a 398 do Código de Processo Penal.
De qualquer sorte, a despeito da ressalva estabelecida no que diz com
disposição de caráter especial em sentido diverso, passou a ganhar (mais) espaço
a tese de que a realização do interrogatório ao final do procedimento, nos termos
da atual redação do art. 400 do CPP, garante ao acusado a plenitude do direito
constitucional à ampla defesa e ao contraditório. A aplicação disso aos procedimentos
regrados por legislação especial (como é o caso, pela sua relevância, da assim
chamada Lei de Drogas [Lei nº 11.343/2006] ou mesmo na seara da legislação
eleitoral), atenderia, segundo determinada linha argumentativa, ao princípio
da máxima eficácia e efetividade da Constituição, uma das linhas mestras
da interpretação constitucional6, ademais de se tratar de desdobramento
da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que implicam deveres de
proteção do Estado e exercem uma função organizatória e procedimental, que,
entre outras derivações, estabelece um dever de assegurar a via procedimental
mais efetiva em termos de proteção dos direitos fundamentais, desde que
disso não resulte compressão desproporcional de outros direitos e garantias
de matriz constitucional. Tal linha de argumentação carece, todavia, de maior
aprofundamento, notadamente tendo em conta as peculiaridades do problema
concreto que ora se discute.
Nesse contexto, é possível invocar o argumento de que a ressalva expressa
à existência de “disposições em contrário” (§ 2º do indigitado art. 394 do Código
de Processo Penal) – a indicar que, inexistindo, na Lei de Drogas, regra explícita
determinando seja o interrogatório realizado ao final da instrução, ou mesmo
havendo vedação de tal possibilidade (como é o caso, precisamente, do que
se pode inferir da leitura do caput do art. 57 da Lei nº 11.343/2006) – dificulta
a incidência do disposto no art. 394, § 5º, que resguarda a possibilidade de
aplicação subsidiária, aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo, das
disposições do procedimento ordinário. Verifica-se, neste nódulo problemático,
a necessidade de compatibilizar os dispositivos da legislação especial (anterior)
e da comum (geral e posterior), o que, aliás, representa a generalidade das
situações, já que, ao menos por ora, a legislação que não prevê o interrogatório
como último ato da instrução é anterior à reforma do art. 400 do CPP.
Dito de outra forma, no esforço de clareza: as inovações trazidas pela Lei
nº 11.719/2008 concernem aos ritos ordinário, sumário e sumaríssimo. A ação
penal que versa sobre o crime de tráfico de drogas tem previsão em legislação
especial, cabendo, no caso, observar o procedimento estabelecido nos arts. 54
a 59 da Lei nº 11.343/2006. Nada obstante, a conciliação do rito previsto na Lei
nº 11.343/2006 com a disposição do art. 400 do CPP se nos parece possível.
Com efeito, além de não existir, em rigor lógico, incompatibilidade entre as normas7, trata-se de atender, como já adiantado, ao dever de assegurar a alternativa
mais favorável em termos de proteção dos direitos e garantias fundamentais do
acusado.
Mas a questão, embora possa parecer, em uma primeira mirada, de fácil
elucidação, não é assim tão singela.
Uma primeira objeção – já aventada – vai no sentido de que não é
necessariamente correta a afirmação de que o interrogatório ao final da
instrução estabeleça inexoravelmente um regime mais benéfico para o réu, pois
este poderá mesmo, estrategicamente, querer trazer sua versão o quanto antes
ao feito, inclusive podendo, com isso, agilizar eventual liberdade provisória.
Que tal argumento não pode subsistir, por si só, como apto a afastar a tese
aqui sufragada, já se percebe pelo fato de que, ao final da instrução, o réu terá
a oportunidade de direcionar a sua defesa (e autodefesa) de modo muito mais
seguro, à vista das provas já colhidas, dos depoimentos de vítimas e testemunhas.
Além disso, sempre resta a alternativa de deferir, mediante específico e
tempestivo requerimento por parte da defesa, seja o réu interrogado no início
da instrução, de modo a ter assegurada a sua liberdade de opção e de avaliação
quanto à conveniência e oportunidade do ato, sem prejuízo de se permitir, seja
o interrogatório renovado ao final, caso aferida a necessidade.
Importa frisar que o próprio STF já sinalou (ao enfrentar a questão do
interrogatório das ações penais originárias do STF) a prevalência do art. 400 do
CPP, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, em detrimento do previsto
no art. 7º da Lei nº 8.038/1990, porque propicia maior eficácia à defesa, sendo
tal prática benéfica à defesa e em uma interpretação teleológica e sistemática do direito
(STF, AgRg-Ação Penal nº 528, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em
24.03.2011), muito embora – convém frisar – a Corte Suprema tenha ressalvado
as ações penais nas quais o interrogatório já havia sido realizado.
Na mesma linha, mais recentemente, em relação ao processo penal militar,
julgados no sentido de que a “máxima efetividade das garantias constitucionais
do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares
do devido processo legal (CRFB, art. 5º, LIV, CF) e cânones essenciais do Estado
Democrático de Direito (CRFB, art. 1º, caput) impõem a incidência da regra geral
do CPP” (HC 115698/AM, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, J. em 25.06.2013 e
HC 115530/PR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, J. em 25.06.2013). No mesmo
sentido, vale invocar a decisão – também do STF – na Medida Cautelar no Habeas
Corpus nº 107795 – MC/SP, Relator Ministro Celso de Mello, Julgada em 28.10.11,
que destaca a utilização de opção hermenêutica que se mostra mais compatível com o
exercício pleno do direito de defesa.
Todavia, o mesmo STF, posteriormente ao primeiro precedente citado
(AgRg-Ação Penal nº 528, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em
24.03.2011), consignou a impossibilidade de novo interrogatório ao final da
instrução, justamente no que tange à Lei nº 11.343/2006, acenando, no caso, com
o princípio da especialidade. Convém ter em conta, contudo, que uma leitura
atenta do julgado parece demonstrar que o motivo determinante da decisão foi
o fato do interrogatório em tela ter ocorrido antes da inovação do Código de
Processo Penal. Confira-se a ementa:
EMENTA: HABEAS CORPUS – PROCESSUAL
PENAL – PACIENTE PROCESSADA PELO DELITO
DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO SOB A
ÉGIDE DA LEI Nº 11.343/2006 – PEDIDO DE NOVO
INTERROGATÓRIO AO FINAL DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL
– ART. 400 DO CPP – IMPOSSIBILIDADE
– PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE – ATO PRATICADO
CONFORME A LEI VIGENTE À ÉPOCA –
AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO –
ORDEM DENEGADA.
I – Se a paciente foi processada pela prática do delito
de associação para o tráfico, sob a égide da Lei
nº 11.343/2006, o procedimento a ser adotado é o
especial, estabelecido nos arts. 54 a 59 do referido
diploma legal.
II – O art. 57 da Lei de Drogas dispõe que o interrogatório
ocorrerá em momento anterior à oitiva das testemunhas,
diferentemente do que prevê o art. 400 do Código de
Processo Penal.
III – O princípio processual do tempus regit actum impõe
a aplicação à lei vigente à época em que o ato processual
deve ser praticado, como ocorreu, não havendo razão
jurídica para se renovar o interrogatório da ré, como
último ato da instrução.
IV – Este Tribunal assentou o entendimento de que a
demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP,
332
é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou
absoluta, eis que, [...] o âmbito normativo do dogma
fundamental da disciplina das nulidades pas de
nullité sans grief compreende as nulidades absolutas”
(HC 85.155/SP, Relª Min. Ellen Gracie).
V – Ordem denegada (HC 113625/RJ, 2ª Turma, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, J. em 11.12.2012).
Entretanto, e sem conflito normativo intertemporal, em mais recente e
específica decisão, o STF concluiu que, “realizado o interrogatório da recorrente
sob o comando previsto no art. 57 da Lei de Drogas, não há razão jurídica para
determinar a sua renovação como último ato da instrução”. Saliente alguma
tergiversação em relação à Lei de Drogas, a decisão mencionada faz prevalecer
o critério da especialidade, a significar interrogatório prévio:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS –
PROCESSUAL PENAL – PACIENTE PROCESSADA
PELO DELITO DE TRÁFICO DE DROGAS SOB A
ÉGIDE DA LEI Nº 11.343/2006 – PEDIDO DE NOVO
INTERROGATÓRIO AO FINAL DA INSTRUÇÃO
PROCESSUAL – ART. 400 DO CPP – IMPOSSIBILIDADE
– PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE – AUSÊNCIA
DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO – RECURSO
ORDINÁRIO IMPROVIDO – I – Se a paciente foi
processada pela prática do delito de tráfico ilícito de
drogas, sob a égide da Lei nº 11.343/2006, o procedimento
a ser adotado é o especial, estabelecido nos arts. 54 a 59
do referido diploma legal. II – O art. 57 da Lei de Drogas
dispõe que o interrogatório ocorrerá em momento
anterior à oitiva das testemunhas, diferentemente
do que prevê o art. 400 do Código de Processo Penal.
III – Este Tribunal assentou o entendimento de que a
demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP,
é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa
ou absoluta, eis que [...] o âmbito normativo do
dogma fundamental da disciplina das nulidades pas de
nullité sans grief compreende as nulidades absolutas”
(HC 85.155/SP, Relª Min. Ellen Gracie).
IV – Recurso
ordinário improvido (RHC 116713/MG, 2ª Turma, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em 11.06.2013).8
À vista do exposto, é possível afirmar que, no âmbito do STF, ainda não
se verifica uma posição uníssona em relação à exigência de ser o interrogatório
prévio ou posterior à inquirição das testemunhas, inclusive quanto ao tipo de
procedimento em que isso deve ser observado, dada a existência de diversos
ritos especiais. Mas a situação não se apresenta diversa nos demais Tribunais
Superiores, nos quais também ainda impera o dissídio9.
Em que pese o foco ser a matriz constitucional, razão pela qual se prioriza
o STF, a ausência de uma diretriz firme por parte da nossa Corte Constitucional
acaba por favorecer a insegurança jurídica, especialmente no que diz respeito
às consequências do ato, pois, a depender da hipótese, poderá (ou não) resultar
a nulidade do feito a contar da fase instrutória. Daí mais uma razão a justificar
a necessidade de uma sólida fundamentação, designadamente de matriz
constitucional, do que nos ocuparemos na sequência, sem, contudo, restringir
o espectro argumentativo aos votos proferidos pelos Ministros do STF, embora
com os mesmos mantendo necessário diálogo.
3 A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL: MÁXIMA EFICÁCIA DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SUA RESPECTIVA DIMENSÃO OBJETIVA
Em uma primeira aproximação, ponderável a tese de que o interrogatório
ao final (pelo menos como regra a ser observada pelos Magistrados na condução
do processo) decorreria – consoante já apontado – do princípio hermenêutico
da máxima eficácia e efetividade da Constituição, que “implica o dever do intérprete
e aplicador de atribuir o sentido que assegure maior eficácia às normas
constitucionais. Assim, verifica-se que a interpretação pode servir de instrumento
para assegurar a otimização da eficácia e da efetividade, e, portanto, também
da força normativa da constituição”10. De modo que, podendo optar por duas regras diversas, prefere-se aquela que mais concretiza – como se dá na hipótese
(ao menos, é o que se sustenta enfaticamente) – o direito fundamental à ampla
defesa, a priori o art. 400 do CPP, mas não inexoravelmente, podendo a estratégia
de defesa, pessoal ou técnica, por miríades de razões, optar pelo interrogatório
ao início, aspecto que, contudo, será desenvolvido mais adiante. Por outro lado,
a simples afirmação genérica e desacompanhada de maior fundamentação à luz
do caso ora discutido, de que se está dando cumprimento ao mandamento da
interpretação mais favorável a direito fundamental, por si só, pouco nos diz e
reclama cuidadosa reflexão adicional.
Nessa perspectiva, há que conciliar o mandamento da máxima eficácia e
efetividade em matéria da interpretação/aplicação de normas jusfundamentais
com aquilo que se tem designado de dimensão objetiva dos direitos fundamentais,
que, a par de direitos subjetivos, também representam decisões valorativas
de natureza jurídico-objetiva da Constituição, que se projetam em todo o
ordenamento jurídico. Dito de outro modo, os direitos fundamentais passaram
a apresentar-se, no âmbito da ordem constitucional, como um conjunto de
valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos Poderes Públicos,
e não apenas garantias negativas (e positivas) dos interesses individuais11. Desta
categoria dogmática, a doutrina e a jurisprudência constitucionais derivam a
assim chamada eficácia irradiante dos direitos fundamentais, no sentido de
que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes
para aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, implicando
uma interpretação conforme aos direitos fundamentais de todo ordenamento
jurídico12. Da dimensão objetiva derivam, ainda, os deveres de proteção do Estado
(gradativamente reconhecidos pelo STF, v.g., HC 104410), que, naturalmente,
implicam deveres de atuação do Estado (prestação), inclusive no que se pode
designar (terceira derivação da dimensão objetiva) por função organizatória e
procedimental.
Já na perspectiva das posições subjetivas das quais é investido o titular
dos direitos fundamentais, consolidou-se a noção de que tais desdobramentos
da dimensão objetiva (deveres de proteção e dimensão organizatória e
procedimental) representam espécies do gênero direitos a prestações (ou
direitos positivos), visto que seu objeto é o de assegurar ao indivíduo a execução
(implementação) de procedimentos ou organizações em geral, ou mesmo a
possibilidade de participação em procedimentos ou estruturas organizacionais
já existentes13. Assim, a dimensão objetiva implica, em certa medida, uma
subjetivação, ou seja, a possibilidade de invocar tais efeitos perante o Poder Judiciário,
no caso, o direito do réu de exigir a aplicação de normas processuais que mais concretizem
seu direito fundamental à ampla defesa, e, na perspectiva do Estado, o correlato
dever de emitir (cuidando-se de hipótese de ausência de lei) e aplicar (o que
vale para o Estado-juiz) as normas procedimentais mais adequadas ao efetivo
exercício da ampla defesa.
Em suma, com o reforço da positividade constitucional, a partir do
disposto no art. 5º, § 1º, da CF e da assim chamada dimensão objetiva e de
seus desdobramentos, é possível sustentar a existência – ao lado de um dever
de aplicação imediata – de um dever, por parte dos órgãos estatais (mas com
ênfase nos órgãos jurisdicionais, a quem incumbe inclusive a revisão dos atos
dos demais entes estatais nos casos de violação da Constituição), de atribuição
da máxima eficácia e efetividade possível às normas de direitos fundamentais14.
Tal dever, de maximização da eficácia das normas de direitos fundamentais,
evidentemente não dispensa o exame criterioso de cada caso e
a avaliação do impacto da opção, no caso judicial, de, por força de uma
interpretação conforme aos direitos fundamentais (ainda que não tomada no
sentido estrito da técnica de interpretação conforme a constituição), superar a
regra legal (frise-se, infraconstitucional!) de caráter especial para aplicação de
alternativa mais favorável à ampla defesa e especialmente à defesa pessoal do
réu, quando tal opção não implica restrição de outro direito fundamental (o que
é precisamente que se verifica na hipótese) ou quando eventual restrição de
outro bem de hierarquia constitucional, no âmbito de uma avaliação relacional,
atende às exigências da proporcionalidade.
Assim, pode o interrogatório ser realizado ao final da instrução probatória
em detrimento do disposto na legislação específica, sem que tal heterotopia
comprometa o telos da audiência e sem que disso resulte compressão indevida
de outros direitos e bens constitucionais. Todavia, muito embora essa – à vista
de uma exegese afinada com as exigências dos direitos fundamentais e dos
respectivos deveres de proteção estatais – seja, s.m.j., a melhor resposta para
a situação examinada, nada impede, muito antes pelo contrário, que, a pedido
da defesa, no concreto exercício do direito fundamental esculpido no inciso LV
do art. 5º da CF, o interrogatório aconteça no início da fase instrutória, antes da
coleta da prova oral, pena de configurado cerceamento.
De todo modo, há que considerar algumas questões adicionais,
designadamente em virtude de suas implicações jurídicas.
Assim, é o caso de se indagar o que ocorre quando o Magistrado condutor
do processo criminal não tiver designado o interrogatório ao final e tiver havido
requerimento prévio (tempestivo) da defesa nesse sentido. Verificada tal
hipótese, será o processo nulo, a contar da audiência? A resposta, em princípio,
será sim, considerando-se, no caso, cerceamento da mais ampla defesa.
Além disso, cabe avaliar, no caso ventilado, se está em face de nulidade
sanável (relativa) ou insanável (absoluta)? Na esteira do regime das nulidades tal
como estabelecido pelo STF, trata-se, todavia, de nulidade relativa, a depender de
arguição oportuna (pena de preclusão) e demonstração do prejuízo. Entretanto,
é de se aventar indicativo de prejuízo pela perda da oportunidade de exercer a
autodefesa de acordo com a estratégia previamente estabelecida, o que deve ser
aferido em conjunto com a correlata condenação e trecho da prova oral sobre a
qual o réu não pode ofertar sua versão – presunção que não subsistiria, quer nos
parecer, em face de confissão espontânea ou exercício do direito constitucional
ao silêncio.
Outra interrogação diz com a reiteração do interrogatório, caso realizado
no início. Tal providência (reiteração, ao final, do interrogatório realizado no
início) supre a irregularidade, havendo, ou não, pedido da defesa nesse sentido?
Tem-se que sim, salvo demonstração em contrário, pois, ao fim e ao cabo,
oportunizou-se manifestação da defesa pessoal acerca do prova oral colhida.
CONCLUSÃO
Enfim, sem desconsiderar as regras (art. 57 da Lei nº 11.343/2006), a
posição externada no presente texto ainda ampara-se na preferência pela lei
(art. 400 do Código de Processo Penal) e harmoniza a segurança jurídica, valor
forte da normativa processual, com o exercício concreto da ampla defesa,
outro pilar constitucional do Estado Democrático de Direito e que possibilita a
pacificação social com justiça, aqui compreendida como aquela que emerge do
contraditório, na trilha do devido processo legal substancial e afinado com as
exigências da ampla defesa.
_______________________
1 Professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Ciências
Criminais (Mestrado e Doutorado) da PUCRS, Professor da Escola Superior da Magistratura do RS
(AJURIS), Juiz de Direito no RS e Juiz Efetivo do TRE/RS (biênio 2013-14).
2 Professor do Programa de Mestrado em Direito da UNILASALLE, Desembargador junto ao Tribunal
de Justiça do RS.
3 Cf., por exemplo, voto divergente na Apelação Crime nº 70053096376, TJRS, 3ª C.Crim., Rel. Des.
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, J. 28.03.2013.
4 Basta referir, aqui, o processo penal militar e o processo penal eleitoral.
5 Para ilustrar a controvérsia, no âmbito do TJRS, posiciona-se pelo interrogatório ao final, na Lei
de Drogas, a 3ª Câmara Criminal (v.g., Apelação Crime nº 70058577255, TJRS, 3ª C.Crim., Rel. Des.
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, J. 12.06.2014), ao passo que a 1ª e a 2ª Câmaras, fazendo prevalecer
a especialidade, chancelam o interrogatório ao início da audiência (por exemplo, Apelação Crime
nº 70056951502, TJRS, 1ª C.Crim., Rel. Des. Julio Cesar Finger, J. 09.04.2014; Apelação Crime
nº 70050078617, TJRS, 2ª C.Crim., Relª Desª Lizete Andreis Sebben, J. 26.06.2014).
6 Cf., entre tantos: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina. p. 1224.
7 Daí porque não há que se cogitar de derrogação do art. 57 da Lei nº 11.343/2006, nos exatos lindes
do § 1º do art. 2º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro,
com redação dada pela Lei nº 12.376/2010). Aliás, o art. 400 do CPP, em nossa opinião, amolda-se
justamente ao § 2º do art. 2º da Lei de Introdução, não revogando nem modificando a lei anterior.
8 Em sentido idêntico: HC 121.953/MG, 2ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em 10.06.2014.
9 No STJ, por exemplo, a tendência, em relação à Lei de Drogas, é no sentido de preponderar o art. 57 da
Lei Especial, e.g. HC 267.598/MG, 6ª T., Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, J. 13.05.2014 (no caso, havia
conexão com a Lei nº 10.826/2003, que segue o rito comum ordinário, e mesmo assim prevaleceu a
unidade de processo e julgamento segundo a Lei nº 11.343/2006: interrogatório como primeiro ato da
audiência de instrução e julgamento).
10 SARLET, Ingo Wolfgang. O sistema constitucional brasileiro. In: ______; MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 215.
11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20. ed. Heidelberg:
C.F.Müller, 1995. p. 133.
12 Cf., por todos, na doutrina brasileira: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso
de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva. p. 166 e ss.
13 Cf. por todos: ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994.
p. 395 e ss.
14 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012. p. 261 e ss.
Por Ingo W. Sarlet - 03/02/2017
SUMÁRIO: 1. Observações preliminares. 2. Fundamentação e conteúdo do direito à moradia como direito Fundamental social na ordem jurídico-constitucional brasileira: um complexo de direitos (poderes) e deveres negativos e positivos. 2.1. Breves notas sobre o direito à moradia como direito fundamental. 2.2. Conteúdo do direito à moradia como complexo heterogêneo de direitos (e deveres) negativos e positivos. 3. O direito à moradia na condição de direito de defesa: algumas possíveis manifestações. 4. O Supremo Tribunal e a discussão em torno da possibilidade de penhora do imóvel residencial do fiador no âmbito de contrato de locação. 5. Algumas considerações adicionais.
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARESo do direito à moradia no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (doravante apenas referida como CF),
além de algumas alterações na esfera legislativa
– como dá conta, em especial, a edição do assim designado estatuto das cidades – foi sucedida por um número significativo de demandas e decisões judiciais invocando o direito à moradia, na sua condição de direito fundamental social. Se mesmo antes da recepção expressa do direito à moradia este já era tido, por alguns representantes na doutrina e mesmo na esfera jurisprudencial, como implicitamente contemplado pela CF (embora já expressamente consagrado em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil), após sua incorporação ao texto do artigo 6º passou a não ser mais possível refutar a consagração deste direito fundamental e, portanto, passou a ser cogente (pelo menos, assim o deveria ser!) a consideração das conseqüências jurídicas de tal reconhecimento. Todavia, tal não significa dizer que a respeito de tais conseqüências jurídicas não se verifiquem uma série de controvérsias, que principiam já pela discussão em torno da própria fundamentalidade do direito à moradia, passando, além disso, pelo debate em torno do seu conteúdo e significado.
Dentre as aplicações correntes do direito à moradia na ordem jurídico-constitucional brasileira, destaca-se a proteção da propriedade que serve de moradia ao seu titular ou para algum familiar. Neste contexto, após uma série de decisões judiciais – inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – vedando a penhora do imóvel utilizado para fins de moradia por parte do devedor em diversas hipóteses, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou por reconhecer, por ora no âmbito do controle incidental, a constitucionalidade da previsão legal que permite a penhora do imóvel do fiador de contrato de locação. Tal decisão – ainda mais se lhe for outorgada eficácia erga omnes e efeito vinculante – diz respeito a um número expressivo de situações concretas e a vida de inúmeras pessoas, sem falar na sua conexão com casos semelhantes, como ocorre com a previsão legal da penhora em se cuidando de dívidas condominiais, assim como nos casos de execuções promovidas pela fazenda pública, dentre outros. Da mesma forma, a depender da força persuasiva da decisão e das suas razões subjacentes, mesmo em outras situações envolvendo a proteção da moradia poderemos vir a experimentar alguns reflexos importantes, sem que aqui nos estejamos a posicionar (ainda!) sobre as possíveis virtudes ou defeitos da decisão ora referida e de outras decisões judiciais envolvendo o direito à moradia no Brasil.
Na esteira dessas considerações, descortina-se já o nosso propósito de promover uma avaliação crítica da referida decisão do STF, notadamente para o efeito de verificar a sua conformidade com a condição da moradia como bem e, de modo especial, como direito fundamental. Para que isto seja possível, iniciaremos com a caracterização do direito à moradia como um direito fundamental, especialmente abordando o seu conteúdo e a sua assim designada dupla dimensão (ou função) negativa e positiva. Na seqüência, explorando já a condição do direito à moradia como direito negativo (ou de defesa), que constitui a preocupação central do presente estudo, passaremos a avaliar criticamente a questão da proteção da moradia contra a penhora tal qual enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal.
2. FUNDAMENTAÇÃO E CONTEÚDO DO DIREITO À MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL NA ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UM COMPLEXO DE DIREITOS (PODERES) E DEVERES NEGATIVOS E POSITIVOS
2.1. Breves notas sobre o direito à moradia como direito fundamental
Muito embora o direito à moradia tenha sido incluído (expressamente) no rol dos direitos fundamentais sociais (art. 6°, da CF) por meio de emenda constitucional (EC n° 26,de 2000)2, sua condição de direito fundamental, a despeito de alguma doutrina que refuta a fundamentalidade dos direitos sociais, tem sido amplamente reconhecida na doutrina e na jurisprudência. O próprio Supremo Tribunal Federal, a despeito de ter, por maioria, chancelado a legitimidade constitucional da penhora do imóvel residencial do fiador3 (decisão que será objeto de uma avaliação crítica logo adiante), reafirmou ser a moradia direito fundamental da pessoa humana. Por outro lado, mesmo que não se pretenda aqui aprofundar a questão e embora se saiba (pelo menos é a nossa convicção) que nem todos os direitos e garantias fundamentais expressamente anunciados no elenco do Título II de nossa Constituição encontram seu fundamento direto no princípio da dignidade da pessoa humana e que, de qualquer modo (mesmo que haja uma conexão direta com a dignidade da pessoa), diversa a intensidade do vínculo entre dignidade e direitos fundamentais, já que distinto o âmbito de proteção de cada direito em espécie, não poderíamos, por outro lado, deixar de reconhecer que é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais4, o que evidentemente também se aplica aos direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais em geral e ao direito à moradia em particular.
Com efeito, se as assim designadas “liberdades sociais” – com destaque para os direitos de greve e liberdade de associação sindical – assumiram e seguem exercendo papel relevante na contenção do exercício do poder econômico na esfera das relações sociais, os direitos fundamentais sociais em geral, notadamente na sua condição de direitos a prestações, objetivam, em primeira linha, uma compensação das desigualdades fáticas de modo a assegurar a proteção da pessoa (de qualquer pessoa) contra as necessidades de ordem material, garantindo uma existência com dignidade5. Por outro lado, útil lembrar que a intensidade da vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais é diretamente proporcional em relação à importância destes para a efetiva fruição de uma vida com dignidade, o que, por sua vez, não afasta a constatação elementar de que as condições de vida e os requisitos para uma vida com dignidade constituam dados variáveis de acordo com cada sociedade e em cada época6.
No caso do direito à moradia, a íntima e indissociável vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta inequívoca pelo menos no âmbito daquilo que se tem designado de um direito às condições materiais mínimas para uma existência digna e na medida em que a moradia cumpre esta função. Nesta perspectiva, talvez seja ao direito à moradia – bem mais do que ao direito de propriedade – que melhor se ajusta a conhecida frase de Hegel, ao sustentar – numa tradução livre – que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa (Sphäre ihrer Freiheit)7. Com efeito, sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar,certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. Não é por outra razão que o direito à moradia, também entre nós – e de modo incensurável – tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim designados direitos de subsistência, como expressão mínima do próprio direito à vida8 e, nesta perspectiva (bem como em função de sua vinculação com a dignidade da pessoa humana) é sustentada a sua inclusão no rol dos direitos de personalidade9. Assim, de acordo com a lição de José Reinaldo de Lima Lopes, inclui o direito de ocupar um lugar no espaço, assim como o direito às condições que tornam este espaço um local de moradia, de tal sorte que morar, na acepção do ilustre doutrinador, constitui um existencial humano10. Enfatiza-se, portanto, a direta vinculação do direito à moradia com a assim designada garantia (e direito) a um mínimo existencial, bem como com o que se tem chamado de um conteúdo existencial de outros direitos fundamentais11, como é o caso inclusive do direito de propriedade e do direito à propriedade12.
Por ora, importa notar que mesmo dentre os que, pelo menos em princípio, questionam
a própria fundamentalidade dos direitos sociais há quem admita o caráter fundamental de um direito à moradia, designadamente naquilo em que integra um direito às condições mínimas para uma existência humana digna, destacando-se, entre nós, o magistério de Ricardo Lobo Torres13. Não sendo o nosso intento adentrar a discussão em torno das diversas posições esgrimidas a respeito da fundamentalidade dos direitos sociais, importa que se deixe pelo menos consignada a nossa posição, no sentido de que todos os direitos consagrados no Título II da Constituição, sem prejuízo de outros decorrentes do regime e dos princípios, assim como constantes dos tratados internacionais de direitos humanos retificados pelo Brasil (a teor do que dispõe o artigo 5°, parágrafo 2°, da CF), são direitos fundamentais e comungam do pleno regime jurídico assegurado pela Constituição aos direitos fundamentais, ou seja, integram elenco dos limites materiais à reforma constitucional e, na condição de norma de direitos fundamentais, são sempre diretamente aplicáveis, a teor do que dispõe o artigo 5°, parágrafo 1°, da CF14.
2.2. Conteúdo do direito à moradia como complexo heterogêneo de direitos (e deveres) negativos e positivos
Ainda que se possa estabelecer, a depender dos critérios adotados, uma distinção entre o direito à moradia e o direito à habitação15, e iniciando a abordagem com algumas anotações sobre a questão terminológica, verifica-se que a nossa Constituição, ao referir- se ao direito à moradia no artigo 6°, o fez de forma genérica (que será também aqui seguida), desacompanhado de qualquer adjetivo. Tendo em conta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito à moradia adequada (a exemplo do que ocorre com o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966), ou mesmo, como é o caso da Constituição da Bélgica, de um direito a uma moradia decente, entre outros muitos exemplos que poderiam ser colacionados, a ausência de qualquer adjetivação não autoriza que o direito à moradia possa ter seu conteúdo esvaziado, no sentido daquilo que se tem designado de um mínimo vital (ou meramente fisiológico), portanto, situado aquém das exigências da dignidade da pessoa humana e do correspondente mínimo existencial. De qualquer modo, convém levar em consideração que a adjetivação tem o mérito inquestionávelde afastar interpretações demasiadamente restritivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à moradia ou (o que poderia dar no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legislador infraconstitucional.
Na definição do conteúdo do direito à moradia, cumpre, ainda em caráter preliminar, traçar (dentre outras diferenciações possíveis) a sua distinção em relação ao direito de propriedade e ao direito à propriedade. Muito embora a evidência de que a propriedade possa servir também de moradia ao seu titular e que, além disso, a moradia acaba, por disposição constitucional expressa – e em determinadas circunstâncias – assumindo a condição de pressuposto para a aquisição do domínio (como no caso do usucapião especial constitucional urbano e rural), atuando, ainda, como elemento indicativo da aplicação da função social da propriedade, o direito à moradia – convém frisá-lo – é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios, o que não elide a sua maior ou menor vinculação com outros bens (e correspondentes direitos e deveres) fundamentais. Ademais, adiantando já aspectos da discussão a ser travada na última parte, onde será examinada a questão da penhora do imóvel que serve de moradia ao fiador, a conexão com o direito a uma existência digna implica (como se irá desenvolver mais adiante) que em diversas situações o direito à moradia ocupe uma posição preferencial em relação ao direito de propriedade ou mesmo outros direitos, no mínimo para justificar uma série de restrições ao direito de propriedade, que, de resto (de acordo com previsão constitucional expressa!) encontra-se limitado pela sua função social, de tal sorte que já de há muito expressiva doutrina sustenta que apenas a propriedade socialmente útil (isto é, que cumpre sua função social) é constitucionalmente tutelada16.
De outra parte, é preciso considerar, ainda mais levando em conta o direito constitucional positivo brasileiro, que se é verdade que mesmo sem a propriedade sobre um bem imóvel a pessoa, por si só, não estará necessariamente privada de uma vida digna, o que, por outro lado, inevitavelmente ocorrerá em não dispondo de uma moradia com padrões compatíveis com uma vida saudável, tal não significa que o direito de propriedade não assuma a condição de direito fundamental. Pelo menos não se poderá desconsiderar, a exemplo do que tem enfatizado Luiz Edson Fachin, que a propriedade, quando conectadacom as exigências de uma vida digna, acaba sendo merecedora de uma tutela na medida em que cumpre precisamente uma função existencial e não meramente patrimonial17. Tal enfoque, em verdade, acaba por remeter-nos novamente à discussão em torno do caráter fundamental do direito de propriedade, que, visto sob prisma eminentemente patrimonial, poderia ser – como há quem sugira – considerado direito fundamental em sentido apenas formal18.
Estabelecidas estas primeiras diretrizes, verifica-se que, especialmente em função
do silêncio da nossa Constituição no que diz com uma definição direta e mínima do conteúdo do direito à moradia, há que construir tal definição a partir de outros parâmetros normativos contidos na própria Constituição e extraídos de outras fontes normativas, de tal sorte que também para este feito assumem lugar de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e documentos internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno. Com efeito, naquilo em que versam sobre direitos fundamentais da pessoa humana, os tratados internacionais – pelo menos de acordo com a doutrina majoritária – possuem hierarquia constitucional, na condição de direitos fundamentais pelo menos (naquilo que não contemplados no texto constitucional) em sentido material, integrando aquilo que se costuma também denominar – com inspiração na tradição jurídico-constitucional francesa
– de um bloco de constitucionalidade19. Mesmo que assim não fosse, pelo menos – o que já seria de extrema utilidade em diversas circunstâncias – os tratados de direitos humanos devidamente incorporados são equivalentes à legislação ordinária federal e como tal devem ser aplicados.
Além disso, em face da sua íntima conexão com a dignidade da pessoa humana e o
próprio direito à vida, verifica-se, desde logo, que na identificação (construção) do conteúdo de um direito à moradia, há que considerar os parâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, nos termos das exigências postas pela Organização Mundial da Saúde, no sentido de um completo bem-estar físico, mental e social, já que uma vida com dignidade em hipótese alguma poderá ser menos do que uma vida com saúde, à evidência não restrita à mera existência e sobrevivência física20. O que se constata, portanto, é que o conteúdo do direito à moradia (em outras palavras, o seu âmbito de proteção ou de aplicação) há de ser identificado também mediante uma interpretação simultaneamente tópica e sistemática21, que, além de observar a necessidade de um diálogo entre as diversas fontes do Direito (interno e internacional22) dialogue com os diversos direitos e deveres fundamentais que com ele guardam conexão. É que também o direito à moradia, da mesma forma como ocorre com o direito à saúde e uma série de outros direitos (e bens) fundamentais, embora seja sempre um direito autônomo, encontra-se “marcado por zonas de sobreposição com esferas que são autonomamente protegidas”23, como é o caso, dentre outras, da vida, da alimentação, da saúde, da privacidade e intimidade, do meio ambiente e da propriedade, tudo a reforçar a idéia de que o Estado Democrático de Direito contemporâneo deve ser compreendido como sendo sempre um Estado Socioambiental, o que aqui não será explorado.
Neste contexto, complementando e iluminando os critérios já veiculados pelo direito (constitucional, legal e jurisprudencial) interno, há que ter presente os padrões internacionais desenvolvidos e difundidos pela Comissão da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, naquilo que enunciam uma série de elementos básicos a serem atendidos em termos de um direito à moradia24:
a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem, incluindo um conjunto de garantias legais e judiciais contra despejos forçados;
b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança,
conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico, etc.).
c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação
de outras necessidades básicas.
d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitação, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.
e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência.
f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação e
outras serviços sociais essenciais.
g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população.
Tais diretrizes, que não são exaustivas e que também desafiam uma exegese adequada e contextualizada, desnudam de modo emblemático aquilo que já havia sido anunciado, no sentido de que um direito à moradia digna não pode ser interpretado como sendo apenas um “teto sobre a cabeça” ou “espaço físico” para viver, pressupondo a observância de critérios qualitativos mínimos. Que a efetivação dos padrões estabelecidos pela ordem jurídica internacional reclama, por outro lado, uma exegese afinada com as peculiaridades de cada País e de cada região (já que é na realidade concreta de quem mora e onde se mora que é possível aferir a compatibilidade da moradia com uma existência digna), por sua vez, constitui premissa igualmente já destacada.
De outra parte, resulta evidente a conexão do direito à moradia (na sua dimensão compreensiva e complexa já indiciada) com o que já se tem designado de um direito à cidade, visto que, como bem averba Gerardo Pisarello, quando se abandona o âmbito restrito da unidade habitacional concreta, a vinculação da moradia com seu entorno e com o desenho urbanístico em geral é cogente25. Tal premissa, por sua vez, inequivocamente inspirou o legislador brasileiro na elaboração da Lei n° 10.257/2001 (o assim designado Estatuto da Cidade) que contempla todo um conjunto de princípios e diretrizes, além de prever uma série de instrumentos específicos, que não apenas objetivam a promoção e tutela da moradia das pessoas individualmente consideradas, mas busca avançar no que diz com uma inserção da moradia no espaço urbano como um todo, na perspectiva de um desenvolvimento sustentável26.
Assim, já a partir do exposto e de modo especial considerando o conjunto de obrigações que têm sido vinculadas à tutela e promoção da moradia no plano internacional e nacional, verifica-se também que são múltiplas as formas pelas quais podem os Estados efetiva o direito à moradia, aspecto que guarda conexão com o próximo segmento e que voltará a ser objeto de menção. Portanto, como bem demonstra o elenco de diretrizes que concretizam o conteúdo do direito à moradia, também a este se aplica a noção de que se cuida de um direito fundamental com um todo, de cunho compreensivo, e que, como já de há muito demonstrou Robert Alexy27, abrange um conjunto complexo e heterogêneo de posições (direitos e deveres) fundamentais, o que, por sua vez, guarda relação com a já consagrada lição de que o texto (dispositivo=enunciado semântico) não se confunde com a norma e nem esta com os direitos (e deveres) que possa vir a atribuir28. Assim, sem que aqui se vá aprofundar este aspecto, importa ter presente que também o direito à moradia abrange um complexo de posições jurídicas, visto exercer simultaneamente a função de direito de defesa e de direito a prestações (de cunho normativo e/ou material) e que, nesta dupla perspectiva, vincula as entidades estatais e, em princípio, também os particulares.
Muito embora se possa controverter a respeito do modo e intensidade desta vinculação, assim como das possíveis conseqüências jurídicas a serem extraídas a partir de cada manifestação do direito à moradia, o que importa, por ora e para efeitos deste estudo, é que cientes da dupla dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais em geral (e não apenas dos assim designados direitos sociais), tal circunstância não altera o fato (e nem as conseqüências que disso se pode e se deve extrair!) de que na sua condição de direito (subjetivo) de defesa o direito à moradia tem por objeto em primeira linha a sua não- afetação por parte do Estado, ao passo que na sua condição de direito a prestações, o direito à moradia terá por objeto a criação e estruturação de órgãos, a edição de normas queestabeleçam procedimentos de tutela e promoção dos direitos, o fornecimento de bens e serviços ou outras ações comissivas29.
É também nesta perspectiva que optamos por utilizar a expressão direito à moradia
no seu sentido mais amplo possível, abarcando todo o conjunto de posições jurídicas e garantias que – mesmo que tenham alguma autonomia quando considerados individualmente – são todas vinculadas à garantia (positiva e negativa) de uma moradia digna para a pessoa humana. É por essa razão que mesmo que se possa sempre falar genericamente do direito à moradia, este abrange um conjunto de direitos de e à moradia (de tutela e promoção da moradia) ou de direitos habitacionais como também já tem sido referido, com o que não se está a excluir a existência de deveres fundamentais (conexos e autônomos) em matéria de moradia, que, por sua vez, não se confundem com os assim chamados deveres de proteção (ou imperativos de tutela) que incumbem aos órgãos estatais.
Cientes, portanto, desta dupla dimensão positiva e negativa do direito à moradia e levando em conta os propósitos do presente trabalho, passa-se a explorar a assim designada dimensão negativa, já que é nesta perspectiva que também se irá, na última parte priorizar a análise crítica do entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da penhora do imóvel residencial do fiador, ainda que tal questão também guarde conexão com a dimensão positiva do direito à moradia e de outros direitos fundamentais. Em suma, o que estará em causa, em última análise, é se o Supremo Tribunal Federal, notadamente ao decidir pela possibilidade da penhora do imóvel residencial do fiador, desincumbiu-se do seu dever de tutela em relação ao direito à moradia.
3. O DIREITO À MORADIA NA CONDIÇÃO DE DIREITO DE DEFESA: ALGUMAS POSSÍVEIS MANIFESTAÇÕES
No âmbito da assim denominada dimensão negativa ou daquilo que também tem
sido chamado de uma função defensiva dos direitos fundamentais, verifica-se que a moradia, como bem jurídico fundamental, encontra-se, em princípio, protegida contra toda e qualquer sorte de ingerências indevidas. O Estado, assim como os particulares, tem o dever jurídico de respeitar e de não afetar a moradia das pessoas, de tal sorte que toda e qualquer medida que corresponda a uma violação do direito à moradia é passível, em princípio, de ser impugnada em Juízo, seja na esfera do controle difuso e incidental, seja por meio do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, ou mesmo por intermédio de instrumentos processuais específicos disponibilizados pela ordem jurídica. É também precisamente esta a dimensão – a função defensiva do direito à moradia – a que se referem as diretrizes internacionais acima mencionadas, quando utilizam os termos “respeitar” e “proteger”,30 embora a proteção também envolva ações concretas (normativas e fáticas) de tutela da moradia contra ingerências oriundas do Estado ou de particulares, tudo a reforçar a íntima conexão entre a dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais.
Na sua condição de direito (subjetivo) negativo ou de defesa, também ao direito à moradia é aplicável a lição de Robert Alexy, especialmente quando demonstra que a dimensão negativa abrange: a) direitos ao não-impedimento de ações; b) direitos à não-afetação de propriedades ou situações (em suma, não-afetação de determinados bens jurídicos); c) direitos à não-eliminação de posições jurídicas31. Também a assim designada proibição de retrocesso em matéria de concretização dos direitos sociais assume uma posição de destaque e acaba sendo reportada à dimensão negativa, não sendo o caso aqui de analisar se há ou não uma equivalência entre a proibição de retrocesso e as situações mencionadas por Alexy32.
Sem que se pretenda neste estudo explorar cada uma destas manifestações da dimensão ou função negativa, visto que a finalidade precípua será a de analisar especificamente o problema da possibilidade (ou não) da penhora do imóvel que serve de moradia ao fiador e/ou sua família, percebe-se, desde logo, que mesmo como direito de defesa (negativo) há todo um complexo de situações a ser levado em conta, que não podem ser pura e simplesmente equiparadas. De outra parte, resulta evidente que a dimensão negativa (com as posições jurídico-fundamentais que lhe são inerentes) atua visivelmente como indispensável meio de tutela da própria dimensão positiva, pois de nada adiantará assegurar (positivamente) o acesso a uma moradia digna, se esta moradia não estiver protegida (negativamente) contra ações do Estado e de terceiros.
Importa frisar, nesta quadra, que justamente aos direitos fundamentais considerados na sua dimensão negativa, não se costuma refutar sua direta aplicabilidade, o que, como bem se sabe, não é exatamente incontroverso quando se trata da dimensão positiva. Tendo por objeto ações negativas (exigindo o respeito e a não-ingerência na esfera da autonomia pessoal ou no âmbito de proteção do direito fundamental) não se verifica, em regra, a dependência direta (vale enfatizar este aspecto!) da realização destes direitos subjetivos negativos de prestações fáticas ou normativas por parte do sujeito passivo, o que, como já frisado, não afasta a dupla dimensão positiva e negativa dos direitos fundamentais. Nesta linha de entendimento, vale a pena consignar o ensinamento de Vieira de Andrade, para quem, em se cuidando de direitos, liberdades e garantias (direitos de defesa, em última análise, há que acrescentar) e em ocorrendo a falta ou insuficiência de lei, “o princípio da aplicabilidade direta vale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseada no caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui, incluídos o dever dos Juízes e dos demais operadores jurídicos de aplicarem os preceitos constitucionais e a autorização de para esse fim os concretizarem por via interpretativa.”33 Ainda que a dimensão negativa dos direitos fundamentais não exclua a existência de conceitos mais ou menos indeterminados – como é o caso justamente do direito à moradia – nada impede (ainda mais em se levando a sério o disposto no artigo 5°, parágrafo 1°, da Constituição Federal de 1988) que tais conceitos não possam ter seu conteúdo definido pela via da intervenção judicial, quando for o caso, não sendo o caso de uma dependência da intermediação pelo legislador.
Que todos os direitos fundamentais (inclusive os direitos sociais) desencadeiam efeitos diretos e que não podem estar condicionados à prévia regulação legal, pelo menos no sentido de que geram para seu titular um direito subjetivo de cunho negativo, no sentido de situações prontamente desfrutáveis e que são, em primeira linha, dependentes apenas de uma abstenção por parte do sujeito passivo, também entre nós já tem sido sustentado há muito34. Sintetizando, podemos afirmar que, em se tratando de direitos de defesa (posições subjetivas negativas), a lei não se revela absolutamente indispensável à fruição do direito, já que, de acordo com a concepção desenvolvida por Celso Antônio Bandeira de Mello, correspondem àquelas situações em que a norma constitucional outorga ao particular uma situação subjetiva ativa (um poder jurídico), cujo desfrute imediato independe de qualquer prestação alheia, bastando, para tanto (como também refere Luís Roberto Barroso), uma abstenção por parte do destinatário da norma35. Por outro lado, resulta evidente que, para além de uma posição jurídico-subjetiva (que, consoante já demonstrado, pode manifestar-se de formas diferenciadas), as normas constitucionais definidoras de direitos de defesa podem gerar uma série de outros efeitos, inclusive na esfera jurídico-objetiva, efeitos que, de resto, são comuns a todas as normas de direitos fundamentais36.
Que com o exposto não estamos a recusar uma eficácia plena e aplicabilidade direta aos direitos fundamentais na sua dimensão positiva (de direitos subjetivos a prestações) é bom fique registrado e apenas não será objeto de desenvolvimento em virtude do enfoque do presente trabalho37. Por outro lado, dizer que o direito à moradia (em outras palavras, o conjunto de posições jurídicas que lhe são inerentes) é, no plano normativo, diretamente aplicável, não significa dizer, a exemplo dos demais direitos fundamentais, que o direito à moradia possa ser considerado (mesmo na sua dimensão negativa) como sendo um direito absoluto, no sentido de completamente imune a restrições38. Assim, apenas para mencionar um entre tantos exemplos que poderiam ser referidos, a desocupação de área de proteção ambiental, estribada, portanto, em outro valor constitucional fundamental, poderá levar à desocupação e afetar o direito à moradia não apenas de uma pessoa ou família, mas de uma coletividade inteira, sem que tais objetivos possam ser alcançados de modo arbitrário, de tal sorte a impor um sacrifício do direito à moradia dos atingidos pelas medidas, já que haverá de se assegurar uma realocação das pessoas e um acesso a uma moradia digna. É também por esta razão que a normativa internacional (de modo especial a Agenda Habitat) e as diretrizes fixadas pelos organismos de controle impõem aos Estados a garantia de uma segurança jurídica efetiva da posse utilizada para moradia, seja pela edição de legislação regulamentando os desapossamentos,seja pela observância do devido processo legal e assegurando uma proteção adequada contra medidas arbitrárias, entre outros aspectos a serem considerados39.
Nas relações entre particulares, onde o direito à moradia, notadamente (mas não
exclusivamente) na sua dimensão defensiva, também alcança eficácia e aplicabilidade40, igualmente são comuns as situações de conflito entre o direito à moradia e outros bens fundamentais salvaguardados pela Constituição, destacando-se o direito de propriedade, como pode ocorrer precisamente numa ação movida pelo locador proprietário contra o inquilino. Também nesta perspectiva se enquadra a discussão em torno da possibilidade (ou não) da penhora do imóvel que serve de moradia para o devedor e/ou sua família, que constitui justamente o enfoque específico desta abordagem, a ser enfrentado no próximo e último segmento.
4. O SUPREMO TRIBUNAL E A DISCUSSÃO EM TORNO DA POSSIBILIDADE DE PENHORA DO IMÓVEL RESIDENCIAL DO FIADOR NO ÂMBITO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO
A despeito da evolução jurisprudencial precedente, que, especialmente a partir da inclusão do direito à moradia no artigo 6° da Constituição, passou a tutelar cada vez mais a moradia na condição de bem fundamental, especialmente nas hipóteses em que estava em causa a proteção da propriedade imobiliária utilizada para fins de moradia contra uma penhora (seja ampliando o âmbito de proteção do assim chamado bem de família, seja por aplicação direta do direito à moradia, hipótese, todavia, menos comum), o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 08 de fevereiro de 2006 (Recurso Extraordinário n° 407.688- 8, relator Min. Cezar Peluso), acabou por considerar constitucionalmente legítima a penhora do imóvel residencial do fiador, tal qual autorizada pela legislação que excepcionou a regra geral da impenhorabilidade do bem de família (art. 3°, inciso VII, da Lei Federal n° 8009/90, na versão que lhe deu a Lei Federal n° 8.245/91). Considerando que a penhora do imóvel residencial, que vinha, em regra, sendo – embora alguns temperamentos – tida por inconstitucional por parte de expressiva jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e até mesmo em decisão monocrática anterior do próprio Supremo Tribunal Federal41, constitui uma possível forma de violação do direito à moradia (pois se cuida de uma afetaçãodo bem constitucionalmente tutelado) coloca-se a questão do acerto da decisão ora comentada, ainda mais em se levando em conta os fundamentos esgrimidos pelos votos vencedores e a repercussão da decisão.
Embora não se pretenda adentrar todos os possíveis aspectos ventilados na decisão, alguns pontos chamam particularmente a atenção e reclamam uma avaliação crítica. Para tanto, faz-se necessária uma breve resenha dos principais argumentos colacionados tanto no voto do relator, Ministro Cezar Peluso, quanto nos demais votos proferidos. Iniciando pelo que disse o ilustre relator na sua fundamentação, verifica-se que boa parte das premissas que sustentam as conclusões podem ser facilmente ratificadas. Com efeito, após ter reconhecido que o direito à moradia é direito social e que constitui direito subjetivo que “compõe o espaço existencial da pessoa humana”, o relator, igualmente com acerto, averbou serem “várias, se não ilimitadas, as modalidades ou formas pelas quais o Estado pode, definindo-lhe o objeto ou o conteúdo das prestações possíveis, concretizar condições materiais de exercício do direito social à moradia”. Mais adiante, na esteira da doutrina e dos parâmetros normativos acima apresentados, destaca o voto vencedor que o direito à moradia não se confunde, necessariamente, com o direito à propriedade imobiliária ou o direito de ser proprietário de bem imóvel, salientando, todavia (e neste passo já principia o encaminhamento da conclusão), que o direito à moradia pode, “sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores”. Na seqüência, ao afirmar que a ratio legis da exceção legal à regra da impenhorabilidade reside justamente na garantia do acesso à moradia pela via da locação de imóveis, obstaculizada pela falta, insuficiência ou onerosidade de garantias contratuais licitamente exigíveis pelos proprietários ou possuidores de imóveis de aluguel, o Ministro relator lança sua conclusão, no sentido de que a salvaguarda da exceção legal, por assegurar o acesso à moradia de uma classe ampla de pessoas interessadas na locação há de prevalecer em face do dano menor resultante para os fiadores proprietários de um só imóvel, ainda mais não sendo estes obrigados a prestar fiança. Para finalizar, averba o relator que “castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia”.
Em face do arcabouço argumentativo esgrimido no voto condutor da decisão, impõe- se uma série de considerações, parte delas ventilada no bojo dos outros votos proferidos, muito embora em boa parte sem maior desenvolvimento.
Desde logo, como bem lembrou o Ministro Eros Grau, autor de um dos três votos divergentes, é preciso considerar que a penhora recaiu sobre o único bem imóvel de propriedade do fiador, no caso, o imóvel que lhe serve de moradia, recordando, ainda, que a impenhorabilidade do imóvel residencial “instrumenta a proteção do indivíduo e de sua família quanto a necessidades materiais, de sorte a prover à sua subsistência”. Além disso, após enfatizar o vínculo entre a tutela do imóvel residencial e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, evoca simultânea violação do princípio isonômico, visto que o afiançado, que não pagou os alugueres, estaria beneficiado pela impenhorabilidade, ao passo que ao fiador estaria subtraído o benefício. Mais adiante, já no embate direto com o Ministro- Relator, refuta o caráter programático das normas constitucionais, afirmando o seu efeito vinculante, bem como afastando o argumento de que a impenhorabilidade do bem de família causará forte impacto no mercado de locações, já que políticas públicas deverão assegurar este mercado de modo apropriado.
Muito embora não se possa imputar ao Ministro-Relator ter outorgado ao direito à moradia a condição de norma programática e a despeito de ter aquele esclarecido que a intenção é justamente proteger os que não são proprietários, já que estes constituem uma minoria no Brasil, seguem em aberto algumas questões vinculadas à argumentação do Ministro Eros Grau e que merecem reflexão mais detida.
A primeira diz respeito ao fato de que em se cuidando do único imóvel do fiador e
servindo este de residência para aquele e/ou sua família, em princípio, não se pode simplesmente admitir o sacrifício do direito fundamental (e, no caso, possivelmente até mesmo uma violação da própria dignidade da pessoa humana) por conta de uma alegação genérica e ainda por cima desacompanhada até mesmo de dados comprobatórios, de uma tutela do direito à moradia de um conjunto maior de pessoas. A dignidade da pessoa humana, assim como o núcleo essencial dos direitos fundamentais de um modo geral, não pode ser pura e simplesmente funcionalizada em prol do interesse público, mesmo que este seja compreendido como interesse socialmente relevante de uma comunidade de pessoas. Importa recordar, nesta quadra, que embora legítimas, em determinadas circunstâncias, restrições a direitos fundamentais, estas devem respeitar os critérios da proporcionalidade e, acima de tudo, preservar o núcleo essencial do direito restringido. Aliás, é justamente no exame dos critérios da proporcionalidade que reside uma das lacunas da decisão ora comentada. Se aos órgãos estatais incumbe um permanente dever de proteção de todos os bens fundamentais e a restrição de algum direito encontra fundamento na tutela de outro, impõe-se, de qualquer modo, sempre a observância dos critérios da proporcionalidade na sua dupla acepção, pois tanto está vedado ao Estado intervir excessivamente na esfera de proteção de bens fundamentais quando atuar de modo manifestamente insuficiente (ou o que é pior, sequer atuar) na tutela do mesmo ou de outros bens fundamentais42.
Mesmo que aqui não se vá adentrar nas possíveis distinções entre os institutos da proibição de excesso e de proteção insuficiente, importa pelo menos lançar algumas indagações em relação a esta perspectiva de abordagem do problema ora discutido. Assim, se de fato é plausível aceitar, a exemplo do que argumentou o Ministro-Relator, que a possibilidade da penhora do imóvel do fiador, por constituir garantia do contrato de locação, acaba também sendo um meio de assegurar o acesso à locação e, portanto, à moradia para quem não é proprietário, já no que diz com o critério da necessidade as coisas não parecem tão simples, pois, em havendo outros meios disponíveis, a opção deveria recair no meio menos gravoso, considerado como tal o que menos restringe o direito fundamental colidente, no caso, o direito à moradia do fiador e de sua família, pois sequer se está aqui argumentando com a tutela da propriedade na sua dimensão meramente patrimonial. O argumento de que não existem outras garantias para o crédito em execução é evidentemente falho, visto que não foi examinada a possibilidade de se lançar mão de outros meios, como, por exemplo, a exigência de fiador proprietário de imóvel que não seja residencial ou mesmo a utilização do seguro fiança, que, se fosse mais difundido e submetido a controle rigoroso, poderia inclusive gerar a total desnecessidade da utilização de garantias reais. A não-utilização das alternativas referidas (ou mesmo de outras, que, de resto, também incumbe ao Estado disponibilizar no âmbito dos seus deveres de proteção!) não significa que não estejam disponíveis e que, portanto, não possam ser levadas em conta. Assim, vista a questão sob este viés, no mínimo haverá de se considerar a possibilidade de considerar, nas circunstâncias do caso, que a penhora do imóvel residencial (único imóvel do fiador) como violação da proporcionalidade. De outra parte, mesmo superado o exame do critério da necessidade, haveria de se avaliar a violação da assim designada proporcionalidade em sentido estrito ou, para quem assim o preferir, a ingerência no núcleo essencial do direito fundamental, que, quando detectada, implica a manifesta inconstitucionalidade do ato. Sem que se vá aqui avançar mais neste exame, inclusive para fins de análise do atendimento das exigências também da proibição de proteção deficiente, a crítica mais contundente que possivelmente poderá ser direcionada é que tais questões, a despeito de sua relevância (pois inequivocamente este em causa uma restrição de direito fundamental) não chegaram a ser minimamente desenvolvidas na decisão.
Seguindo já outra linha de raciocínio, tanto o Ministro Joaquim Barbosa quanto o Ministro Gilmar Mendes, ambos secundados pelo Ministro Sepúlveda Pertence (invocando que se poderia estar chancelando a incapacidade civil do fiador) enfatizaram, em síntese, que a regra legal que excepciona a impenhorabilidade não constitui violação do direito à moradia pelo fato de que o fiador voluntariamente, portanto, no pleno exercício da sua autonomia de vontade. Por mais que se deva admitir que a própria liberdade contratual expressa uma manifestação da mesma dignidade da pessoa humana que serve de fundamento ao conteúdo existencial da propriedade, quando, por exemplo, serve de moradia ao seu titular, não se pode olvidar que a ordem jurídica impõe limites significativos à autonomia privada, especialmente quando se cuida de hipóteses de renúncia a direitos fundamentais. A própria alienação voluntária da integralidade do patrimônio, em havendo herdeiros necessários ou eventualmente outros interesses a serem tutelados encontra limites em determinadas circunstâncias, sendo, se resto, no mínimo parcialmente equivocada a apontada identidade entre a venda e a prestação de fiança43, tal como afirmou o Ministro Cezar Peluso ao intervir no voto do Ministro Carlos Britto, que justamente invocou a indisponibilidade do direito à moradia. Se de fato é correta a tese, de resto sufragada por expressiva doutrina e inclusive acatada pelo voto do Relator, de que a moradia constitui um existencial humano, sendo, pelo menos naquilo em que revela uma conexão com a dignidade da pessoa humana, um direito de personalidade, não se pode deixar de reconhecer também a existência de um dever de proteção da pessoa contra si mesma, pelo menos no âmbito em que prevalece a indisponibilidade do direito, o que ocorre justamente no plano da sua dimensão existencial44. Da mesma forma, se em princípio se poderá afastar a existência de coação, também é correto que em muitas hipóteses resulta praticamente inexigível a negativa da prestação da fiança, especialmente nos casos de garantias prestadas por familiares próximos. Embora as hipóteses não sejam idênticas, a referência à difundida decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha45, que versava justamente sobre a liberação da responsabilidade por parte da filha (na fase da execução) que havia “espontaneamente” afiançado um contrato de mútuo bancário do pai não nos parece impertinente.
Também aqui não houve maior consideração das circunstâncias do caso concreto, pelo menos para investigar o efetivo caráter existencial da moradia ou mesmo a existência de alternativas viáveis de acesso a uma moradia decente para o fiador e sua família (por exemplo, pelo menos um trabalho com certa estabilidade e com remuneração compatível com o aluguel de uma moradia adequada), já que, convém reiterar este aspecto, o direito à moradia não se confunde necessariamente com o direito de propriedade. Não tendo sido efetuado este exame e em se tratando do único imóvel do fiador e sendo este utilizado para fins residenciais, haveria, por certo, de prevalecer pelo menos uma presunção (ainda que relativa) em favor da indisponibilidade.
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS
Por mais que se possa avançar na discussão e avaliar outros argumentos, tenham sido, ou não, ventilados na decisão ora comentada, já é possível perceber o quanto uma solução constitucionalmente adequada, ainda mais em matéria de tamanha repercussão geral, reclama maior investimento argumentativo. Da mesma forma, verifica-se que se está apenas diante de mais uma dentre tantas questões decididas pelo Supremo Tribunal Federal que escancaram o quão falaciosa é a distinção entre matéria de fato e matéria de Direito. Além disso, a desconsideração de importantes dimensões do caso concreto aponta para a possibilidade de equívocos significativos no processo decisório e, o que é pior, de um resultado que pode implicar flagrante violação de princípios fundamentais e do próprio núcleo essencial de direito fundamental, somente evitáveis mediante uma exegese simultaneamente tópica e sistemática, como necessariamente há de ser toda a interpretação46. A situação, todavia, acaba sendo ainda mais grave se à decisão em favor da legitimidade constitucional da penhora for outorgada eficácia erga omnes e efeito vinculante, mormente se impeditiva pelo menos de uma divergência justificável à luz das circunstâncias do caso concreto, sem que se vá aqui adentrar a discussão em torno da legitimidade constitucional do efeito vinculante em decisões que sequer atendem o quorum qualificado da súmula vinculante. Tão fundado é o receio, que já se verifica uma tendência, mesmo por parte de órgãos judicantes que antes consideravam inconstitucional a exceção legal permissiva da penhora, de, sem qualquer reflexão adicional (sequer para justificar minimamente as razões da alteração de seu convencimento e mesmo sem qualquer olhar para as circunstâncias do caso concreto) pura e simplesmente alterarem o seu posicionamento, afinando-o com a orientação ora imprimida pelo Supremo Tribunal Federal.
Importa enfatizar, nesta quadra, que não se trata aqui de fazer coro com os que
pregam uma espécie de resistência teimosa e irrefletida às decisões do Supremo Tribunal Federal, pois a crítica que aqui se formula também abarca decisões que, igualmente sem maior reflexão e conexão com as circunstâncias do caso concreto (e da dignidade concreta das pessoas às quais dizem respeito os casos!) em várias hipóteses transformaram o discurso legítimo em prol do direito à moradia em instrumento de tutela de propriedades de luxo, como se propriedade e moradia fossem direitos idênticos e como se fossem direitosabsolutamente blindados a qualquer limite ou restrição. O que se buscou problematizar neste ensaio, foi justamente a necessidade de se exercer uma resistência em relação a soluções simplistas e generalizadas, e que a busca da melhor resposta implica avaliação criteriosa não apenas de algumas questões de ordem normativa e formal. O que se espera é que o Supremo Tribunal Federal, assim como já o fez em matéria de saúde e até mesmo em relação a possíveis temperamentos do efeito vinculante na hipótese da vedação de tutela antecipada contra a fazenda pública, siga de portas abertas, se não para uma reformulação radical do seu entendimento expresso pelo voto da maioria dos seus Ministros, pelo menos para uma possível flexibilização à luz das circunstâncias do caso concreto, pena de, no limite, acabar chancelando situações de extrema injustiça.
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1 Estudos em nível de Pós-Doutorado em Munique (Universidade de Munique e Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional, como bolsista DAAD e Max-Planck) e Washington DC (Georgetown Center). Professor Titular da Faculdade de Direito e do Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS. Professor do Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Professor de Direito Constitucional e Teoria dos Direitos Fundamentais na Escola Superior da Magistratura (AJURIS).
2 O fato de a inclusão do direito à moradia no âmbito dos direitos sociais ter ocorrido por emenda constitucional apenas no ano 2000 não significa, contudo, que a moradia não tenha recebido já alguma tutela direta na Constituição e que, além disso, não poderia já ser considerada como direito fundamental social pelo menos implicitamente positivado. Neste sentido, v. o nosso “O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia”, in: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Dir.), Arquivos de Direitos Humanos, n° 4, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 150 e ss. A respeito do histórico do direito à moradia na ordem jurídica brasileira, v. também INÁCIO, Gilson Luiz. Direito Social à Moradia & Efetividade do Processo. Contratos do Sistema Financeiro de Habitação, Curitiba: Juruá, 2002, p.38 e ss.; SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. Análise Comparativa e Suas Implicações Teóricas e Práticas com os Direitos de Personalidade, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004,
p. 104 e ss.; AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia, 2.ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 84 e ss. e, mais recentemente, GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 37 e ss.
3 RE 407.688-8, Relator Ministro Cezar Peluso.
4 V. por todos, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2.ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 79 e ss. Entre nós, enfatizando a ausência de uma
fundamentação direta na dignidade da pessoa humana de todos os direitos consagrados na Constituição de 1988, v., em especial, o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
de 1988, 5.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79 e ss.
5 Cf. dentre outros, HÖFLING, Wolfram. “Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz”. In: SACHS, Michael (Org.). Grundgesetz-Kommentar. München: C.H. Beck, 1996, p. 109-110. assim como MAUNZ, Theodor & ZIPPELIUS, Reinhold. Deutsches Staatsrecht. 29.ed. München: C.H. Beck, 1994, p. 182. Na França, a íntima ligação entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa encontra-se referida por PAVIA, Marie-Luce. “Le Principe de Dignité de la Personne Humaine: um Nouveau Principe Constitutionnel”. In: CABRILLAC, Rémy, ROCHE-FRISON, Marie-Aenne & REVET, Thierry. Droits et Libertés Fondamenteaux. 4.ed. Paris: Dalloz, 1997, p. 109-110, valendo-se do exemplo de um direito fundamental à moradia, a partir do reconhecimento da moradia como objetivo e valor de matriz constitucional pelo Conselho Constitucional. Também na Bélgica, sustenta-se que o direito a uma existência com dignidade implica o reconhecimento de um direito aos meios de subsistência mínimos, especialmente no âmbito da assistência social. Neste sentido, v. DELPÉRÉE, Francis. “O Direito à Dignidade Humana”. In: BARROS, Sérgio R. & ZILVETI, Fernando A. (Coord.). Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 156 e seguintes. Assim também, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., v. 4, p. 186 (ao menos é o que se infere da referência a diversos direitos sociais). Entre nós, v., dentre tantos, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 329 e ss., assim como o pioneiro trabalho de TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”, in: Revista de Direito Administrativo, n° 177, 1989, p. 20-49 (apontando-se aqui a existência de desenvolvimentos posteriores), NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. “O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”. Revista de Direito Administrativo 219: 247, 2000, BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo, Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, todos apontando a vinculação do mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana, ainda que existam variações importantes sobre a fundamentação, conteúdo e eficácia do assim designado mínimo existencial que podem ser encontradas tanto nos autores referidos em caráter ilustrativo quanto nos demais que têm dado atenção ao tema.
6 Cf. a oportuna menção de MODERNE, Frank. “La Dignité de la Personne Comme Principe Constitutionnel dans les Constitutions Portugaise et Française”. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas Constitucionais – nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, v. 1, p. 220.
7 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, v. 7, p. 102.
8 Cf. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. “Direito à Moradia”. Revista de Informação Legislativa 127: 49, 1995. Também VIANA, Rui Geraldo Camargo. “O Direito à Moradia”. Revista de Direito Privado, abril/junho 2000, p. 9, destaca a vinculação do direito à moradia com o direito à vida e uma existência digna. Registre-se, ainda quanto a este ponto, que também pelo prisma do direito internacional, o que decorre inclusive de previsão expressa do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, incorporado pelo Brasil em 1992, o direito à moradia, assim como o direito à alimentação, integra o direito a um adequado padrão de vida. Neste sentido, dentre tantos, CRAVEN, Matthew. The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights – A Perspective on its Development. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 330.
9 Neste sentido, destacando a vinculação com os direitos de personalidade, v., entre nós, em especial SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de, op. cit., p. 145 e ss., e, mais recentemente, também GODOY, Luciano
de Souza, op. cit., p. 48 e ss.
10 Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Cidadania e Propriedade: Perspectiva Histórica do Direito à Moradia”. Revista de Direito Alternativo, 1993, p. 121, igualmente sinalando a direta conexão do
direito à moradia com o direito à vida (p. 133).
11 Sobre o tema, v., dentre outros, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 329 e ss. No que diz
respeito à consideração do direito à moradia como sendo vinculado a uma garantia do mínimo existencial, não se irá aqui desenvolver as diversas possibilidades de fundamentação deste mínimo existencial e nem
a sua conexão com as diversas teorias sobre as necessidades da pessoa humana, que também podem servir de fundamento para um direito à moradia. A respeito destas questões, v., por exemplo,
PISARELLO, Gerardo. Vivienda para todos: un derecho en (de) construcción. El derecho a una vivienda digna y adequada como derecho exigible, Barcelona: Içaria, 2003, p. 23 e ss. Entre nós, no
que diz com o direito à moradia e explorando esta senda (designadamente a conexão com uma teoria das necessidades)., confira-se especialmente ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo
de direitos humanos e fundamentais à alimentação e à moradia, Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003.
12 Cf., por todos, FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.
13 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”. Revista de Direito Administrativo 177: 29, 1989, que, em paradigmático e pioneiro estudo sobre o mínimo existencial, destaca que este carece de um conteúdo específico, já que pode abranger qualquer direito, ainda que não originariamente fundamental, desde que considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não obstante neste primeiro estudo o ilustre doutrinador Fluminense não tenha feito menção expressa ao direito à moradia como exemplo de direito fundamental, tal veio a ocorrer, recentemente, em outro texto de crucial relevância para a discussão da problemática dos direitos fundamentais, admitindo que no concernente aos indigentes e às pessoas sem-teto a moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial e tornando obrigatória até mesmo a sua prestação pelo Estado (cf. TORRES, Ricardo Lobo. “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”. In: TORRES, Ricardo Lobo. (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 289).
14 Para maiores desenvolvimentos v. o nosso já citado A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 88 e ss.
15 Neste sentido v. especialmente SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes. Direito à Moradia e de Habitação, cit.
p. 141 e ss., destacando a vinculação entre ambos os institutos e, em termos gerais, compreendendo o direito de habitação (como o direito real de habitação, por exemplo) como uma possibilidade específica
de assegurar a moradia, que assume contornos mais amplos.
16 Entre nós, vale lembrar a lição do saudoso Professor e Desembargador Gaúcho RUY RUBEN RUSCHEL, Direito Constitucional em Tempos de Crise, Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1997, p. 145-155, alertando para a necessidade de uma releitura (à luz da Constituição e do princípio da função social da posse da propriedade) do art. 524 do Código Civil (de 1916) e da própria definição de posse, sustentando a necessidade do uso e gozo do bem secundum beneficium societatis. Também adotando esta linha de entendimento, convém lembrar, entre outros, os preciosos ensinamentos de FACHIN, Luiz Edson. “Novas Limitações ao Direito de Propriedade: do Espaço Privado à Função Social”. Revista de Direito da Universidade de Santa Catarina 11: 33-46, 1999; TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999; ARONNE, Ricardo. Por uma Nova Hermenêutica dos Direitos Reais Limitados: das Raízes aos Fundamentos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, todos convergindo no sentido de uma necessária interpretação dos institutos jurídicos sobre a posse e propriedade à luz da Constituição, da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais.
17 Cf. a notável contribuição de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
18 A respeito de uma possível distinção entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, v. a interessante
contribuição de FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias. La Ley del más Débil. Madrid: Ed. Trotta, 1999, p. 45-50. Desde logo, para não quedarmos omissos, destacamos que – compreendida pela
perspectiva de seu conteúdo socialmente útil e de sua possível dimensão existencial – a propriedade constitui direito fundamental na sua dupla vertente formal e material, não apresentando necessariamente
caráter exclusivamente patrimonial. De qualquer modo, considerando a ausência de hierarquia formal entre as normas constitucionais e tendo em conta a conhecida e prestigiada tese (basta aqui lembrar a
abalizada lição de JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., v. 2, de que em favor das normas constitucionais em sentido formal milita uma presunção de sejam materialmente constitucionais),
eventual decisão em prol da relativização da propriedade, deverá ocorrer mediante uma cuidadosa ponderação de bens e levar em conta a maior ou menor conexão da propriedade com outros valores
essenciais, notadamente, com a dignidade da pessoa humana.
19 Cf., por todos, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7.ed.,
São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43 e ss.
20 Tal entendimento guarda coerência com a conceituação da dignidade da pessoa humana por nós apresentada em trabalho anterior, sustentando que “a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Cf. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988., 5.ed., p. 62).
21 Sobre o tema, remetemos ao já clássico contributo de FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, 4.ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
22 Também ao direito à moradia, como de resto a todos os direitos humanos e fundamentais, aplica-se,
portanto, a noção da observância necessária de uma juridicidade em rede, marcada por uma interpenetração normativa crescente e cada vez mais inclusiva das normas internacionais, mas também do recurso ao
direito comparado. Neste sentido, explorando a questão em relação ao direito à saúde, v. a recente manifestação de LOUREIRO, João Carlos. “Direito à (Protecção) da Saúde”, in: Estudos em Homenagem
ao Professor Doutor Marcello Caetano. Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 667 e ss.
23 Cf., novamente, LOUREIRO, João Carlos. “Direito à (protecção) da saúde”, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, op. cit., p. 666. Especificamente cuidando da relação entre o
direito à moradia e outros direitos humanos e fundamentais v. PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 25 e ss. Entre nós, v. SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de., op. cit., p. 198 e ss., explorando a relação do direito
à moradia com os direitos de personalidade.
24 Tal como disposto no parágrafo 8º do Comentário-Geral nº 4 a respeito de um direito à moradia
adequada editado pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. A síntese ora efetuada foi extraída do relatório elaborado por SACHAR, Rajindar, “The Right to Adequate Housing:
The Realization of Economic, Social and Cultural Rights, p. 17-18, apresentado em 1993 pelo autor, à época relator da ONU para o direito à moradia, para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, acessado
pela internet no seguinte endereço: http://www.undp.org/um/habitat/rights/s2-93-15.html. No âmbito da literatura especializada, confira-se, ainda e de modo especial, PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 81
e ss., aprofundando a problemática do conteúdo normativo do direito à moradia também tendo em
conta os parâmetros construídos no âmbito das relatorias especiais da ONU, bem como, mais recentemente, a listagem de critérios apresentada por TEDESCHI, Sebastián, “El derecho a la vivienda a diez años de la reforma de la Constitución”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org), Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 216 e ss., reproduzindo, em termos gerais, a listagem referida acima, mas com importantes comentários e acréscimos.
25 Cf. PISARELLO, Gerardo, op. cit., p. 84 e ss. Importa registrar que também no Brasil tem crescido o número dos que discutem a noção de um direito (humano e fundamental) à cidade, em especial no que
diz respeito à concepção de uma “cidade sustentável”, o que apenas reforça a já apontada necessidade
de se ampliar os horizontes e inserir a questão do direito à moradia no contexto mais amplo e afinado com as exigências do conjunto dos direitos humanos e fundamentais, na perspectiva de um Estado
Socioambiental de Direito. Dentre os diversos títulos que poderiam ser colacionados e que se inserem nesta perspectiva destacamos aqui a recente coletânea de PRESTES, Vanêsca Buzelato (Org), Temas de
Direito Urbano-Ambiental, Belo Horizonte: Fórum, 2006.
26 Apenas em caráter exemplificativo, considerando já o expressivo número de publicações produzido nos últimos anos, v. ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org), Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004.
27 Cf. ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p. 240 e ss.
28 Neste sentido v. novamente ALEXY, Robert. op. cit., p. 47 e ss. (especialmente p. 62 e ss.); entre nós, notadamente no que diz com a distinção entre texto e norma, vale lembrar o já clássico texto de GRAU,
Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 164 e seguintes, assim como a relevante contribuição de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m)
Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 16.
29 Desenvolvendo o tópico v. especialmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 182 e ss.
30 Fica o registro de que o dever de proteção do Estado, para além da imposição de um dever de respeito e não-violação (dimensão negativa propriamente dita) abrange a necessidade de praticar atos concretos
no sentido de alcançar uma proteção minimamente eficaz do direito à moradia, que, por sua vez, pode
ocorrer pela edição de atos normativos ou mesmo outros atos concretos destinados a salvaguardar a moradia (direitos a prestações normativas e fáticas), aspecto este que será considerado logo a seguir e que diz com a dimensão prestacional (positiva).
31 Cf. ALEXY, Robert., op. cit., p. 186 e ss.
32 A respeito da proibição de retrocesso v. especialmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais,
p. 442 e ss. No âmbito da doutrina estrangeira, v., por último a coletânea de COURTIS, Christian
(Compilador), Ni Un Paso Atrás. La Prohibición de Regresividad en Matéria de Derechos Sociales, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006, com contribuições de vários autores sobre as experiências de
diversos Países e também a aplicação da proibição de retrocesso na esfera internacional.
33 Cf. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 1987, p. 256-257.
34 É o que, de há muito, advoga BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas
Normas, 5.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 106.
35 Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. “Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”.
Revista de Direito Público 57/58: 242,1981.
36 É neste contexto, entre outros aspectos que poderiam ser citados, que a doutrina e jurisprudência
germânicas passaram a reconhecer uma assim designada (e a terminologia não restou imune a críticas) eficácia irradiante dos direitos fundamentais, considerados também como elementos integrantes de
uma ordem de valores objetiva, sobre o restante do ordenamento jurídico. Para uma compreensão da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, v. dentre outros, HESSE, Konrad. Grundzüge des
Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C.F. Müller, 1995, p. 133 e ss. Entre
nós, v., a respeito da dimensão objetiva e seus desdobramentos, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 167 e ss., bem como BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; “Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais”, in: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 152 e ss., SARMENTO, Daniel. “A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria”, in: MELLO, Celso Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (Org.), Arquivos de Direitos Humanos, vol. IV, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 63-102, e, mais recentemente, DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 116 e ss.
37 Sobre o problema da eficácia e aplicabilidade das normas de direitos fundamentais em geral, mas explorando com detalhes a questão dos direitos a prestações como direitos subjetivos, remetemos ao nosso já citado A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 268 e ss.
38 Com efeito, o fato de estarmos diante de normas de eficácia plena, capazes de gerarem todos os seus efeitos, inclusive na esfera subjetiva, não afasta a potencial restringibilidade destes efeitos, notadamente
no que diz com o exercício dos direitos subjetivos, de tal sorte que a possibilidade de sofrer restrições não
se constitui, em absoluto, um “privilégio” das assim denominadas normas de eficácia contida, consagradas no direito pátrio pela obra de José Afonso da Silva.
39 Cf. aponta CRAVEN, Matthew, op. cit., p. 335 e seguintes, consignando que o direito à moradia inclui o direito a não ser privado arbitrariamente da moradia.
40 Aqui iremos desconsiderar a discussão a respeito de uma eficácia imediata (direta) ou mediata (indireta) do direito à moradia e dos direitos fundamentais em geral no âmbito das relações entre particulares,
partindo do pressuposto de que tal eficácia ocorre, implicando uma vinculação não apenas do legislador e do Poder Judiciário na esfera cível (do direito privado), mas também uma eficácia que opera em
relação aos atos dos particulares. A respeito desta temática, v., dentre outros, SARLET, Ingo Wolfgang “Direitos Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações em Torno da Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo Pontes com o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 107-164, assim como aos estudos de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, STEINMETZ, Wilson. Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais, São Paulo: Malheiros, 2004, SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. Os Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares, São Paulo: Malheiros, 2005, especialmente p. 132 e ss., PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 434 e ss., todos sustentando, ainda que com alguma variação, uma eficácia em princípio direta (embora não absoluta) dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Sustentando uma eficácia apenas indireta, v. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 108 e ss. Especificamente versando sobre a eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares v., por último, SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos Fundamentais Sociais, Mínimo Existencial e Direito Privado”, in: Revista de Direito do Consumidor, n° 61, janeiro-março de 2007, p. 90-125.
41 V. a decisão nos Recursos Extraordinários de n° 352.940 e 449.657, relatados pelo Ministro Carlos Velloso.
42 A respeito desta dupla perspectiva (proibição de excessos e de proteção insuficiente ou deficiente) v., entre nós, especialmente SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência”, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais n° 47, março-abril de 2004, p. 60-122, assim como STRECK, Lenio Luiz. “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”, in: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica n° 2 (2004), p. 243 e ss. Dentre a literatura estrangeira, notadamente no que diz com a aplicação da proibição de insuficiência e dos imperativos de tutela no âmbito do Direito Privado, v. o pioneiro e paradigmático CANARIS, Claus-Wilhelm, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra: Almedina, 2003, tradução da edição alemã de 1999, onde o autor retoma e desenvolve seus estudos sobre o tema desde já o início dos anos 1980.
43 No mínimo, há que levar em conta que a venda do patrimônio resulta em benefício patrimonial para próprio vendedor (alienante) e que tal situação não pode ser equiparada à dação em garantia que poderá resultar na expropriação do imóvel!
44 A respeito do tópico v. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p.115 e ss. Sobre as possibilidades e limites das renúncias em matéria de direitos
fundamentais, no âmbito da literatura em língua portuguesa, v. especialmente NOVAIS, Jorge Reis.
“Renúncia a Direitos Fundamentais”, in: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas Constitucionais, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 263-335. Cuidando da temática na perspectiva dos direitos de
personalidade, v., dentre outros, MOTA PINTO, Paulo, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português”, in: SARLET, Ingo Wolfgang
(Org). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61-84.
45 Cf. BVerfGE vol. 89, p. 214 e ss., onde prevaleceu justamente a tese de que a autonomia privada não pode ser entendida apenas num sentido formal, de tal sorte que, em determinadas circunstâncias, a
pessoa pode e deve ser tutelada em face de disposições contratuais que lhe são desvantajosas.
46 Sobre o tema v. as indispensáveis lições de FREITAS, Juarez, A Interpretação Sistemática do Direito,
4.ed., São Paulo: Malheiros, 2004, bem como de PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico – Uma Introdução à Interpretação Sistemática do Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999.
Por Ingo W. Sarlet - 03/02/2017
I – Considerações introdutórias: a crise do estado social de direito e a problemática da proteção dos níveis vigentes de segurança social
Hoje, mais do que nunca, constata-se que a problemática da sobrevivência do assim denominado estado social de direito constitui um dos temas centrais da nossa época. A já corriqueira afirmativa de que o Welfare State ou Es- tado-Providência se encontra gravemente enfermo (1), além de constantemente
submetido à prova, não perdeu, portanto, sua atualidade. Que as discussões de longe já não se restringem mais à esfera da análise política, socioeconômica e jurídica, mas se transformaram na preocupação de larga parcela da humanidade pela manutenção de seu padrão de vida e até mesmo pela sua sobrevivência, verifica-se não apenas a partir da especial atenção dedicada ao tema nos meios de comunicação, mas pelo fato de que cada ser humano, em maior ou menor grau, acaba sendo atingido pela crise. Cada elevação de tributos, cada redução nos níveis prestacionais do Estado e cada perda de um emprego e local de tra- balho acaba por influenciar diretamente o cotidiano da vida humana, de tal sorte que se pode partir da premissa de que a crise do estado social é, ao mesmo tempo, uma crise de toda a sociedade.
Oportunamente denominado de filho da moderna sociedade industrial, o estado social de direito não poderá jamais permanecer imune às suas transfor- mações e desenvolvimento (2). Limitando-nos, por exemplo, a uma das manifes- tações da atuação do estado social e analisando a problemática dos sistemas de segurança social, verifica-se que é particularmente nesta esfera que o dilema representado pela simultânea necessidade de proteção e, por outro lado, de uma constante adequação dos níveis de segurança social vigentes à realidade socioeconômica se manifesta com particular agudeza. Se, por um lado, a ne- cessidade de uma adaptação dos sistemas de prestações sociais às exigências de um mundo em constante transformação não pode ser desconsiderada, simul- taneamente o clamor elementar da humanidade por segurança e justiça sociais continua a ser um dos principais desafios e tarefas do Estado (3).
De outra parte, a crescente insegurança no âmbito da seguridade social decorre, neste contexto, de uma demanda cada vez maior por prestações so- ciais e de um paralelo decréscimo da capacidade prestacional do Estado e da
sociedade (4). O quadro delineado remete-nos, por outro lado, ao angustiante
questionamento de o quanto as conquistas sociais podem e devem ser preser- vadas. Em que pese o entendimento dominante de que uma supressão pura e simples dos sistemas de seguridade social, sem qualquer tipo de compensação, não é, em princípio, admissível e sequer tem sido seriamente defendida a pro- blemática relativa à proteção constitucional das posições sociais existentes per- manece no centro das atenções (5). Em outras palavras, cuida-se de investigar
se, como e em que medida os sistemas prestacionais existentes, concretizado- res do princípio fundamental do estado social, podem ser assegurados contra uma supressão e/ou restrições.
Neste particular, é preciso ressaltar que, de acordo com a doutrina majoritária, uma proibição absoluta de retrocesso social tem sido excluída de plano, mormente em face da dinâmica do processo social e da indispensável flexi- bilidade das normas vigentes, de modo especial, com vistas à manutenção da capacidade de reação às mudanças na esfera social e econômica (6). Por outro lado, constata-se que a Lei Fundamental da Alemanha (no que não se encontra isolada no âmbito europeu) não contém nenhum preceito que direta e expres- samente ofereça qualquer tipo de proteção em nível constitucional do sistema de segurança social e dos níveis prestacionais vigentes, advogando-se, além disso, o entendimento de que tal garantia não pode ser direta e exclusivamente deduzida do princípio geral (fundamental) do estado social de direito (arts. 20, inc. I, e 28, inc. I, da LF) ou mesmo das diversas normas de competência (7).
Mesmo assim, no âmbito de uma proibição relativa de retrocesso, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas com o problema, lograram desenvolver, a partir do Direito Constitucional Positivo, algumas alternativas destinadas a ense- jar um certo grau de proteção às prestações sociais e ao sistema global de se- guridade social. Particular relevância assumiu, neste contexto, o direito e garan- tia fundamental da propriedade (art. 14 da LF), razão pela qual esta será priori- zada neste breve estudo sobre a proibição de retrocesso social na Alemanha. As demais alternativas referidas na doutrina serão, por ora, objeto de mera apresentação, tanto pelas limitações deste artigo quanto pelo fato de que não lograram atingir a mesma importância.
Antes de iniciarmos a análise propriamente dita da função da garantia da
propriedade para a proteção do sistema de seguridade social na Alemanha, con- vém lembrar o leitor de que, ao mesmo tempo em que a discussão em torno da redução (e até mesmo do desmonte completo) do estado social de direito apresenta proporções mundiais, não há como desconsiderar que as dimensões da crise e as respostas reclamadas em cada Estado individualmente considera- do são inexoravelmente diversas, ainda que se possam constatar pontos co- muns. Diferenciadas são, por outro lado, as soluções encontradas por cada or- dem jurídica para enfrentar o problema, diferenças que não se limitam à esfera da natureza dos instrumentos, mas que abrangem, de modo especial, a intensi- dade da proteção outorgada por estes aos sistemas de seguridade social.
O estudo do modelo germânico, no âmbito do Direito Comparado, assume particular interesse por várias razões, destacando-se o fato de que a Alemanha foi não apenas o berço do socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels,mas também da social-democracia (com Lassale), bem como da própria noção de um estado social e democrático de direito, bastando aqui a referência à Constituição de Weimar (1919), vertente do constitucionalismo social deste sé- culo. Por outro lado, pela posição de destaque que a Alemanha (juntamente com a França e a Itália, por exemplo) ocupa na União Européia, o estudo do exemplo germânico, além de expressar de modo geral e paradigmático – ressal- vadas as especificidades de cada país – a realidade do estado social de direito na Europa ocidental, serve como importante fonte de referência para uma análi- se comparativa.
Além disso, a peculiaridade das soluções desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência alemãs (independentemente de sua eficácia e de suas vantagens) merece alguma atenção não apenas pelas alternativas oferecidas, mas, também, pelo uso de certas categorias que, salvo melhor juízo, poderiam gerar certo in- teresse prático também entre nós, notadamente no que diz com a figura da ex- pectativa de direitos, a proteção da confiança e o uso do princípio da proporcio- nalidade. Ademais, assume relevo o uso alternativo do direito e garantia funda- mental da propriedade, sinalizando de forma paradigmática as diversas funções que podem ser deduzidas dos direitos fundamentais e das transformações que estes sofreram ao longo dos tempos. Assim, ainda que venhamos a concluir pela desnecessidade ou inconveniência desta solução no âmbito do Direito pá- trio, de modo especial em face dos mecanismos consagrados em nossa Consti- tuição, temos a convicção de que o presente estudo não se restringe a um mero capricho pessoal, já que – salvo melhor juízo – o desmantelamento do estado social de direito também entre nós se encontra na ordem do dia.
Por derradeiro, ainda no que diz com a apresentação do tema e as limita- ções deste estudo, cumpre ressaltar que a nossa atenção estará centrada na apresentação e breve análise do modelo germânico, de modo especial, na di- mensão constitucional, isto é, jurídico-positiva, do problema da proibição de re- trocesso social. Estamos cientes, todavia, de que estaremo-nos ocupando ape- nas de um dos inúmeros aspectos da problemática global das possibilidades e limites do estado de direito, isto sem falar na relevância filosófica, socioeconô- mica e política do tema.
II – A garantia fundamental da propriedade e a proteção constitucio- nal de posições jurídicas sociais prestacionais
Consoante já referido, a principal solução desenvolvida na Alemanha para fundamentação de uma proteção para o sistema de prestações sociais e das respectivas posições jurídico-subjetivas encontra-se vinculada ao direito e garan- tia fundamental da propriedade (art. 14 da LF). A problemática da estabilidade e flexibilidade das posições jurídicas no âmbito da seguridade social acabou, por esta via, alcançando uma dimensão genuinamente constitucional (8). Ainda que este tema continue sendo controverso, o Tribunal Federal Constitucional da Ale- manha (Bundesverfassungsgericht), após uma fase inicial caracterizada por uma certa retração (9), acabou por reconhecer em diversas decisões que a garantia da propriedade alcança também a proteção de posições jurídico-subjetivas de
natureza pública, de tal sorte que, atualmente, se pode falar da formação de um determinado grau de consenso nesta esfera (10).
Como ponto de partida para este desenvolvimento, costuma-se referir a doutrina de Martin Wolff, que, relativamente ao art. 153 da Constituição de Weimar, advogava o ponto de vista de que o conceito de propriedade abrange toda sorte de direitos subjetivos privados de natureza patrimonial, o que acabou por levar à afirmação de um conceito funcionalista de propriedade (11). Daí por
que a garantia da propriedade não protege apenas a propriedade no âmbito dos direitos reais, mas alcança uma função conservadora de direitos, no sentido de que ela igualmente tem por escopo oferecer ao indivíduo segurança jurídica re- lativamente aos direitos patrimoniais reconhecidos pela ordem jurídica, além de proteger a confiança depositada no conteúdo de seus direitos (12).
As posições jurídico-subjetivas patrimoniais de natureza pública acabaram sendo colocadas sob a proteção da garantia fundamental da propriedade, na medida em que se considerou que o princípio do estado de direito exige um tra- tamento igualitário relativamente às posições jurídico-subjetivas privadas (13). Para o Tribunal Federal Constitucional, o reconhecimento desta proteção outorgada às posições subjetivas de direito público por meio da garantia fundamental da propriedade encontra seu principal alicerce na estreita vinculação entre o di- reito de propriedade e a liberdade pessoal, no sentido de que ao indivíduo deve ser assegurado um espaço de liberdade na esfera patrimonial, de tal sorte que possa formatar de maneira autônoma sua existência (14).
Ainda no que diz com a proteção de posições jurídico-subjetivas de natureza pública por meio da garantia fundamental da propriedade, o Tribunal Fede- ral Constitucional, já em arestos anteriores, entendeu que esta proteção tem por pressuposto a circunstância de que ao titular do direito é atribuída uma posição jurídica equivalente à da propriedade privada e que, no caso de uma supressão sem qualquer compensação, ocorreria uma colisão frontal com o princípio do estado de direito, tal como plasmado na Lei Fundamental (15).
Paradigmática é, portanto, a virtual equiparabilidade das posições subjeti- vas de direito público com a condição do proprietário (16). Com a inclusão de direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública na esfera da seguridade so- cial no âmbito de proteção da garantia fundamental da propriedade, verificou-se uma ampliação do conceito de propriedade vigente no direito privado, do qual o conceito constitucional de propriedade acabou por se desprender quase que completamente (17).
De acordo com a melhor doutrina e jurisprudência, verifica-se, todavia, que nem todos os direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública encon- tram-se abrangidos pela garantia fundamental da propriedade (art. 14 da LF), mas tão-somente os que atendem a determinados requisitos, sendo, desde logo, descartada uma extensão generalizada (18). A partir de duas decisões modelares
sobre o tema, o Tribunal Federal Constitucional acabou enunciando alguns crité- rios essenciais para o reconhecimento da proteção de posições jurídico-subjeti- vas de natureza pública pela garantia da propriedade, quais sejam: a) à posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo a prestação social) deve corres- ponder uma contraprestação pessoal de seu titular; b) deve tratar-se de uma posição jurídica de natureza patrimonial, que possa ser tida como de fruição privada para o seu titular; e c) ela deve servir à garantia da existência de seu titular (19). Sobre estes pressupostos passaremos a nos manifestar em seguida.
No que diz com o primeiro critério, é preciso que se leve em conta se o direito subjetivo público se encontra exclusivamente fundado em uma prestação estatal ou se ele pode ser tido como equivalente a uma prestação própria de
seu titular (20). Uma posição jurídico-subjetiva patrimonial embasada exclusivamente numa prestação unilateral do Estado tem sido rechaçada (21). O quanto cada titular de um direito público subjetivo deve ter contribuído a título de pres- tação própria ainda não foi, contudo, completamente esclarecido (22). No que tange a este aspecto, é possível partir da premissa de que uma equivalência absoluta entre a prestação estatal e a contrapartida pessoal não se revela como indispensável, bastando – de acordo com o Tribunal Federal Constitucional – uma contribuição “não irrelevante” por parte do titular do direito (23).
Significativo é que, desde sua decisão do dia 16-07-85, o Tribunal tem sustentado o entendimento de que, para o reconhecimento da proteção da ga- rantia da propriedade, considera-se suficiente que a pretensão do particular não se encontre embasada única e exclusivamente numa prestação unilateral do Es- tado (24).
Para além disso, tem sido tolerado que a contraprestação provenha de terceiros, em favor do titular do direito, tal como ocorre com as contribuições sociais dos empregadores (25). Importa referir, neste contexto, o fato de que é a totalidade da pretensão, e não apenas as parcelas equivalentes às contraparti- das individuais dos particulares, que se encontra abrangida pela proteção da ga- rantia da propriedade (26).
Na base do critério da contrapartida pessoal do particular, encontra-se a concepção de que as posições jurídicas patrimoniais de natureza pública radi- cam no reconhecimento do esforço pessoal, isto é, do que foi alcançado pelo
trabalho e formação profissional de cada indivíduo (27), correspondendo, além
disso, à concepção de que é o próprio indivíduo que deve, em princípio, zelar pelo seu sustento (28). Ainda que o reconhecimento da proteção por meio da garantia da propriedade não esteja condicionado ao montante da contrapresta- ção pessoal (desde que esta exista e não seja irrelevante), este tem sido consi- derado decisivo quando se cuida de avaliar a relação de pertinência pessoal
(der personale Bezug), no sentido de que quanto maior a contraprestação do particular, mais robusto o vínculo pessoal que caracteriza a proteção constitu- cional baseada no direito-garantia de propriedade (29).
Assim, chega-se à conclusão de que para o Tribunal Federal Constitucio- nal, o montante da contribuição pessoal é decisivo para o alcance e a definição da intensidade da proteção constitucional das posições jurídico-subjetivas de natureza pública no âmbito da seguridade social (30).
Estreitamente vinculada ao critério da contribuição pessoal do particular, situa-se a segunda condição exigida pelo Tribunal Federal Constitucional, qual seja a de que as posições jurídicas patrimoniais de direito público protegidas constitucionalmente correspondam, de certa forma, às posições jurídico-subjeti- vas particulares, sintonizando, de tal sorte, com a noção de propriedade parti- cular (31).
De acordo com o Tribunal, esta equivalência pode ser reconhecida quan- do o titular do direito pode partir da premissa de que se cuida de uma posição jurídica pessoal, própria e exclusiva (32), caracterizada por uma essencial dispo
nibilidade por parte de seu titular (33). De outra parte, esta indispensável relação
de similitude com o direito de propriedade, tal como exigida pelo Tribunal Fede- ral Constitucional, pressupõe que estejamos diante de uma posição jurídico-sub- jetiva pessoal consolidada, que não poderá ser simplesmente suprimida de acor- do com o que deflui do princípio do estado de direito (34).
Essencial para o reconhecimento da proteção de uma posição jurídico-subjetiva na esfera da segurança social por meio da garantia da propriedade é, além disso, o fato de que deverá ser destinada à garantia da existência de seu titular (35). Com este entendimento, o Tribunal Federal Constitucional acabou aderindo à posição sustentada, no âmbito de decisão anterior, pela Juíza Rupp- von Brünneck, em seu voto dissidente, de acordo com a qual quando a garantia da propriedade contém também um certo grau de proteção da liberdade, na medida em que assegura ao cidadão as condições necessárias para uma vida autônoma e responsável, assim também esta proteção deverá abranger as posi- ções jurídico-subjetivas de direito público, já que estas têm alcançado uma crescente importância para a pessoa no que diz com sua existência econô- mica (36).
Cumpre observar, todavia, que com este critério adicional, o pressuposto da contraprestação do particular acabou sendo relativizado (37), já que com o caráter existencial da posição jurídico-subjetiva individual, o Tribunal Federal Constitucional reconheceu que a maior parte dos cidadãos alcança a sua segurança existencial econômica (wirtschaftliche Existenzsicherung), menos por meio de patrimônio privado imobiliário e/ou mobiliário, do que pelo resultado de seu trabalho (38). Para o Tribunal, a garantia da propriedade no estado social de direito sofreria um sério déficit na sua funcionalidade, caso não abrangesse po- sições jurídico-subjetivas patrimoniais que cumprem a função de principal e, por
vezes, até mesmo de única fonte para a existência de maior parte da po- pulação (39).
No âmbito destes três pressupostos e da ampliação do conteúdo social do conceito de propriedade a eles vinculada (40), a proteção das posições jurídi- co-subjetivas patrimoniais de direito público pela garantia da propriedade foi sen- sivelmente enrobustecida. Assim ocorre, por exemplo, com a maioria das pres- tações que integram o sistema público de seguridade social, de modo especial, contudo, as aposentadorias e pensões (41). Também as expectativas de direitos (Anwartschaften) foram abrangidas, notadamente, aquelas posições jurídico-sub- jetivas de direito público que, mediante o implemento de outras condições (por
exemplo um certo prazo de espera e/ou carência), tornam-se plenamente exigí- veis (42).
Da mesma forma ocorre com o seguro-desemprego, os direitos decorren- tes do seguro de acidentes, a remuneração pelo trabalho temporário (Kurzarbeitsgeld), os incentivos para a infância (Kinderzuschüsse), bem comocom o seguro-saúde dos aposentados contra doenças, apenas para citar as hi- póteses mais habituais (43).
Não protegidas pela garantia de propriedade (art. 14 da LF), são, em contrapartida, as assim denominadas prestações reabilitatórias (Rehabilia- tionsleistungen) e secundárias (Nebenleistungen) sem a respectiva contraprestação (44), tal como o auxílio para as crianças (Kindergeld), o auxílio para a juventude (Jugendhilfe), a assistência social (Sozialhilfe), o auxílio-moradia (Wohngeld), os incentivos para a formação profissional (Ausbildungsförderung) e a indenização social (soziale Entschädigung) (45). Já que não se cuida, aqui, de relacionar todos os possíveis exemplos, analisando-os individualmente, cumpre referir, neste contexto, que, para o reconhecimento da proteção constitucio- nal ora em exame, é necessário que se trate de prestações obrigatórias (Pflichteleistungen), o que exclui, desde logo, prestações discricionárias, que não radicam numa posição jurídica similar à propriedade privada, ao menos, de acordo com o entendimento do Tribunal Federal Constitucional e de parte da
doutrina (46).
Os critérios enunciados pelo Tribunal Federal Constitucional e, de regra, reconhecidos também pela doutrina, não ficaram, contudo, imunes a críticas. Neste sentido, costuma referir-se, a partir do paradigmático voto dissidente da Juíza Rupp von Brünneck, que não se revela razoável o entendimento de que a proteção outorgada pela garantia fundamental da propriedade às posições jurídi- co-subjetivas patrimoniais de direito público deva, necessariamente, estar condicionada a uma contraprestação do titular do direito e, além disso, servir para garantir a sua existência.
Argumenta-se, neste sentido, que estes dois requisitos não são aplicados no âmbito do direito privado, onde basta a existência de um direito subjetivo de cunho patrimonial, de tal sorte que os critérios da contraprestação e do caráter existencial – exigidos em se tratando de posições jurídico-prestacionais de natu- reza pública – assumiriam relevância apenas no que diz com a problemática dos limites à regulamentação legislativa (47).
Aderindo a estas críticas, o Prof. Hans-Jürgen Papier, da Universidade de Munique, ressalta o fato de que as posições patrimoniais jurídico-privadas al- cançam sua força direta e exclusivamente a partir da norma contida no art. 14 da LF (garantia da propriedade), de tal sorte que, se as posições de direito pú- blico já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitu- cionais, a aplicação supletiva da garantia da propriedade não apenas se revela desnecessária, mas relativizante, visto que, de acordo com o art. 14, inc. III, da LF, estaria, em princípio, sujeita a ser desapropriada mediante uma indenização.
Neste contexto, há, ainda, quem advirta para os riscos de uma ruptura no
clássico e unitário conceito de propriedade, no sentido de que estaria ocorrendo uma inequívoca evolução de uma propriedade assegurada sem reservas, para uma propriedade carente de justificação (rechtfertigunsbedürftigten Eigentum) (48).
Para além disso, argumenta-se que o requisito da garantia existencial (Existenzsicherung) acabaria levando a uma tendencial substituição do conteúdo liberal da garantia da propriedade (49). No que diz com a exigência da contraprestação do titular do direito, sustenta-se a opinião de que no âmbito dos direi- tos patrimoniais públicos não se cuida do direito a uma parcela do patrimônio global da seguridade social equivalente à soma das contraprestações pessoais do titular, mas, sim, da participação na receita futura da previdência social, de tal sorte que à pretensão do particular corresponde apenas de forma relativa e em tese uma contrapartida pessoal equivalente (50).
Por derradeiro, aponta-se oportunamente para a circunstância de que, em decorrência dessa flexibilização e ampliação da noção de propriedade e do âm- bito de proteção da respectiva garantia fundamental, corre-se o risco de uma crescente relativização desta proteção, visto que em virtude das exigências da função social da propriedade, boa parte daquilo que foi concedido poderá acabar
sendo retirado (51). Com efeito, no âmbito do já referido dilema representado
pela necessidade constante de adaptação e simultânea proteção dos níveis prestacionais vigentes, a problemática da cimentização das posições jurídicas sociais acaba por alcançar dimensões preocupantes, de modo especial em face da possibilidade de restrições por parte do legislador, expressamente autoriza- das pelo art. 14, inc. I, da LF, bem como do conseqüente risco de uma flexibili- zação demasiada da proteção constitucional da propriedade, já referida. Importa consignar, neste sentido, que a proteção concreta das posições jurídicas sociais depende, em última análise, da definição do conteúdo e dos limites da garantia fundamental da propriedade por parte do legislador (52).
A respeito deste tema, cumpre ainda citar o entendimento do Tribunal Fe- deral Constitucional, para o qual, “na determinação do conteúdo e dos limites de posições jurídicas previdenciárias, o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação. Isto se aplica principalmente a normas que se destinam a pre- servar, aperfeiçoar ou adaptar à realidade econômica em mutação, em benefício da coletividade, a funcionalidade e capacidade prestacional do sistema legal de previdência social. Neste sentido, a norma contida no art. 14, inc. I, da LF tam- bém abrange a possibilidade de restringir direitos e expectativas de direitos. Conquanto tal medida sirva ao interesse comunitário e corresponda ao princípio da proporcionalidade, ao legislador não estará, em princípio, vedada a reduçãode prestações, bem como a alteração da amplitude de pretensões e expectati- vas, assim como a sua adequação. Todavia, sua liberdade de atuação encontra-se reduzida, na mesma proporção em que os direitos e expectativas estão im- pregnados pelo vínculo pessoal da contrapartida de seu titular” (53).
A partir destas considerações do Tribunal Federal Constitucional, consta- ta-se que quanto maior a função social da posição jurídica prestacional protegi- da, e existindo uma justificativa legitimadora, no caso, o interesse coletivo, tanto maior é a possibilidade de restrições por parte do legislador. Em contrapartida, o caráter existencial da posição jurídica e o montante da participação do titular traçam limites mais ou menos severos a esta atividade legislativa. De qualquer modo, é preciso considerar sempre a proporcionalidade da medida restritiva e o
respeito ao princípio da proteção da confiança (54). Uma restrição será constitucionalmente legítima – de acordo com o Tribunal Constitucional – quando a limi- tação, adequação ou reformulação das posições jurídicas prestacionais se reve- la como indispensável para a proteção da capacidade funcional e prestacional do sistema de seguridade social (55).
Além disso, deverão ser observados os pressupostos específicos do prin- cípio da proibição de excesso (Ubermassverbot), notadamente, que a medida restritiva seja necessária e adequada ao fim almejado pelo legislador, não po- dendo, para além disso, ser excessivamente onerosa (Belastend) e inexigível (Unzumutbar). Assim, constata-se a indispensabilidade de uma ponderação que leve em conta a relação de equilíbrio entre a intensidade da restrição para o titular do direito e os valores utilizados para legitimar a restrição (56).
Ainda no que diz com a legitimidade de eventuais medidas restritivas, há que considerar que a aferição da proporcionalidade da restrição poderá ser realizada apenas à luz do caso concreto, já que a resposta depende da compa- ração entre o interesse público na restrição e o interesse individual do titular do direito na sua preservação, não podendo, portanto, ser preestabelecida de forma genérica e abstrata (57). Por outro lado, a restrição dependerá de especial justificação constitucional quando o legislador invadir o núcleo essencial da equiva- lência pessoal, já que neste caso não basta a existência de qualquer fim coleti- vo. A restrição deverá servir, portanto, à proteção de outros direitos fundamen- tais, ser indispensável à preservação de bens jurídicos superiores ou mesmo atuar como mecanismo de defesa contra graves ameaças, devidamente comprovadas ou pelo menos altamente prováveis (58).
A estes pressupostos soma-se a necessidade de se atentar para o princí- pio da proteção da confiança, por sua vez, diretamente vinculado ao estado de direito, o qual, relativamente à garantia fundamental da propriedade do art. 14 da LF, realiza a função de uma garantia da segurança jurídica para o cidadão (59). Isto assume relevância especialmente nos casos em que a medida legislativa
restritiva acaba atingindo direitos adquiridos. Ainda que os titulares não te- nham direito a uma determinada posição legislativa (Gesetzeslage), vindo a ser atingidas posições jurídicas já consolidadas, o interesse individual deverá ser especialmente considerado, exigindo-se uma cuidadosa ponderação entre os objetivos do legislador e a necessidade de se proteger a confiança do particular (60).
No contexto desta averiguação da proteção da confiança, a jurisprudência cons- titucional previu a necessidade de o legislador estabelecer regras razoáveis detransição, já que os atingidos pelas medidas restritivas deverão contar com a possibilidade de se adaptar à sua nova situação jurídica (61).
Paralelamente ao princípio da proteção da confiança também tem sido sustentada a obrigação de continuidade do legislador na esfera social, inerente ao princípio do estado de direito, conjugada com a função substitutiva de remu- neração (Lohnersatzfunktion) das aposentadorias. Neste sentido, advoga-se o ponto de vista de que as prestações na seara da previdência social devem res- peitar o parâmetro representado pelo nível de rendimentos dos segurados em atividade profissional, o que decorre da obrigação de continuidade do legislador, que deverá zelar por uma certa continuidade sistêmica (Systemkontinuität) em favor do contribuinte, garantia que não se limita ao patamar representado pelas
condições materiais mínimas para uma existência digna (62).
Ainda no que concerne à proteção das posições jurídicas patrimoniais de direito público pela garantia da propriedade, cumpre referir o cunho participativo da norma contida no art. 14 da LF, no sentido de que as pretensões e expecta- tivas individuais, na verdade, objetivam uma futura e relativa participação no re- sultado financeiro, na proporção das contribuições pessoais (63).
Cuida-se, portanto, de uma garantia (fundamental) da participação indivi- dual no sistema global de seguridade e previdência social na medida das ante- riores contribuições pessoais, de tal sorte que o titular da posição jurídica não dispõe de uma pretensão a um valor determinado ou determinável da prestação social que possa ser tido como equivalente às contribuições pessoais (64).
Do exposto, constata-se que a garantia fundamental da propriedade, no âmbito das prestações sociais, não assegura o nível prestacional vigente, razão pela qual o valor da prestação se encontra, relativamente às contribuições pessoais, tão-somente numa proporção relativa (65). As contribuições do titular do
direito servem, em última análise, para assegurar a posição no ranking da co- munidade solidária dos assegurados sociais (66). Neste contexto, a doutrina che- gou a referir uma espécie de transmutação (Wandelung) no âmbito da garantia fundamental da propriedade, que, de acordo com este entendimento, teria transi- tado de um direito de defesa para a condição de um direito de participação (quota-parte), o qual, por sua vez, se caracteriza pela sua dependência da ca- pacidade prestacional do sistema global de seguridade social, trazendo consigo,
todavia, o risco de uma relativização da proteção outorgada pelo art. 14 da LF (direito e garantia da propriedade) (67).
Por derradeiro, poderá concluir-se que, por meio da garantia fundamental da propriedade, as posições jurídico-prestacionais sociais acabaram recebendo uma proteção muito relativa e flexível, já que – de acordo com a precisa e oportuna formulação de Depenheuer – assegurada constitucionalmente é tão-so- mente a inespecífica pretensão à segurança existencial por meio de prestações sociais na esfera da seguridade e previdência social (68). Constata-se, portanto, que, se por um lado, a garantia de determinadas posições jurídicas sociais de direito público pode ser tida como segura, por outro, o que e o quanto é asse- gurado permanece inseguro.
III) Outras possibilidades de proteção constitucional das posições jurídicas sociais de direito público: uma visão panorâmica
Além da proteção por meio da garantia fundamental da propriedade, existem evidentemente outras possibilidades de assegurar constitucionalmente as posições jurídico-subjetivas prestacionais de direito público no Direito lemão. Isto aplica-se principalmente às posições jurídicas que não preenchem as con- dições exigidas para a incidência o art. 14, inc. II, da LF. É de se atentar, por outro lado, que não se trata de mecanismos assecuratórios complementares, mas de critérios autônomos constitucionalmente embasados. A doutrina, assim como a jurisprudência, costumam referir basicamente as seguintes alternativas:
a) o princípio da proteção da confiança, desenvolvido a partir do postulado do
estado de direito (art. 20, inc. III, da LF); b) o princípio fundamental da dignida- de da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da LF); c) o princípio do estado social (art. 20, inc. I, da LF); e d) o princípio geral de igualdade (art. 3º, inc. I, da LF). É a respeito de tais alternativas que passaremos a tecer algumas conside- rações individualizadas, ainda que de cunho sumário.
A) No que diz com a importância do princípio (fundamental) da proteção da confiança, diretamente deduzido do princípio do estado de direito, este – de acordo com o entendimento majoritário na doutrina alemã – apenas alcança sig- nificado autônomo para a problemática da proteção das posições jurídicas so- ciais, na medida em que estas não se encontram abrangidas pelo âmbito de proteção da garantia da propriedade (69). Como concretização do princípio da segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança serve como fundamentação para a limitação de leis retroativas, que agridem situações fáticas já con- solidadas (retroatividade própria), ou que atingem situações fáticas atuais, aca- bando, contudo, por restringir posições jurídicas geradas no passado (retroativi- dade imprópria), já que a idéia de segurança jurídica pressupõe a confiança na estabilidade de uma situação legal atual (70). Com base no princípio da proteção da confiança, eventual intervenção restritiva no âmbito de posições jurídicas so- ciais exige uma ponderação entre a agressão (dano) provocada pela lei restritiva à confiança individual e a importância do objetivo almejado pelo legislador para o bem da coletividade (71).
B) Vinculado ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana,
tal como plasmado no art. 1º, inc. I, da LF, também pode ser tida como limite ao retrocesso na esfera da legislação social a preservação de um mínimo indis- pensável para uma existência digna, no sentido de que as restrições no âmbito das prestações sociais não podem, em hipótese alguma, ficar aquém deste limi- te, pena de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Independente- mente disto, há que considerar que – de acordo com a doutrina e a jurispru- dência – a própria cláusula geral do estado social (art. 20, inc. I, da LF) já fun- damenta uma obrigação do poder público no sentido de promover a assistência aos necessitados (72). Foi justamente neste contexto que a doutrina e a jurisprudência alemãs desenvolveram, a partir de uma exegese criativa calcada na interligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I), do direito à vida (art. 2º, inc. I) e do princípio do estado social (art. 20, inc. I), um direito fundamental não-escrito à garantia das condições materiais mínimas para uma existência digna (73).
Somente isto já poderia servir de limite para uma legislação restritiva e, principalmente, demolitória do sistema de prestações sociais vigente, no sentido de que em qualquer hipótese jamais poderá o legislador agredir o núcleo essen- cial deste direito fundamental não-escrito (ou implícito).
Cumpre averbar, de outra parte, que a função social da garantia de uma
existência digna já vem sendo concretizada, na Alemanha, há cerca de trinta e sete anos, no âmbito da legislação social infraconstitucional (74). Todavia, há que levar em consideração o fato de que na doutrina – muito embora não sem divergências – sustenta-se a opinião de que a assistência social prestada para uma garantia das condições mínimas existenciais não se limita ao mínimo no sentido econômico, alcançando também um mínimo na acepção sociocultural, ain- da que a determinação do valor da prestação assecuratória deste mínimo existen- cial não tenha sido consensualmente obtida, não se podendo falar, até o presente momento, de uma solução uniforme no que diz com este aspecto (75).
C) Também o princípio do estado social (art. 20, inc. I, da LF) costuma ser utilizado como fundamento para uma proteção constitucional de posições ju- rídicas sociais, ainda que neste contexto não lhe seja outorgada significação au- tônoma, já que a partir do princípio do estado social não se podem deduzir di- reitos subjetivos individuais a prestações legislativas determinadas, de tal sorte que o princípio apenas (o que não é pouco) fornece, como critério hermenêuti- co, diretrizes para a avaliação da constitucionalidade de restrições legislativas
na esfera dos sistemas prestacionais vigentes (76). A importância do princípio
do estado social manifesta-se, portanto, principalmente na sua combinação com outros valores constitucionais essenciais consagrados pela Lei Fundamental, no- tadamente com o princípio da isonomia (art. 3º, inc. I), a garantia das condi- ções existenciais mínimas (aqui, como já referido, em combinação com os arts. 1º, inc. I, e 2º, inc. I), bem como com a concepção já referida atribuída à ga- rantia fundamental da propriedade, impregnada do conteúdo de justiça social inerente ao princípio do Estado social e democrático de Direito.
D) Por derradeiro, também ao princípio geral de isonomia (art. 3º, inc. I, da LF) poderá ser atribuída uma importância relativamente limitada no que diz com a problemática da proibição de retrocesso social na Alemanha, isto pelo fato de que o princípio isonômico basicamente é utilizado como parâmetro para
a aferição da constitucionalidade de medidas legislativas que dizem respeito a outro grupo de pessoas (77). Neste sentido, é necessário que, na hipótese de uma intervenção legislativa em posições jurídicas vigentes, a restrição resultante para todos os segurados (considerados individualmente ou em grupos) seja compatível com as exigências do princípio da igualdade, de tal sorte que este, atuando como mandado de uma restrição igualitária, cumpre a função de claro limite para a arbitrária tomada de medidas restritivas ou impositivas de encar- gos, de modo especial por parte do legislador (78).
IV) Considerações finais, inclusive em nível de direito comparado
Os exemplos referidos, de modo especial, a proteção das posições jurídi- cas sociais de direito público pela garantia fundamental da propriedade, revelam que – para além de uma abolição pura e simples, sem compensação, de siste- mas prestacionais legais, a qual se encontra absolutamente vedada – também medidas de cunho restritivo somente podem ser toleradas até certo ponto, pena de eventual ofensa aos postulados básicos inerentes ao princípio do estado so- cial de direito e aos direitos fundamentais. Neste sentido, constatou-se que no âmbito do Direito germânico é possível sustentar a existência de uma proteção constitucional dos direitos sociais previstos na legislação infraconstitucional, pro- teção cujo alcance não pode ser estabelecido previamente de forma genérica e abstrata. Isto porque esta proteção depende, por um lado, de uma cautelosa e criteriosa ponderação das circunstâncias concretas, devendo, de outra parte, le- var em consideração o abismo inevitável entre a realidade fática e a dimensão normativa.
Para além disso, percebe-se que os critérios e alternativas desenvolvidos no âmbito do Direito Constitucional germânico podem ser trasladados apenas parcialmente para o direito pátrio, carecendo, ademais, de uma adaptação às especifitudes de nossa ordem jurídica. Por outro lado, existem aspectos comuns que não podem ser desconsiderados, de modo especial, o fato de que também entre nós não há como sustentar uma vedação absoluta de medidas restritivas na esfera dos direitos sociais prestacionais, já que nem mesmo os direitos fun- damentais sociais expressamente consagrados na Constituição – os quais inte- gram inequivocamente o rol das “cláusulas pétreas” do art. 60, § 4º, da CF de 1988 – são imunes a restrições. Com efeito, apenas a abolição efetiva ou ten- dencial destes direitos encontra-se vedada, uma vez que o que se pretende é a preservação de seu núcleo essencial, pena de uma indesejável galvanização das normas constitucionais, que, por seu turno, traz em seu bojo o risco de uma intolerável ruptura da ordem constitucional, em face do insuperável abismo entre a constituição formal e a realidade constitucional (79).
Sendo comum a ambas as ordens jurídicas (alemã e brasileira) uma ve- dação pelo menos relativa de retrocesso na esfera do sistema vigente de pres- tações sociais, que, em última análise, representa a concretização no plano da legislação infraconstitucional do princípio do estado social de direito e/ou dos di- reitos fundamentais sociais consagrados na Constituição, não há como negar, de outra parte, a existência de uma série de diferenças a serem consideradas.
Sem qualquer pretensão de exaurir a problemática, em face dos estreitos limites deste estudo, cumpre relembrar, num primeiro momento, o fato de que a Lei Fundamental da Alemanha não consagrou, como regra geral, direitos funda- mentais sociais em seu texto, limitando-se a agasalhar o princípio fundamental do Estado social e democrático de Direito, a partir do qual foi desenvolvida uma abrangente e eficiente legislação na esfera da previdência e da seguridade so- cial. Assim, os direitos a prestações sociais, ainda que indiretamente fundados na cláusula geral do estado social, têm embasamento legal, ressalvado o desen- volvimento jurisprudencial de direitos fundamentais sociais não-escritos, como, de modo especial, a garantia das condições mínimas para uma existência digna, o direito à saúde e o direito à educação.
Justamente por este motivo, quando se fala na proibição de retrocesso social no caso da Alemanha, cuida-se principalmente da problemática da prote- ção das posições prestacionais consagradas em nível infraconstitucional. Para outorgar-lhes uma proteção constitucional, por estar em jogo a concretização do princípio do estado social, o qual também na Alemanha integra o elenco das “cláusulas pétreas”, assim como em face da inexistência de normas expressas na Lei Fundamental, assegurando uma proteção constitucional direta, as posi- ções jurídico-prestacionais sociais de direito público acabaram sendo considera- das como abrangidas pela garantia fundamental da propriedade.
No sistema pátrio, pelo contrário, no qual a Constituição de 1988 foi pró- diga em direitos fundamentais sociais, a problemática alcança um significado di- verso, na medida em que o próprio status constitucional, de modo especial a fundamentalidade material e formal que caracteriza os direitos sociais, já asse- gura aos mesmos um grau diferenciado e evidentemente mais elevado de prote- ção, ainda que lamentavelmente não faltem os que impugnam não apenas a condição de “cláusula pétrea” dos direitos fundamentais sociais, mas até mes- mo a sua fundamentalidade, ao menos no aspecto material.
Além disso, a existência de dispositivos expressos na nossa Constituição,
consagrando, em última análise, o princípio da proteção da confiança, demons- tra que a construção alemã, no que diz com a utilização do direito e garantia da propriedade, é – ao menos entre nós – desnecessária. Neste sentido, basta apontar para o que dispõe o art. 5º, inc. XXXVI, da nossa Constituição, estabe- lecendo o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, dispositivos que se aplicam principalmente (mas não exclusivamente) às posi- ções jurídicas infraconstitucionais. Mesmo assim, temos a convicção de que al- gumas lições úteis podem ser extraídas do exemplo germânico.
Dadas as especificitudes do modelo pátrio, também entre nós há como sustentar a existência de uma proibição de retrocesso na esfera social, vedação que, todavia, não poderá jamais assumir feições absolutas. Esta proibição relati- va de retrocesso, tendo em vista a previsão expressa de direitos sociais na nossa Constituição e a sua proteção por meio das “cláusulas pétreas” é, pelo menos do ponto de vista jurídico-normativo, mais robusta que as soluções de- senvolvidas à luz da Lei Fundamental da Alemanha, carente de direitos funda- mentais sociais e de norma expressa consagrando o respeito aos direitos adquiridos.
Outro aspecto que merece ser destacado é o fato de que a amplitude e intensidade da proteção outorgada pela ordem constitucional às posições jurídi- co-subjetivas na esfera social, tanto no plano constitucional quanto ao nível da legislação ordinária, dependem de uma análise centrada nas especificidades do caso concreto, exigindo um procedimento tópico-sistemático, já que nos parece inviável o estabelecimento de critérios abstratos e genéricos, a não ser o pró- prio reconhecimento de uma proibição meramente relativa de retrocesso.
O estado social de direito/233
A importância do princípio da proteção da confiança que, ao menos no caso da Alemanha, exerce uma função semelhante à atribuída ao direito adquiri- do, revela, entre outros aspectos, o grave equívoco no qual incorrem aqueles que, objetivando fundamentar o livre avanço sobre as conquistas na esfera so- cial, reportam-se ao argumento de que na maior parte dos países desenvolvidos inexiste proteção dos direitos adquiridos. Com efeito, impende considerar que, mesmo em ordens constitucionais em que os direitos adquiridos não mereceram expressa previsão e proteção pelo Constituinte, acabaram sendo objetos de pro- teção constitucional por meio do princípio (implícito) da proteção da confiança. Parece-nos que só esta constatação demonstra claramente que a opção pela abordagem do problema proposto neste estudo não se restringe a um mero ca- pricho pessoal. Pelo contrário, evidencia de forma escancarada que a figura ju- rídica dos direitos adquiridos, respeitadas as especificitudes de cada ordem jurí- dica, ainda que não expressamente agasalhada na nossa Constituição, não prescinde de um certo grau de proteção, já que (também entre nós) pelo me- nos implícita e indiretamente fundada no princípio do estado de direito.
Também pode ser tida como paradigmática a utilização do princípio da proporcionalidade como critério aferidor da legitimidade de uma restrição na es- fera de uma proibição de retrocesso social, revelando, neste contexto, que a função do referido princípio, igualmente deduzido do princípio do estado de di- reito, não se limita a servir de parâmetro para o exame da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, incluídos neste rol os assim deno- minados direitos sociais. Com efeito, também a ação erosiva do legislador que tenha por objetivo a implementação de ajustes e cortes no âmbito do sistema infraconstitucional de prestações sociais deve levar em conta as exigências do princípio da proporcionalidade, isto é, ser ao mesmo tempo necessária, adequa- da e razoável, pena de ofensa aos próprios direitos fundamentais sociais e ao princípio do estado social de direito (80).
Em última análise, não se poderá abdicar jamais da tarefa de realizar uma cuidadosa ponderação de todas as circunstâncias, de modo especial entre o valor dos direitos dos particulares a determinado grau de segurança social e os reclamos do interesse da coletividade.
A sistemática adotada pela doutrina e jurisprudência constitucional ale- mãs, notadamente no que diz com o uso do direito e garantia fundamental da propriedade, revelam, por sua vez, de forma contundente, a multifuncionalidade característica dos direitos fundamentais em geral, assim como as transforma- ções pelas quais têm passado. Além de reforçar, ainda que em outro contexto, a sua função social, a ampliação do âmbito de proteção da garantia da proprie- dade, objetivando assegurar, ao menos de forma relativa, o conteúdo das posi- ções jurídico-subjetivas sociais, especialmente de cunho prestacional, coloca em destaque a importância de uma hermenêutica constitucional criativa num mundo em constante transformação.
Pela sua estreita vinculação com a temática abordada, cumpre referir a
circunstância elementar, inobstante habitualmente desconsiderada, de que o Di- reito não assegura, por si só, os recursos indispensáveis para a existência hu- mana, já que meramente pode oferecer critérios para uma distribuição dos bens materiais. Neste sentido, constata-se que a proteção do conteúdo das posições jurídicas na esfera social não poderá apenas ser desenvolvida a partir da ordem jurídica, mas deverá também levar em conta as circunstâncias socioeconômicas vigentes, dependendo, de modo especial, da receptividade política relativamente a determinadas medidas por parte do poder público e da concepção vigente de justiça social (81).
Por derradeiro, mesmo atentando para as diversidades em absoluto irrele- vantes entre o sistema germânico e a nossa ordem constitucional, esperamos que tenhamos logrado demonstrar que a análise da experiência germânica já terá valido a pena caso tiver contribuído para colocar em evidência a necessida- de de, também entre nós, zelarmos por uma proteção dos níveis vigentes de segurança social. Não hesitamos, portanto, em afirmar que o princípio funda- mental da proibição (relativa) de retrocesso na esfera social, seja ele implemen- tado por meio do reconhecimento de “cláusulas pétreas”, seja ele desenvolvido implicitamente a partir de outros princípios constitucionais, constitui-se não ape- nas em salvaguarda do estado social de direito ou, caso preferirmos, da justiça material, mas principalmente da própria dignidade da pessoa humana, valor-guia de toda a ordem constitucional e objetivo permanente de toda ordem jurídica que se pretenda legítima.
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(1) – Neste sentido, entre outros, P. Rosanvallon, “A Crise do Estado-Providência”, 1997, analisando o problema especialmente com base na experiência francesa.
(2) – Cfe. K. H. Friauf, in: “Sozialstaat – Idee und Entwicklung, Reformzwänge und Reformziele”, p. 67.
(3) – A este respeito, v. B. Schulte, in: “ZIAS 1988”, pp. 208 e ss.
(4) – Cfe., entre outros, B. Schulte, in: B. Riedmüller/M. Rodenstein (Org.), “Wie Sicher ist die soziale Sicherheit?” (O quanto é segura a seguridade social?), pp. 323-4. Sobre as causas da crise. v. também P. Rosanvallon, “A Crise do Estado-Providência”, pp. 13 e ss.
(5) – A este respeito, v. E. Eichenhofer, in: “ZIAS 1988”, pp. 239 e ss., e, mais re- centemente, O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 417 e ss. Na literatura em Língua Portuguesa encontramos, posicionando-se favoravelmente a uma vedação ao me- nos relativa de retrocesso na esfera social, especialmente J. J. Gomes Canotilho, “Direi- to Constitucional e Teoria da Constituição”, pp. 320 e ss.
(6) – Neste sentido, a lição de R.-U. Schlenker, “Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz”, p. 239.
(7) – Cfe. R. -U. Schlenker, “Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz” , pp. 240-1.
(8) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 419.
(9) – Esta a observação, entre outros, de Rittstieg, in: AK I, p. 1.098.
(10) – Cfe. H.-J. Papier, in: “Maunz/Herzog/Dürig/Scholz”, art. 14, p. 77.
(11) – Esta a lição de O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 421.
(12) – Cfe. a lapidar formulação de P. Badura, in: HbVR, p. 347.
(13) – Assim também P. Badura, in: HbVR, p. 349.
(14) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (290).
(15) – A este respeito e sobre as diversas etapas da evolução no âmbito da jurispru- dência do Tribunal Federal Constitucional, v. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.069.
(16) – Cfe. Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 840, e, mais recentemente, R. Wendt,
in: M. Sachs (Org.), “Grundgesetz”, p. 491.
(17) – Neste sentido, a oportuna referência de Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 830.
(18) – Cfe., dentre outros, H.-J. Papier, in : “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz ”, art. 14, p. 80.
(19) – Ainda que o Tribunal tenha, posteriormente, adaptado e aprimorado certos as- pectos específicos, as estruturas fundamentais de sua jurisprudência nesta seara foram preservadas. A este respeito, v. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 423.
(20) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (291).
(21) – Neste sentido, W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 71.
(22) – Cfe. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.069. (23) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (300).
(24) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (301). Na doutrina, v. especialmente H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, pp. 84-5, que oportunamente chama a atenção
para o fato de que, com esta decisão, o tribunal acabou rechaçando a presunção de que a proteção constitucional das prestações sociais (notadamente das de cunho previ- denciário) se limitaria, em verdade, a uma proteção do montante das contribuições par- ticulares, de tal sorte que acabou por se aceitar uma proteção generalizada dos direitos previdenciários (pensões e aposentadorias).
(25) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (302).
(26) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 425.
(27) – Esta a formulação de P. Badura, in: HbVR, p. 350. Neste sentido, v. também H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 81.
(28) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 425.
(29) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (292) e 58, 81 (112).
(30) – Esta a constatação de H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 85.
(31) – Neste sentido, v. BVerfGE 69, 272 (300-1).
(32) – Assim também BVerfGE 69, 272 (300-1).
(33) – Neste sentido, v. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 73.
(34) – Cfe. R. Wendt, in: M. Sachs (Org.), “Grundgesetz”, p. 491. (35) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (303).
(36) – Cfe. BVerfGE 32, 129 (142).
(37) – Cfe. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.070. (38) – Cfe. BVerfGE 69, 272 (303).
(39) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (294).
(40) – Cfe. a oportuma referência de W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.070.
(41) – Cfe. Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 841.
(42) – Neste sentido, v. BVerfGE 53, 257 (289-90).
(43) – Cfe. R. Wendt, in: M. Sachs (Org.) “Grundgesetz”, p. 492, Jarass/Pieroth, p. 322, “Rittstieg”, in: AK I, p. 1.098, e H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 95.
(44) – Cfe. R. Wendt, in: M. Sachs (Org.) “Grundgesetz”, p. 492.
(45) – Cfe. H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 94.
(46) – Assim também H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p.95
(47) – Assim, aproximadamente, Rittstieg, in: AK I, p. 1.099. Neste sentido, v. tam- bém a crítica de H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 81, que, para além da crítica já tecida, chama a atenção para o fato de que as posições jurídico-pa- trimoniais privadas alcançam sua força única e exclusivamente com base no art. 14 da LF, de tal sorte que se as posições de direito público já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitucionais, a aplicação supletiva do art. 14 da LF não se revela apenas desnecessária, mas relativizante, visto que, de acordo com o dis- posto no art. 14, inc. III, da LF, estaria sujeita a ser desapropriada mediante uma inde- nização (Entziehbar).
(48) – Neste sentido, a pertinente preocupação de O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 428.
(49) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 434.
(50) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 429-31, o qual questiona o critério da contraprestação pessoal do particular, reconhecendo-lhe – com exceção de sua utilidade como critério de cálculo (Berechnungsfaktor) – apenas uma reduzida signi- ficação.
(51) – Neste sentido, v. também O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 434 e ss. Assim também W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1.071, que também fala do perigo de uma diluição do conceito de propriedade (“Verwässerung des Eigentums”).
(52) – Cfe. W. Boecken, “Der Verfassungsrechtliche Schutz”, p. 74, em adesão à jurisprudência da Corte Federal Constitucional (BVerfGE 53, 257 [292]).
(53) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (293), posteriormente confirmado em BVerfGE 58, 81 (122 e ss.) e BVerfGE 69, 272 (304).
(54) – A este respeito, v. especialmente H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/ Scholz”, art. 14, p. 85, bem como W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz ”, pp. 77-8.
(55) – Cfe. BVerfGE 53, 257 (296) e BVerfGE 58, 81 (114).
(56) – Neste sentido, v. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, pp. 77-8. Na jurisprudência, v. BVerfGE 58, 81 (114).
(57) – A este respeito, v. D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 860.
(58) – Esta a lição de H.-J. Papier, in : “ Maunz/Dürig/Herzog/Scholz ”, art. 14, pp. 85-6.
(59) – Neste sentido, v. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, pp. 78 e ss. Assim também D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, pp. 861 e ss. e BVerfGE 58, 81 (120-1).
(60) – Assim o entendimento de D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 863, e Rittstieg, in: AK I, p. 1.118.
(61) – V. os votos dissidentes dos Juízes E. Benda e D. Katzenstein em BVerfGE 58, 81 (131 e ss.) e 72, 9 (23 e ss.), onde a duplicação do prazo de carência no âmbi- to do seguro desemprego foi tida como inexigível. Na literatura, v., entre outros, Rittstieg, in: AK I, p. 1.118.
(62) – Cfe., de modo especial, H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, pp. 88-9, que, baseado na lição de Scholz, aponta para o fato de que no âmbito desta obrigação de continuidade não se assegura a aposentadoria calculada com base no parâmetro da remuneração bruta, assim como não se garante o nível prestacional vi- gente, já que, no caso de uma queda na arrecadação, também uma diminuição do va- lor das prestações sociais se afigura possível.
(63) – Neste sentido, v. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442. Semelhan- temente também P. Badura, in: HbVR, p. 350, que igualmente sustenta a opinião de que as pretensões e expectativas de direitos podem ser consideradas a partir de uma dimensão participativa da noção de propriedade (teilhaberechtlich ausgestaltetes Eigentum).
(64) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442.
(65) – Cfe. O Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442, assim como Rittstieg, in: AKI, p. 1.099. No âmbito da jurisprudência constitucional, v. BVerfGE 58, 81 (108 e ss.).
(66) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442.
(67) – Neste sentido, principalmente, H.-J. Papier, in: “Maunz/Dürig/Herzog/Scholz”, art. 14, p. 80, secundado por O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 442-3. Aver- be-se, todavia, a posição crítica de G. Haverkate, in: “ZRP 1984”, p. 221, que rechaça o cunho prestacional da garantia da propriedade, sob o argumento de que, em verdade, não é o Estado que fornece as prestações, mas, sim, os contribuintes da seguridade social, de tal sorte que não é propriamente às prestações estatais que é outorgada a especial dignidade dos direitos fundamentais, mas, sim, à comunidade dos segurados sociais.
(68) – Cfe. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 444.
(69) – Neste sentido, entre outros, W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”,
p. 81, e Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 842.
(70) – Cfe. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 80.
(71) – Esta a lição de D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 862, com apoio na jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional, de modo especial, BVerfGE 64, 87 (104). Assim também W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 82.ss.
(72) – Cfe., entre outros, o entendimento de H. -F. Zacher, in: HbStR I, pp. 1.062 e
(73) – A este respeito, v. meu “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, pp. 283 e ss.
(74) – Basta, neste sentido, referir o § 9º da Parte Geral do Código da Previdência e Seguridade Social (Sozialgesetzbuch – allgemeiner Teil), bem como dos §§ 1º, inc. I, 4º, inc. I, e 11, inc. I, da Lei Federal de Assistência Social (Bundessozialhilfegesetz), que, na sua formulação original, foi editada em 30-06-61.
(75) – A respeito desta problemática, v., entre outros, J. van Bargen, in: FS für H. Simon, pp. 745 e ss.(de modo especial, porém, pp. 749 e ss.).
(76) – Cfe. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz”, pp. 82-3.
(77) – Cfe. W. Boecken, “Der verfassungsrechtliche Schutz”, p. 83.
(78) – Neste sentido. v. a lição de B. Schulte, in: “ZIAS 1988”, pp. 212-3, que ain- da chama a atenção para o fato de que os efeitos do princípio da igualdade são, neste contexto, essencialmente de ordem negativa, no sentido de que ela veda determinadas configurações discriminatórias no âmbito da legislação social. Assim também, inobstante de forma mais tímida, E. Eichenhofer, in: “ZIAS 1988”, p. 240.
(79) – A respeito do significado do abismo entre norma e realidade constitucional e as suas conseqüências no âmbito da efetividade das normas constitucionais, v. especial- mente K. Hesse, “A Força Normativa da Constituição”. Sobre a amplitude e alcance da proteção outorgada pelas assim denominadas “cláusulas pétreas” da Constituição, v. meu “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, pp. 359 e ss.
(80) – Sobre o princípio da proporcionalidade, v., entre nós, especialmente, P. Bonavides, “Curso de Direito Constitucional”, pp. 356 e ss., assim como as relativamen- te recentes obras de R. D. Stumm, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Consti- tucional Brasileiro”, 1995, e de S. T. Barros, “O Princípio da Proporcionalidade e o Con- trole de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”, 1996.
(81) – Esta, em suma, a lição de B. Schulte, in: “ZIAS 1988”, pp. 215 e ss.V)
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15) LEISNER, Walter. “Eigentum”, in: J. Isensee/P. Kirchhof (Org). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol. VI, C. F. Müller, Heidelberg, 1992, pp. 1023 e ss.
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17) RIETTSTIEG, Helmut. “Anmerkungen zu Art. 14-15 GG”, in: R. Wassermann (Org). Kommentar zum Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Alternativkommentar), vol. I, 2ª ed., Luchterhand, Neuwied, 1989.
18) ROSANVALLON, Pierre. “A Crise do Estado-Providência”, Ed. UNB, Goiânia, 1997.
19) SARLET, Ingo Wolfgang. “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, Ed.
Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1998.
20) SCHLENKER, Rolf – Ulrich. “Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz”, Duncker & Humblot, Berlin, 1986.
21) SCHULTE, Bernd. “Bestandschutz sozialer Rechtspositionen – Eine rechtsvergleichende Betrachtung”, in: ZIAS 1988, pp. 205 e ss.
22) SCHULTE, Bernd. “Wie sicher ist die soziale Sicherung? Internatio- nal-vergleichende Perspektive”, in: B. Riedmüller/M. Rodenstein (Org). Wie sicher ist die soziale Sicherung?, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1989, pp. 321 e ss.
23) STUMM, Raquel Denise. “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro”, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1995.
24) WENDT, Rudolf. “Anmerkungen zu Art. 14 GG”, in: M. Sachs (Org.), Grundgesetz-Kommentar, C. H. Beck, München, 1996.
25) ZACHER, Hans-Friedrich. “Das Soziale Staatsziel”, in: J. Isensee/P. Kirchhof (Org.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol. I, C. F. Müller, Heidelberg, 1987, pp. 1045 e ss.
Por Thiago Lima Breus - 06/02/2017
I – Considerações introdutórias: a crise do estado social de direito e a problemática da proteção dos níveis vigentes de segurança social
Hoje, mais do que nunca, constata-se que a problemática da sobrevivência do assim denominado estado social de direito constitui um dos temas centrais da nossa época. A já corriqueira afirmativa de que o Welfare State ou Es- tado-Providência se encontra gravemente enfermo (1), além de constantemente
submetido à prova, não perdeu, portanto, sua atualidade. Que as discussões de longe já não se restringem mais à esfera da análise política, socioeconômica e jurídica, mas se transformaram na preocupação de larga parcela da humanidade pela manutenção de seu padrão de vida e até mesmo pela sua sobrevivência, verifica-se não apenas a partir da especial atenção dedicada ao tema nos meios de comunicação, mas pelo fato de que cada ser humano, em maior ou menor grau, acaba sendo atingido pela crise. Cada elevação de tributos, cada redução nos níveis prestacionais do Estado e cada perda de um emprego e local de tra- balho acaba por influenciar diretamente o cotidiano da vida humana, de tal sorte que se pode partir da premissa de que a crise do estado social é, ao mesmo tempo, uma crise de toda a sociedade.
Oportunamente denominado de filho da moderna sociedade industrial, o estado social de direito não poderá jamais permanecer imune às suas transfor- mações e desenvolvimento (2). Limitando-nos, por exemplo, a uma das manifes- tações da atuação do estado social e analisando a problemática dos sistemas de segurança social, verifica-se que é particularmente nesta esfera que o dilema representado pela simultânea necessidade de proteção e, por outro lado, de uma constante adequação dos níveis de segurança social vigentes à realidade socioeconômica se manifesta com particular agudeza. Se, por um lado, a ne- cessidade de uma adaptação dos sistemas de prestações sociais às exigências de um mundo em constante transformação não pode ser desconsiderada, simul- taneamente o clamor elementar da humanidade por segurança e justiça sociais continua a ser um dos principais desafios e tarefas do Estado (3).
De outra parte, a crescente insegurança no âmbito da seguridade social decorre, neste contexto, de uma demanda cada vez maior por prestações so- ciais e de um paralelo decréscimo da capacidade prestacional do Estado e da
sociedade (4). O quadro delineado remete-nos, por outro lado, ao angustiante
questionamento de o quanto as conquistas sociais podem e devem ser preser- vadas. Em que pese o entendimento dominante de que uma supressão pura e simples dos sistemas de seguridade social, sem qualquer tipo de compensação, não é, em princípio, admissível e sequer tem sido seriamente defendida a pro- blemática relativa à proteção constitucional das posições sociais existentes per- manece no centro das atenções (5). Em outras palavras, cuida-se de investigar
se, como e em que medida os sistemas prestacionais existentes, concretizado- res do princípio fundamental do estado social, podem ser assegurados contra uma supressão e/ou restrições.
Neste particular, é preciso ressaltar que, de acordo com a doutrina majoritária, uma proibição absoluta de retrocesso social tem sido excluída de plano, mormente em face da dinâmica do processo social e da indispensável flexi- bilidade das normas vigentes, de modo especial, com vistas à manutenção da capacidade de reação às mudanças na esfera social e econômica (6). Por outro lado, constata-se que a Lei Fundamental da Alemanha (no que não se encontra isolada no âmbito europeu) não contém nenhum preceito que direta e expres- samente ofereça qualquer tipo de proteção em nível constitucional do sistema de segurança social e dos níveis prestacionais vigentes, advogando-se, além disso, o entendimento de que tal garantia não pode ser direta e exclusivamente deduzida do princípio geral (fundamental) do estado social de direito (arts. 20, inc. I, e 28, inc. I, da LF) ou mesmo das diversas normas de competência (7).
Mesmo assim, no âmbito de uma proibição relativa de retrocesso, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas com o problema, lograram desenvolver, a partir do Direito Constitucional Positivo, algumas alternativas destinadas a ense- jar um certo grau de proteção às prestações sociais e ao sistema global de se- guridade social. Particular relevância assumiu, neste contexto, o direito e garan- tia fundamental da propriedade (art. 14 da LF), razão pela qual esta será priori- zada neste breve estudo sobre a proibição de retrocesso social na Alemanha. As demais alternativas referidas na doutrina serão, por ora, objeto de mera apresentação, tanto pelas limitações deste artigo quanto pelo fato de que não lograram atingir a mesma importância.
Antes de iniciarmos a análise propriamente dita da função da garantia da
propriedade para a proteção do sistema de seguridade social na Alemanha, con- vém lembrar o leitor de que, ao mesmo tempo em que a discussão em torno da redução (e até mesmo do desmonte completo) do estado